2012/12/24

Índia

Rafael


A camioneta chegou a Pangim depois da hora da sesta, no preciso instante em que o sol começava a decair e a cidade se preparava para a frescura do entardecer. O início da noite traz às cidades do oriente uma aceleração de corpos e movimentos, luzes explodem por todos os cantos como fogos de artifício, misturam-se as conversas das pessoas com as conversas da gralhas que descansam nas copas das árvores enquanto debicam frutos maduros que pingam mel para os passeios. O início da noite não marca o fim do dia. Na Índia sempre tive a sensação de que o dia continua noite fora. Só termina quando fechamos os olhos. Procurei, no meio da multidão do terminal, Rafael, o amigo do meu pai, a convite de quem viera a Pangim. Não me deixou sozinha por muito tempo. Conheci Rafael o ano passado, no crepúsculo nacarado de Curtorim. É um goês alto. Tem a robustez de um herói grego. Usa o cabelo branco puxado para trás e óculos de aros pretos a marcar-lhe pesadamente o rosto. É um gigante delicado. É assim que o vejo. Corremos ao bairro das Fontainhas onde estava hospedado em casa de um amigo. “Venha, venha. O meu amigo vive rodeado de coisas preciosas.”, disse ao chegarmos a uma casa antiga cor de vinho. Perante o meu olhar inquisidor esclareceu: “Antiguidades!” Percival Noronha, o dono da casa, é mais velho do que Rafael, rondará os oitenta anos. Traz o corpo frágil. Há-de ter os ossos porosos e rendilhados. Ofereceu-me chá e um bolo escuro de frutas que vinha embrulhado em papel pardo. Caetano, o empregado que nos serviu, tinha o rosto puído pelos anos. Olhando em redor vislumbrei vestígios de uma Goa que desaparece com lentidão. Como um corpo que se afunda devagar nas águas densas e movediças de um pântano. As paredes esmaecidas com retratos de gente já morta. O mobiliário indo-português, cheio de arabescos e floreados, a fazer lembrar contorcionistas de circo. Livros e mapas espalhados por todo o lado. Loiças chinesas antigas, com desenhos de pagodes e pinheiros mansos, dormitavam nas vitrinas dos louceiros. Percival pediu desculpa pela desarrumação da sala e contou a sua história: os cargos públicos exercidos na Índia de Salazar, o interesse pela história de Goa, os convites das universidades portuguesas para leccionar, as recepções organizadas para os presidentes Mário Soares e Cavaco Silva, a paixão pela astronomia. De repente, interrompeu o seu relato e levantou-se, dizendo que estava na hora do lançamento do livro. Era para isso, para o lançamento de um livro na Fundação Oriente, que eu viera ao encontro de Rafael. Ao entrar no jardim da fundação, que fica na rua onde Percival mora, reparei que as pessoas se movimentavam com a cerimónia própria daquelas ocasiões. Avistei apenas dois brancos: um homem cujo rosto me pareceu vagamente familiar e uma mulher que espantava pela informalidade. O cabelo curto num desalinho. A ausência de pulseiras, brincos ou anéis. A roupa larga e sem corte. Achei-a feia, demasiado pálida. Fumava. Esse gesto pareceu-me insuportavelmente masculino e inadequado.

2012/12/12

Quimioterapia

-  A Graça chorou tanto hoje de manhã.
- Tem passado muito!
- Custa-me vê-la assim.
- Uma mártir!
- Contou que o marido continua a fazer-lhe a vida negra.
- A maldade está-lhe no sangue…
- Diz-lhe coisas horríveis.
- As tareias de morte que tem apanhado!
- Ela nunca me diz directamente que o marido lhe bate.
- Envergonha-se. Não quer aborrecer-te com os problemas dela.
- Mas devia.
- Mesmo assim, fraquinho da quimioterapia, continua a bater-lhe!
- Nojento.
- Era melhor que morresse….
- Não digas isso.
- Não digo isso? Acabava-se o martírio.
- É sempre horrível desejar a morte de alguém.
- Achas que ela, no fundo, bem lá no fundo, não deseja o mesmo?
- Acho que sim. Se ele morresse era um alívio.
- Claro que era! Os homens são todos uns cabrões, filha.
- Pois são, mãe.


2012/12/11

Sinos

Há dois sinos na minha vida. O sino da igreja de Nossa Senhora de Fátima que toca ao meio-dia e o sino da igreja de Moscavide que repica quando saio da estação de comboios e atravesso o parque de estacionamento à procura do carro. São dois sinos mansos, obedientes, disciplinados. É preciso estar com atenção para os escutar no turbilhão da cidade.

Irmã


Certa vez instruí a minha irmã mais nova sobre o meu funeral. Uma mulher deve ser previdente e cuidar de todos os seus assuntos, incluindo a morte. Se há coisa que me aflige é imaginar-me enterrada num cemitério com vista para a cril ou para a crel ou para a radial de Benfica. Junto a um retail park. Pedi-lhe que me enterrasse no cemitério da aldeia, perto dos nossos avós, onde, mesmo morta, possa sentir o cheiro das figueiras e escutar o ronco das motorizadas que, pela tarde, levam os velhos de volta para os montes. Que tratasse de me arranjar uma campa rasa, com uma lápide branca, sem fotografias ou epitáfios. Que me vestisse a saia antiga, rodada, de veludo cotelê, me apanhasse o cabelo numa trança e colocasse nas orelhas as arrecadas incas que nunca fui capaz de lhe oferecer. Se for tempo das dálias e dos cravos túnicos que peça licença à vizinha Teresa e à Preciosa dos queijos, a que é belfa e usa sempre um chapelinho de palha, para os apanhar dos canteiros e os coloque numa jarrinha branca. Fi-la prometer que me enterraria sem a presença de estranhos. Quero um funeral selecto. Com quem gosto. E preciso. Pai, mãe, tia, irmãos, filhos, sobrinhos, as primas da aldeia. Mais ninguém. Pedi-lhe, ainda, que cantasse o poema: Quando eu morrer batam em latas, rompam aos saltos e aos pinotes, façam estalar no ar chicotes, chamem palhaços e acrobatas! Que o meu caixão vá sobre um burro ajaezado à Andaluza... A um morto nada se recusa. E eu quero por força ir de burro. Ai dela que não me faça as vontades! Pobre e querida maninha. Hei-de voltar, pior do que fui, um espectro medonho e terrível, para lhe fazer a vida negra.

(A minha irmã anda triste, a precisar de amparo. É uma novidade. Sempre foi ela que cuidou de nós.)

Correr



(A minha filha, enfiada no seu edredão, livro pousado nas mãos de dedos esguios, pergunta-me o que gosto mais de fazer na vida.)