2009/04/29

Vidia


2009/04/27

A Casa dos Budas Ditosos

Interrompo o silêncio para um desabafo: a cadeia de supermercados Auchan baniu das suas prateleiras A Casa dos Budas Ditosos do João Ubaldo Ribeiro. Dizem os senhores que por lá mandam que o livro é pornográfico. Gesto tacanho, de imbecilidade necessariamente viril. Tive os melhores orgasmos da minha vida a ler o dito livro. Trouxe-o a minha irmã Susana de Brasília. Li-o às escondidas, com o coração acelerado, quando a casa paterna repousava de todos os seus outros habitantes. À conta dessas prazenteiras tardes de verão tenho até uma fotografia do escritor colada na porta do frigorífico. Perguntam-me os meus filhos quem é este senhor de bigode que aqui está? Não lhes respondo. Eu sei porque ele lá está. É, pois, absurda a atitude dos senhores do grupo Auchan. Em vez de banirem o livro do João Ubaldo Ribeiro das suas castas prateleiras, deviam encará-lo como um trunfo promocional, oferecê-lo, por exemplo, a todas as mulheres que fizessem compras superiores a cinquenta euros. Os senhores do grupo Auchan talvez não saibam mas um bom orgasmo, secreto, inesperado, proibido, dá mais felicidade a uma mulher do que os trocos que poupa comprando iogurtes de marca branca ou fraldas por atacado.

2009/04/23

Mr. Biswas

Estou em época de contenção. Poupo palavras. Fervilha o mundo e eu calo-me. Não escreverei sobre a insuportável Mísia, nem sobre o JP Simões (suspiro profundo), nem sobre o não sei quantos tiger man, nem sobre os quiosques da Catarina Portas, nem sobre a cimeira de Genebra, nem sobre as eleições na Índia e na África do Sul, nem sobre a Ilda, o Miguel, o Paulo, o Nuno e o Vital, nem sobre o Jardim Constantino, nem sobre a rua Pascoal de Melo, nem sobre o cheiro dos jardins de buxo e das petúnias floridas, nem sequer sobre o arquitecto desconhecido, Álvaro, que chega para a semana. Nos próximos dias, aviso os estimados leitores, as minhas palavras serão escassas. Evitam por cá passar. Nesta baiuca reinará o silêncio e o vazio. Tudo por causa de um tal Mr. Biswas que requer todas as minhas atenções.
(Explicaram-me um dia, já não sei quem, que ler é mais importante do que escrever. É bem verdade. Perco demasiado tempo a escrever tolices aqui.)

2009/04/17

Camus


Arranca Corações (2)

Os escritores de hoje não têm sentido do decoro. Não percebem que quem escreve deve mostrar-se com parcimónia. Esta exposição é sobretudo uma falta de respeito pelos leitores. Exijo, aos meus escritores, recato e clausura! Só assim poderei amá-los pelo que escrevem. De outra maneira, arriscam-se a ser apreciados pelo acessório. Eu explico com um exemplo concreto. O José Eduardo Agualusa esta semana deixou-se fotografar para a revista do expresso. As fotografias publicadas são a preto e branco, soturnas e envolventes. Fazem suspirar. Ora, eu não gosto particularmente dos livros que escreve. É uma embirração antiga que vem do tempo em que escreveu sobre a minha Índia. No entanto, acho-o um homem muito bonito, moreno, o cabelo rebelde, os olhos pequenos e escuros, a pronúncia do lado de lá (o que eu gosto daquela voz que tem no timbre os entardeceres mornos do sul). Compro sempre os livros do Agualusa. Leio-os, em parte, porque aprecio o invólucro do escritor. Acho, sinceramente acho, que não os leria se nunca lhe tivesse conhecido o rosto e se nunca lhe tivesse ouvido a voz. Se o Paul Auster fosse um gordalhufo, boçal e seboso, não teria a horda de fãs que tem por esse mundo fora. As trintonas tardias e as quarentonas adoram-no. Se em vez daquele olhar tresloucado, mas cativante, o Lobo Antunes fosse zarolho e belfo quem se interessaria por lhe ler a obra mais recente, indecifrável e neurótica? Tivesse o tal Paolo Giordano, o rapaz que escreveu o romance sobre os números primos, lábio leporino e orelhas de abano, em vez daquela beleza serena que suscita sentimentos concupiscentes, e nenhum editor o publicaria. Os tempos que vivemos são assim. Os escritores, como toda a gente, querem cativar-nos com todas as armas que possuem, as literárias e as outras.

(Estive quase tentada a comprar a lire, tal foi o matinal encanto que o arranca corações trouxe à minha sexta-feira. Só depois me lembrei que não sou capaz de ler duas linhas de francês.)

