2010/08/26

Shirley Jackson


É o melhor livro que li nos últimos tempos.

Egoísta

Saiu a Egoísta de verão. Traz a minha Alzira, livre dentro de uma capoeira.

Orinas

Vem ao meu lado no comboio. Tem as unhas pintadas de beringela, óculos rectangulares de massa e uma verruga com três pêlos ruços por cima do lábio. Olha as hortas e os bairros de Chelas com desinteresse. Em Marvila desperta-lhe o besouro e põe-se a falar com outra mulher. Estou tão mal, Sara! O ar condicionado deixa-me a orina entupida! explica, desesperada. Funga ruidosamente para que a tal Sara, que está do outro lado da linha, perceba que é verdade o que diz. A outra estranha a zona de entupimento. As orinas, as orinas! Então tu não sabes o que são as orinas, filha? e empertiga-se no seu lugar, aconchegando os óculos rectangulares de massa aos olhos. Olha em redor. Procura apoio na sua indignação. Dou-lha que sou pessoa infinitamente generosa. Onde já se viu não se saber o que é uma orina? Espreito-a pelo canto do olho. Já não a largo. Continuo com o livro aberto só para disfarçar. A mulher continua a conversar. Fala de um modo extraordinário. É incapaz de terminar uma frase de estrutura mais complexa e utiliza com frequência, para designar objectos, pessoas, sentimentos, a palavra “coisa”. Encolhe-se quando o assunto é mais delicado. É uma dessas pessoas cuja aparência de insignificância nos ilude porque provam a diferença entre invisibilidade e inexistência. Há pessoas que são tão insignificantes que se tornam singulares e, por isso, visíveis. Saio na minha paragem, triste por a deixar. A estação está deserta e o bafo quente da tarde envolve os passageiros. Rouba-lhes a pressa de chegar a casa. Um homem vem com o corpo alagartado. Deixa-se ficar para trás. Os membros estão recamados de escamas e placas calcárias. Quando abre a boca, mostra uma língua bífida, aninhada em serpentina. Desvio o olhar no preciso instante em que o homem lança a língua para caçar uma varejeira que descansa na onda de um grafiti. É um exibicionista e eu não gosto de exibicionistas. Aborrecem-me. Fico na plataforma a olhar o comboio que leva para longe a mulher das orinas entupidas.

2010/08/25

Superstition

Pirolito

Depois de estivador o meu filho mais velho quer ser agente da polícia judiciária. Agente e não inspector, esclarece enquanto limpa a loiça que lhe passo para as mãos. Não quer que me assuste a imaginá-lo numa faculdade de direito. Ela sabe que a mãe, débil, não resistiria a tamanho desgosto na vida. Deve ser triste, profundamente desolador, traumático mesmo, ter um filho que quer ser advogado ou gestor ou coisa que o valha. O João, talvez influenciado pelo criminoso de Carqueja, confessa, porém, que o amedronta a possibilidade de ser perseguido por um psicopata. Tenho medo mãe, e dá-me um abraço pateta em busca de consolo enquanto limpo, freneticamente, com um escovilhão azul petróleo, os biberões do Joaquim. Quer que a pobre mãe, lacrimosa, cujas entranhas lhe serviram de primeira morada, se compadeça com o seu trágico destino: agente da polícia judiciária perseguido por um qualquer maníaco da margem sul. Ou de Barcarena. Ou de Massamá. Ou de Camarate (em Camarate há um que eu já o vi, entre couves galegas e alfaces, piscando os olhos a uma fiada de bonecas empaladas). Termino o que estou a fazer e estilhaço o seu futuro de sofrimento e perseguição. Explico-lhe, olhando-o nos olhos, que não tem nada a recear. A psicopatia, por razões que não domino, é coisa de homens e os homens, toda a gente sabe, são muito merdosos e cobardes. Está-lhes na massa do sangue. Não valem um pirolito. Os psicopatas só gostam de matar mulheres, homossexuais e criancinhas. Ele escuta calado enquanto eu continuo por aí fora, animada com aquela oportunidade, não esperada, de poder insultar gratuitamente o género masculino. És louca, mãe, já te devias ter divorciado há muito tempo, diz-me por fim e sai da cozinha muito mais aliviado.

Gaston

Tenho uma embirração grande ao Caetano Veloso, ao Tiago Rodrigues (odeio-o) e ao André Vilas Boas. É um sentimento incontrolável que não consigo racionalizar. Fica nauseada só de os ver. Em contrapartida, aprecio muito o estilo do Gaston Lagaffe.

