Focada na cintilação do ecrã e nos papéis espalhados pela secretária, nem uma vez levantei os olhos para espreitar o azul na janela do gabinete. Reli o parecer, pareceu-me bem escrito, juridicamente fundamentado. Ao fim do dia, quando atravessei a 5 de Outubro, a caminho do cinema, senti-me tranquila. Dá-me prazer cumprir os meus deveres: fazer bem o meu trabalho, pagar as contas no início do mês. Parei na livraria. Comprei vários livros do Petzi. Para o Joaquim e para os meus sobrinhos mais pequenos. Vão abraçar-me e, felizes, dizer “Obrigado, tia Ana!” quando no sábado lhos oferecer. Amorzinhos do meu coração. O livreiro, coisa estranha, não conhecia “ Os três mal-amados”. Ficou de o tentar arranjar. O Carlos é o melhor livreiro de Lisboa e continua a roer as unhas. Quando cheguei ao cinema tive um desgosto. O filme com a Juliette Binoche já não está em exibição. Contrariada, bufando, acabei por ir ver um filme espanhol bastante mau. É uma merda, mas descobri uma canção tão bonita. La ninã de fuego. Que maravilha! A determinada altura, quando Bárbara entra na porta do lagarto preto, para o sacrifício, também se escuta uma das Gnossiennes de Satie, acho que a primeira. Lembrei-me de Nosferatu, da sua sombra assustadora projectada numa parede e de como nunca me meteu medo. Voltei a atravessar a 5 de Outubro para ir buscar o carro. A meio da avenida, perto de uma porta de ferro forjado, muito linda, toda aos arabescos, cruzei-me com um homem e uma menina que levava preso por um cordelinho um balão azul. De súbito, olhando-os, deu-me vontade de chorar. Chorei. Quando entrei no edifício da Caixa, o segurança reparou nos meus olhos cansados, velhos, cada vez mais pequenos, borrados de rímel, mas não disse nada. Voltei para casa em silêncio, na cabeça, um torvelinho de pensamentos sombrios. Aqueci o feijão guisado que sobrou do jantar de ontem. Fumei dois cigarros. Bebi dois copos de vinho. Tomei banho. Ainda pensei em ligar ao Ricardo para falar um pouco, não estou habituada a estar sozinha à noite, mas não fui capaz. Telefonei aos meus filhos.
Sou Ana de cabo a tenente/ Sou Ana de toda patente, das Índias/ Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada/ Sou Ana, obrigada/ Até amanhã, sou Ana/ Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos/ Sou Ana de Amsterdam.
2015/08/06
2015/08/04
Lâmpada
Esta noite, nunca tinha acontecido, acordei para escrever uma frase. Não propriamente uma frase, mas a sua estrutura, a sua forma. Uma frase composta, interminável, com sentido, sem sentido, morfologicamente pobre, despida do seu corpo, adjectivos, substantivos, mas com as vírgulas exactas, as pausas exactas, a cadência certa. Uma frase para ser lida em voz alta. De manhã, quando acordei (de um pulo porque, por causa do vinho e dos comprimidos, não escutei o despertador), fui lê-la. Pareceu-me ultrapassada, antiquada, aborrecida, sobretudo pretensiosa. Já não se escreve assim. Hoje em dia, a forma pouco interessa. Diz-se muito, mas tão pobremente, tão desconsoladamente, faz-se uma literatura que não cuida da elegância e da beleza. Por exemplo, há palavras que, de tão feias, nunca utilizarei. Javardo. Esgalhado. Reverberação. Prefiro ter pouco ou nada a dizer, mas fazê-lo de forma a embalar quem me lê. A música de um texto é importante. A frase que escrevi era sobre um nariz. Encontrei também, junto do caderno, a lâmpada do candeeiro da mesinha de cabeceira. Não me lembro de a ter tirado.
Subscribe to:
Posts (Atom)