Durante muitos anos, a primeira coisa que fazia mal chegava a casa, ainda de sapatos de salto alto calçados, a mala e as mochilas atiradas para um canto do corredor, era varrer a casa. Varrida a casa, quartos, sala, casas de banho, corredor, eu podia olhar para o chão limpo, nem uma nuvem de cotão, nem um novelo de cabelos, e sossegar. Agora, que comprei um aspirador, a primeira coisa que faço, mal chego a casa, ainda de saltos altos, é aspirar cada divisão, com atenção, minuciosamente, quero cada canto da casa limpo. Ninguém pode imaginar o bem estar que sinto por chegar a casa, tarde, tão tarde, perto das oito, o jantar por fazer, e, em cinco minutos, sem revoadas de pó e pêlos de gato, sentir a casa limpa. Já nem arrumo o aspirador. Está sempre na sala, como um animal adormecido, pronto a ser acicatado. Mas, e é isso que me entristece, é o segundo aspirador que compro desde que tenho casa própria e que não traz bico de pato. Ah, como se limpa uma casa em condições sem bico de pato!?, eis uma pergunta que tenho feito nos últimos dias. Como se limpam os rodapés, as reentrâncias inúmeras de um apartamento, as calhas onde correm as portas dos armários? Faz-me muita falta um bico de pato, longo, delgado, capaz de entrar em todo e qualquer buraquinho escuro.
ana de amsterdam
Sou Ana de cabo a tenente/ Sou Ana de toda patente, das Índias/ Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada/ Sou Ana, obrigada/ Até amanhã, sou Ana/ Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos/ Sou Ana de Amsterdam.
2017/06/10
2017/06/06
Onze e quarenta
Às onze e quarenta, depois de os miúdos mais novos estarem deitados, não sei onde anda o mais velho, gritei:
- Vou sair para comprar cigarros!
- Está bem!- Gritou a Madalena, mas qualquer coisa na sua voz, um tom tão tristemente indisfarçável, me fez fechar os olhos longamente.
Bati a porta. A minha filha, como eu, sabe que não saio às onze e quarenta para comprar cigarros. Saio para comprar, depois da primeira, bebida enquanto, mãe dedicada, preparo o jantar, a segunda garrafa de vinho. Senti-me a mulher mais miserável do mundo, indigna dos filhos que tenho, indigna do amor e da admiração que essas estúpidas crianças têm por mim, mas, ainda assim, saí. São quinhentos metros até à próxima bomba de gasolina. Gloriosos quinhentos metros: acelero nas rectas, travo abruptamente nos semáforos, escuto o Michael Jackson. The lady is mine ou lá o que é. Na bomba, passos trôpegos, para disfarçar, enchi o depósito, pedi duas garrafas de vinho branco, um maço de cigarros, duas embalagens de pensos e três pães com chouriço para o pequeno almoço dos meus meninos.
Quando cheguei a casa, ainda a minha filha estava acordada. Tentei falar o menos possível para que não se apercebesse da minha voz. Escondi as garrafas de vinho e fingi-me sóbria. Fui para o quarto. Massajei os pés com creme, longamente, para ocupar o tempo. Lavei os dentes. Quando finalmente senti a minha filha adormecida, saí do quarto, percorri o corredor e entrei na cozinha. Acendi um cigarro, enchi um copo de vinho e pus a tocar o quarto concerto para piano de Bach. O segundo andamento, ah, beleza tão estupidamente bela, é o que me convém, é o que a noite me traz! Noite tão puta. Larghetto.
2017/05/26
Burrinho
Fui à procura de um caderno para escrever. Volto a ter vontade de escrever. Não quero, não sou capaz, de escrever frases, textos, quero apenas apontar as palavras de cada dia. Encontrei o diário dos meus vinte anos: textos banais (naquele tempo, sã, mentalmente sã, ainda não me tinha inventado), entre páginas, as cartas e os postais que a minha irmã me mandou da Dinamarca - As saudades ainda não apertam, mas tenho a tua fotografia e do Beto colada na minha parede! -, flores secas, poemas, uma fotografia do Sérgio Godinho, outra do João montado num burrinho, recortes de jornais, o papel com que a Mila embrulhou o presente que me ofereceu quando fiz vinte e oito anos.