Abel

Um Abel qualquer coisa, especialista em saúde mental, escreve hoje no Público sobre a falta de candidatos presidenciais à direita. Está preocupado. A esquerda já tem quatro candidatos e, à direita, até ver, apenas se coloca a hipótese da recandidatura do actual presidente. Aquilo que à primeira vista poderia parecer uma vantagem para a direita, a proliferação de candidaturas de esquerda divide o eleitorado e torna certa a eleição de Cavaco, tem um travo amargo para o especialista em saúde mental, o tal Abel. Explica que, como muitos outros que integram a “ala católica”, não se revê nas atitudes e opções de Cavaco Silva. Quer uma alternativa que elucide e represente os valores e ideias da franja organizada da sociedade civil a que pertence: a ala católica. E propõe nomes: Ribeiro e Castro, Bagão Félix e Santana Lopes. Li a opinião do Abel pela manhã e passei o dia a pensar naquilo. Nem sei bem porquê. Tanta coisa importante em que reflectir e eu encalhada nas linhas escritas pelo Abel.

Não espanta que a ala católica se reveja em Bagão Félix e admita a candidatura de Santana Lopes. O primeiro gosta de botânica. É benfiquista e católico. Inteligente, argumenta com seriedade, sem sarcasmo ou cinismo. É difícil, mesmo para os que discordam das suas opiniões, não o respeitar. O segundo, não sendo um católico virtuoso, tem peso político e, sempre que pode, critica o actual presidente. O que me faz confusão é que a ala católica vá buscar um nome como Ribeiro e Castro. Dá vontade de soltar um palavrão. Não passa pela cabeça de ninguém. O estado da direita portuguesa é preocupante quando para candidato à presidência da república se aponta um nome como Ribeiro e Castro.

2010/08/16

Noite

Custam-me as noites. Mais que o resto.

Agosto

Sento-me de pernas cruzadas na cama, bebendo o chá muito devagar e olhando as fotografias dos miúdos. O João sopra bolas de sabão. A Madalena, de amarelo, foge. Deito-me atravessada na cama. É a minha posição preferida. Os pés ficam de fora e eu, tão pequena, sinto-me maior. Fecho os olhos para que a dor passe. Procuro lembrar os sonhos dos dias anteriores. Primeiro sonho: estou em Maputo e rodo a cidade num carro. Os prédios são altos, estão pintados de branco. Há roupa colorida nos estendais. A cidade não é a cidade. Tem lagoas nos arrabaldes. Parecem tanques gigantes esculpidos na rocha. Dois meninos mergulham e os seus corpos desaparecem na água que é verde e amarela. Árvores gigantes largam flores vermelhas pelo chão. O lento leva-as para longe. Olho as lagoas na companhia dos meus irmãos. Quero mergulhar, digo. Eles riem. Segundo sonho: estou nas escadas rolantes de um centro comercial. O Nicolau Brayner espera por mim no piso de baixo, junto de uma loja de mercearias finas. Olho a montra, onde frascos de ovas rivalizam atenções com garrafas de vinho italianas. Alguém nos persegue. Quem será? Fugimos. Eu vou dar a uma casa de madeira na falésia. O mar é tão escuro e bonito, lá em baixo. Estou nisto durante muito tempo. A reconstituir sonhos como quem reconstitui cenas de crimes. Enquanto resonho os meus sonhos, levo as mãos ao nariz. Cheiram a cebola e a alhos. Adormeço com o barulho de uma explosão pequenina. Durmo a noite toda. Tenho um sono descansado que é coisa que nunca tenho. Nem com os comprimidos cor-de-rosa que a minha mãe me dá. Triticut. Tritifur. Triticon. Tritiqualquer coisa. Acordo com a voz do António Macedo. Levanto-me assustada. Sinto-me inesperadamente leve. Reparo então que tenha um buraco no torso. Estou vazia por dentro. Oca. Faltam-me vários órgãos. Estranho a ausência de dor e a calma de me ver assim. Olho em volta. Descubro os meus órgãos espalhados pelo quarto. Recolho os meus pedaços de corpo. Vasculho os cantos e as sombras. O coração está por baixo da cama, esquecido entre dois pares de sapatos velhos. Ainda bate. Encaixo-o dentro de mim. Suturo-me com a linha que utilizo para apertar os rolos de carne.

Agosto 2007

Geater Davis- A sad shade of blue