2017/02/17
Dois afogados
Quero abraçar tempo e o espaço. Caminhar em silêncio e, como a mulher canhota, descalçar as meias para sentir o sol nos pés. A poesia, disse-me a santa quando cheguei perto da azinheira, está no piscar luminoso dos reclames antigos, no rosto do traficante, no sorriso do carcereiro, no buraco sujo, no sapato fedorento, nos dois afogados que deram à costa, na mulher que cuspiu no chão, em palavras simples, casa, cão, boca, fome, luz.
2017/01/26
Trovoada
Começou a chover. Parece chuva de trovoada. Olho uma última vez a estatueta de porcelana. Com a ponta de um lenço de assoar, que humedeço com saliva, limpo as pequenas reentrâncias onde o pó se acumula. Pouso-a em cima da cómoda. Escuto passos que rangem no soalho do corredor. Já passa da meia-noite, a minha espera terminou. Mal me deito, a vivacidade do meu pensamento abandona-me, deixa-me numa fadiga que me torna as ideias confusas. Conheço esse adormecimento, desejo-o, nunca contrario a sua chegada. O meu marido entra no quarto. Parece não trazer pressa, anda devagar, e, ao contrário do que é habitual, alguma energia transparece no seu passo. A expressão do seu rosto também está diferente, descontraída, um sorriso aberto, olhos brilhantes, bochechas elevadas. O que tornará a sua passada mais enérgica? E o seu rosto animado? Talvez seja ainda a euforia do futebol que nele transparece, talvez as sobras dessa satisfação o tornem assim, revigorado, ágil. Senta-se na cama, mãos apoiadas no colchão, a olhar a janela. Deixa-se estar nessa posição durante algum tempo a escutar a chuva nas vidraças. Não diz nada, volta a sorrir, dá uma palmadinha na minha perna como que a querer partilhar comigo a sua satisfação. Depois de dar uma fungadela no spray que usa para as alergias, diz-me boa noite e apaga a luz. Não fecho os olhos. Gosto de olhar a escuridão, descobrir o que nela se esconde, vejo manchas irregulares, parecem lagartos gigantes, cobras gordas, serpenteando por ali. Quando um carro chega à praceta e o clarão dos faróis entra pelas frinchas dos estores, chega-me uma memória antiga, quase esquecida: estou deitada com a Violante num campo de ervas altas a adivinhar as formas das nuvens, divertimo-nos a encontrar coelhos, vacas, galos, algumas nuvens parecem objectos, outras parecem gente. Olha a D. Antónia, de marreca e tudo!, diz de repente a minha irmã e rimos com a descoberta. A recordação desse instante traz-me uma tristeza passageira, mas muito intensa, volto à infância, um tempo antigo em que fui feliz. Pouco a pouco, os meus olhos deixam de ver sombras alaranjadas, a escuridão cresce, só o coração luminoso da estatueta de loiça a quebra. A escuridão confunde. É na noite que o corpo do meu marido ganhará dureza. Escuto o ruído da sua respiração e, pouco depois, sinto o seu corpo voltar-se na minha direcção.
Não perde tempo, os seus braços aumentam de volume, alongam-se, parecem ser capazes de dar várias voltas ao meu corpo. A sua respiração é cada vez mais acelerada, sinto o seu bafo na cova do meu pescoço. Lá fora, o céu desfaz-se agora em pingos grossos, a chuva estala nos vidros. O meu marido levanta-me a camisa de noite, as suas mãos tocam-me. Deixo que me tome. O meu corpo está aqui, na cama, à sua mercê, para que faça dele o que quiser. Um corpo é apenas um corpo, o meu fica aqui, daqui a nada, quando tudo acabar, venho buscá-lo para o lavar e tratar. Ausento-me: estar deitada na cama ou sentada na sala em frente do televisor ou na cozinha a lavar a loiça passa a ser igual. Tanto faz. Estou simplesmente deitada, sem fazer nada, à espera que isto acabe depressa. Mal me liberto do meu corpo sinto-me tranquila, cheia de silêncio. Pairo como um fantasma sobre o meu quarto, sobre a minha cama, sobre o meu corpo. Agora é a altura certa para me entregar aos meus pensamentos íntimos. Procuro o coração luminoso da estatueta de loiça. Aqui está, mesmo ao meu lado, uma pequena lágrima de luz capaz de quebrar a escuridão mais cerrada. El corazón de los novios alumbra la oscuridad, disse-me o homem naquela tarde e abraçou-me. Recordo o desconhecido de Ceuta, o armazém abafado, a realidade suspensa num abraço demorado. Um instante eterno, sem futuro, nem passado. Começou a trovejar. Continuo a ter medo de trovoadas, mentalmente, começo a dizer a oração a Santa Bárbara, só ela é capaz de apaziguar as tempestades que a natureza lança aos homens. O tempo parece alongar-se. Geralmente, em três, quatro minutos, tudo está terminado, mas hoje o meu marido não só intensifica a firmeza dos seus movimentos como parece querer prolongar o tempo que leva a satisfazer-se. Em movimentos repetidos, entra e sai, sai e entra, sempre na mesma persistência. O movimento parece não ter fim. Oiço os seus gemidos, sinto o cheiro do seu suor peganhento, a murchidão da barriga a roçar-me o ventre, tudo é desolador, mas descanso na perfeição dos meus pensamentos secretos. O meu marido transpira de esforço. Sinto-o dentro de mim, sinto as contracções dos músculos, o sangue a latejar. O meu marido está caído sobre o meu corpo, mas eu não estou aqui. Estou longe, muito longe, nos braços de um homem que me aperta. Consigo sentir o cheiro desse homem. Consigo sentir até a sua respiração no meu rosto. O calor desse abraço, clandestino, mas puro, perdura na minha vida. Escuta-se outro trovão, mais forte do que o primeiro. O meu marido larga por fim um grito descontrolado de dor e prazer. Sinto-me aliviada por tudo ter finalmente terminado. Assim que o meu marido resvala para o lado, acendo a luz. Levanto-me com cuidado, procuro a camisa de noite e visto o robe que está aos pés da cama. Caminho até à casa de banho para me lavar. O calor que se sente é cada vez maior, parece escorrer pelos azulejos, cobrir as loiças sanitárias, esconde-se dentro do pequeno armário com puxadores dourados. Abro a pequena janela da casa de banho, mas da rua chega apenas ar quente. Os trovões estão mais espaçados, cada vez mais longínquos, mal se ouvem. Olho-me no espelho. Noto o cabelo em desalinho, o meu rosto está tenso e, exposta à luz fosforescente da casa de banho, a minha pele mostra marcas evidentes de cansaço, as rugas parecem mais profundas, os olhos estão inchados, as olheiras, escuras, parecem borrões de tinta. Regresso ao quarto, os meus passos tornam-se leves, os pés mal tocam no chão. Vou sossegada. O cheiro da cera do soalho volta a confortar-me; a minha irmã sorri na moldura que está sobre o móvel da entrada e a Nossa Senhora, olhos moles de solidão, padece, como é próprio da sua natureza, no seu nicho de gesso dourado. Entro no quarto e sento-me na cama. Sinto-me esgotada, finalmente poderei deitar-me, fechar os olhos, adormecer, deixar o cansaço escorrer do meu corpo. Talvez já não o sinta ao acordar. O meu marido ressona baixinho, tem a boca ligeiramente aberta e a cabeça apoiada nas mãos entrelaçadas. Apago a luz. Lá fora, escuta-se apenas o vento nos plátanos da praceta. Depois da trovoada, a noite voltou a encher-se de silêncio.
Marshmallow
O recinto da feira do livro, no Parque Eduardo Sétimo, é um grande mercado. Numa barraquinha o João Pedro e a mulher vendem produtos biológicos: verduras, fruta, legumes. Tudo tem um ar desolador: as verduras estão murchas, a fruta, maças, peras, uvas, são bichosas, os legumes, de cores baças e mirrados, parecem estar ali há vários dias. Paro para comprar as poucas framboesas e amoras que restam dentro de um caixote. Para além das framboesas e das amoras, há também umas estranhas bagas. São grandes, amareladas, fazem lembrar casulos de traça. Experimento uma. Sabe a marshmallow e desfaz-se na boca. Escolho as bagas que quero levar e pago com uma nota de cinco euros. Continuo a subir o mercado. Para além de fruta e legumes, vendem-se broas, pães, cavacas, queijos e enchidos. Procuro um queijo picante, conservado em azeite, um queijo que tenha exactamente o sabor de um outro que certa vez, ainda pequena, provei em casa da prima Laura. O João Pedro acompanha-me durante alguns minutos. Não temos tema de conversa. Caminhamos em silêncio. Por fim, com o seu habitual modo desajeitado, pergunta-me se quero ir ao cinema. Fico feliz, radiante, absolutamente eufórica com o convite. O meu coração bate, muito acelerado. Estou prestes a responder-lhe, faço um esforço para disfarçar o contentamento, quero responder com descontração. Mas o João Pedro já não caminha ao meu lado. Estou outra vez só. O amor, esse velhaco, voltou a humilhar-me, morde-me agora as canelas, depois rebola de tanto rir, aponta para mim. Viro-me para trás, procuro o João Pedro no meio da multidão. Voltou para a barraquinha dos legumes. Está sorridente ao lado da sua jovem mulher.
( Curiosamente, a última vez que estive com o João foi na feira do livro.)
( Curiosamente, a última vez que estive com o João foi na feira do livro.)
2017/01/21
Os pés de Rudolf Nuriyev
Foi uma alegria quando o sexto andar do prédio dos meus pais foi comprado. Finalmente o último apartamento seria ocupado. Acabava assim o corrupio de potenciais compradores, gente que entrava e saía, examinando cada recanto, mexendo em tudo, olhando-nos, seus potenciais vizinhos, com a mesma frieza com que olhavam os mármores da entrada e os alumínios dos caixilhos. O prédio podia por fim repousar na tranquila alegria de uma família completa. Soube-se logo que o apartamento fora comprado por um casal de professores aposentados. Tinham apenas um filho que acabara há pouco tempo o curso de medicina. As características do novo agregado familiar agradaram a toda a gente. Num prédio de funcionários públicos, donas de casa, militares de pequena patente, retornados, um casal de professores proporcionava uma certa decência que o exercício do professorado ainda gozava naquele tempo. Um jovem médico exerceria, por outro lado, boa influência nos miúdos do prédio. Feita a mudança, o casal instalou-se. Os professores aposentados eram muito educados, já o filho, o jovem médico, logo na sua primeira aparição, provocou nos habitantes do prédio um certo desconforto.
Esguio, seco como um ramo, de rosto pálido e comprido, o rapaz fazia lembrar um louva-a-deus. Tinha lábios finos, tensos. Os olhos, claros, eram bonitos. Vestia-se com uma certa informalidade moderna que muitos vizinhos confundiram com desmazelo. Usava o cabelo pelos ombros e trazia sempre uma mala a tiracolo. Movia-se com discrição. Parecia procurar as sombras para que ninguém o visse. O jovem médico, extravagante, tão silencioso, foi olhado com desconfiança. Até que um dia tudo se esclareceu: o rapaz afinal não era só médico. Também era bailarino. Fazia parte de uma companhia de dança clássica. Os habitantes do prédio inquietaram-se! Um bailarino, ainda que médico, não era uma influência saudável na juventude do prédio. Os rapazes mais velhos andavam quase todos na Afonso Domingos. Tinham o destino traçado. Esperava-os um futuro de sucesso e virilidade. Seriam engenheiros mecânicos, engenheiros civis, engenheiros químicos, engenheiros electrotécnicos. Se algum, mais sensível, não se sentisse atraído pelo mundo da engenharia, poderia ser sempre arquitecto. Um bailarino destoava daquele quotidiano de fundações sólidas e inabaláveis.
Já eu fiquei encantada. Por essa altura, influenciada pelo comunismo da minha tia, vibrava com os programas de televisão que glorificavam o socialismo soviético. Foi neste contexto, embalada nos braços da minha tia, que, pouco tempo antes, num documentário sobre a vida de Rodolf Nuriyev, descobrira os seus pés. Como boa aprendiza, não me interessei pela história da fuga do bailarino. Queria lá eu saber por que é que fugira da pátria amada e se enfiara no covil mais sujo do mundo! O que me impressionou, e para sempre se gravou na minha memória, foi a imagem dos seus pés: monstruosos, feiíssimos, calejados, totalmente deformados pelas longas horas de treino em pontas. Com as suas calosidades, os seus ossos corcundas, os metatarsos deslocados, as falanges e falangetas libertas da sua posição inicial, soltas numa amálgama de tecidos moles, eram uma imagem impressionante de sofrimento e perseverança. Pensei: se o tal Rodolf Nuriyev tinha pés deformados, também o meu vizinho bailarino os teria. Era um silogismo simples que permitia conclusões irrefutáveis. Os pés do jovem médico tornaram-se numa obsessão para mim. Precisava de os ver… Quando subia com o jovem médico no elevador, a primeira coisa que fazia era olhar para baixo. Ele trazia sempre os pés enfiados numas alpercatas vermelhas. Eu bem tentava perceber, através da lona, a forma dos seus pés. Mas nada. Nem um joanete, um aleijão, nem uma curva duvidosa se mostrava para me sossegar a curiosidade. Estava quase a perder a esperança quando finalmente lhe pude ver os pés. Certa manhã, saindo do prédio com a minha mãe, percebi que o jovem médico subia a rua em sentido contrário. Os pés vinham livres, enfiados nuns chinelos. Antecipei, com deleite, a sensação que iria experimentar. Aqueles pés iriam proporcionar-me um espectáculo maravilhoso de horror e aberração. Apressei o passo. Quando nos cruzámos, olhei descaradamente para os seus pés. Que desilusão! Eram grandes, normais, de dedos longos, sem qualquer interesse, nem um calinho se topava naquela pele macia, naqueles pés de deus grego. A normalidade daqueles pés pareceu-me grotesca, indignou-me profundamente.
O tempo passou. Passados alguns anos, sucedeu um episódio que novamente me trouxe à lembrança a banalidade dos pés do jovem médico. Estava perto do elevador. Esperava que a minha mãe chegasse com o correio para subirmos, quando, vinda da escuridão da garagem, surgiu uma mulher. Subiu connosco no elevador. Trazia o cabelo apanhado com muitos ganchos. Usava um vestido pingão às cornucópias, que parecia escorrer-lhe do corpo, escondendo formas e saliências. Calçava sandálias de couro e, por isso, pude ver-lhe os pés. Depressa percebi que conhecia aqueles pés. Por tudo aquilo que não eram, de tão normais e banais, aqueles pés tinham ficado gravados na minha memória. Eram os pés do jovem bailarino, só que estavam no corpo daquela mulher! Olhando para os pés, percebi que a mulher era parecida com o jovem médico: tinha os mesmos olhos transparentes, tristes. Quando saímos no terceiro andar, mal a porta se fechou, perguntei à minha mãe quem era aquela mulher que se apossara dos pés e do rosto do jovem médico. A minha mãe procurou a chave na mala, meteu-a na fechadura, abriu a porta. Perante o meu olhar inquisidor, como se falasse da coisa mais natural do mundo, explicou que o jovem médico fizera uma operação e se tornara numa mulher. Mandou-me fazer os trabalhos de casa e fugiu para a cozinha. Fiquei parada, no meio do corredor, na companhia dos deuses de sândalo, espantada com aquela revelação. Como podia um homem transformar-se em mulher?
O assunto foi esquecido. Calei as minhas dúvidas durante muito tempo. Anos mais tarde, percebi naturalmente o que acontecera. O rapaz do sexto esquerdo livrara-se de um corpo que não era seu. Redesenhara a sua intimidade, arrancara de si um pedúnculo de raízes fundas, mas podres. No seu lugar, crescera uma flor muito frágil. Mudara de sexo. Era um acto de profunda coragem que punha em causa as leis do mundo, de deus e do nosso prédio. Desejei que a metamorfose do seu corpo lhe trouxesse paz. O jovem médico, tornado mulher, deixaria de procurar as sombras. Foi o que pensei. Voltei a subir no elevador, muitas vezes, com a médica. Assisti ao seu envelhecimento. Passou a usar óculos. O cabelo ralo cola-se agora ao crânio, sem graça ou beleza. Parece trazer sempre o mesmo vestido pingão de cornucópias. Os pais morreram. Vive sozinha. Debruçada na janela da cozinha, onde gosto de observar a rua da minha infância, vejo-a chegar. Estaciona o carro no lugar onde o seu pai estacionava um Datsun azul. Tira sacos de compra. Movimenta-se com lentidão. Continua a procurar as sombras. Já não estranho o facto de um dia ter sido o jovem médico bailarino que fez tremer os alicerces do nosso mundo. Perdoei-lhe, há muito, o facto de ter uns pés normais, sem o grotesco encanto dos pés do Rudolf Nuriyev.
Mãos
Quando casou, por imposição nunca totalmente assumida de Ester, passou a ir à missa. De início, custou-lhe. Era baptizada, fizera a primeira comunhão, havia em si o habitual temor reverencial a Deus, assente em subordinação e obediência, mas até aí vivera à margem de ritos, sacramentos e missas. Ester pressentia a descrença da nora, a gente do sul vivia num estado de ateísmo primitivo, sem fé verdadeira. Fazia por isso muita questão de que o filho não perdesse os princípios e valores com que o educara. Quisera casar com aquela rapariga? Pois muito bem, mas não havia de o deixar viver na estrema da decência cristã, sem sentir o cheiro do incensário durante a bênção do Santíssimo e o conforto da confissão mensal.
Nunca perguntava a Maria se queria ir à missa, limitava-se a telefonar na véspera a dar instruções:
- A missa começa às onze. Estou pronta às dez e um quarto. Fazem o favor de não chegar atrasados. A Maria já sabe que gosto de chegar a tempo de arranjar um dos lugares da frente. – Dizia, avinagrada, pouco se importando se, com as suas palavras, ganhava de vez a antipatia da nora.
Os lugares das primeiras filas, de preferência junto do corredor central, eram os predilectos de Ester. Não só proporcionavam a visão desafogada do presbitério, forrado com madeiras nobres e azulejos de padrão relevado, como também permitiam que fosse das primeiras da assembleia a comungar. E isso é que era verdadeiramente importante para Ester. Chegava-se ao sacerdote com ar de reverência, estendia a língua e logo a pequena bolacha, translúcida de tão fina, se desfazia na sua boca. Era tal o consolo que sentia que a hóstia, ázima e insonsa, lhe sabia às iguarias da vida. Voltava ao lugar com o coração palpitante, cheio de alegria pela união a Cristo e ao povo de Deus, sobretudo, satisfeita pelo protagonismo assumido na celebração. Ficava por isso aborrecida se Maria e o filho se atrasavam e já só arranjava lugar nas filas laterais junto aos altares dos santos menores. Passava a celebração amuada, mexendo sempre no colar de contas de jade. Espreitava a nora, culpando-a intimamente por não ter chegado a tempo de arranjar assento condigno ao protagonismo a que se julgava com direito. Bufava: não conseguia ver o altar em condições, mal se apercebia do cortejo de entrada, e, pior, demorava muito tempo a chegar ao corredor central na altura da comunhão. Era obrigada a permanecer na fila e esperar a sua vez. Quando finalmente chegava perto do sacerdote e se dava conta do prato já meio vazio, estendia a língua para receber a comunhão, fingia um ar solene, baixava as pálpebras em sinal de recolhimento, mas a hóstia já não lhe sabia bem. Mais parecia um pedaço de pão duro. O seu coração palpitava de irritação.
Casada de fresco, Maria teve a prudência de nunca confessar à sogra que pouca ou nenhuma fé tinha. Sentia desconforto durante a celebração: tentava disfarçar a sonolência que sempre lhe chegava na hora da homilia, imitava os gestos da assembleia, dizia o pai-nosso com convicção, mas balbuciava tudo o resto em surdina. Incomodavam-na sobretudo as mãos, não sabia o que lhes fazer, acabava por pousá-las ao longo do corpo numa rigidez que causava dormência.
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