Arranca Corações (1)

Abriu uma tabacaria nova perto do banco onde trabalho. Tem uma boa oferta de publicações estrangeiras. Entretive-me, pela manhã, no escaparate das revistas francesas. A paris match, a magazine littéraire, os cahiers du cinéma, a fígaro, todas lá estão, apelando à minha alma francófila e levemente imbecil. Interessei-me pela lire que traz na capa uma fotografia do Boris Vian. Não o imaginava assim, delicado, frágil, com um ar núbil, quase pueril. Os escritores de antigamente têm destas coisas: surpreendem-nos. Apaixonamo-nos por eles por causa dos livros que escreveram e, depois, assim do nada, descobrimos que poderíamos amá-los por razões bem mais prosaicas. Aconteceu-me o mesmo com o Albert Camus. Descobri, há tempos, depois de lhe ler alguns livros, a fotografia que o Bresson lhe tirou. Desejei, de imediato, que saísse da tumba e me levasse para a Argélia, onde eu, de bom grado, passaria o tempo a preparar-lhe pratos de cuscuz e a cativá-lo com danças eróticas usando apenas um tarbuche. Lê-los, aos escritores de antigamente, é assim uma espécie de blind date (hei-de me vergastar, com fúria, por utilizar uma expressão inglesa). Quase sempre, não lhe conhecemos o rosto, a voz, as expressões, os interesses, as miudezas da vida privada, amores, filhos, loucuras domésticas. O mesmo não acontece com os escritores contemporâneos. A gente quer-lhes fugir e não consegue. Eles deixam-se fotografar, entrevistar, opinam sobre isto e sobre aquilo, escrevem em revistas, blogues, jornais, maçam-nos com opiniões e desabafos, integram júris variados, promovem encontros, aparecem em colóquios e seminários dissecando obras e personagens. Na verdade, os livros que escrevem parecem, muitas vezes, ser um mero acidente de percurso nas suas vidas literárias.

2009/04/14

Orangotangos

Tenho mais estima pelos orangotangos do Bornéu do que pelos terapeutas familiares. Infelizmente são os primeiros que estão em vias de extinção.

2009/04/13

Paquiderme

Sentei-me estrategicamente atrás de uma das colunas do refeitório de modo a poder observar a mulher paquiderme sem ser vista. Tenho gosto em observar tudo o que é diferente, esquisito, grotesco. Dos miseráveis às pessoas com deficiências várias, aleijões, chagas, deformidades, angiomas, todos despertam o meu interesse e me fazem arranjar estratagemas para observá-los, com detalhe, na sua estranheza e indigência. Um simples coxear me faz virar a cabeça. Enquanto mastiguei os lombinhos de garoupa tratei de olhar a mulher paquiderme. Deve pesar perto de duzentos quilos. É um monte monumental de carne flácida e gelatinosa. Só o rabo dela, colossal, há-de pesar mais do que eu. Tem, porém, um rosto bonito, uma pele lisinha, o cabelo penteado com preceito. Hoje usava, enrolado ao pescoço, um lenço com bolinhas de cor que lhe dava uma certa graça. Às vezes, o marido vem almoçar com ela ao refeitório. É miudinho. Ciranda à sua volta, mimando-a, fazendo-lhe festas no rosto, colocando-lhe o bracito por cima do ombro. Levanta-se muitas vezes para lhe trazer sobremesas de plástico, bavaroises de ananás e semi-frios de frutas vermelhas. Ela, lambona, tudo devora com prazer. O marido tem evidente orgulho no corpo da mulher. Desconfio que é um desses maravilhosos tarados que só sentem tesão chafurdando nas nalgas e nos refegos das mulheres gordas. Não consigo tirar os olhos de tão estranha parelha.

Gogol

Não há gato-pingado que, por estes dias, não fale do escritor russo Nikolai Gogol. Também quero aqui dar conta da importância da obra do escritor na minha vida: chamo Tchichikov ao meu filho Joaquim e ele, sempre tão distante e ausente, ri-se.

2009/04/11

2009/04/08

Anonimato

Tenho nome. Como toda a gente. Chamo-me Ana Cássia Rebelo. Escrevo o meu nome e continuo a ser ninguém.

2009/04/07

Hemisfério Sul

Aprecio a franqueza dos países do hemisfério sul. Lá, tudo é claro, transparente. São países que, em muitos assuntos, estão mais avançados do que nós. A sério. Por exemplo, assumem com naturalidade a corrupção, o clientelismo, a utilização do poder público para alcançar benefícios pessoais, a promiscuidade entre poder político e judicial. A corrupção é uma coisa assumida. É a engrenagem que tudo faz funcionar. Se não houvesse corrupção tais países entrariam em colapso. Todos, cada um à sua medida, corrompem e são corrompidos. Com transparência. Sem temer consequências ou represálias. Isso é bom. Uma pessoa sabe com o que contar. Evita a vergonha, o embaraço, o constrangimento do gesto. Ninguém hesita se quiser subornar alguém porque todos são subornáveis, negociáveis. Recordo, a este propósito, a primeira vez que visitei o seminário de Rachol, em Margão. Ouvira falar do altar da capela e queria conhecer de perto os anjos de olhos amendoados e cabelos negros que por lá vivem. O padre que me franqueou a visita ao altar era um velhinho goês, um santo padre, de batina branca e óculos de aros grossos, tímido e frágil como uma papoila. Cheirava a mirra, a turíbulo, enfim, às coisas santas desta vida. Para meu espanto antes de me deixar entrar estendeu-me a mão a pedir qualquer coisa. Balbuciou um português antigo e correcto. Explicou que só me deixava visitar a capela, que não está aberta ao público, mediante uma pequena contribuição pessoal. Não me fiz rogada. Com certeza senhor padre, tome lá cem rupias e deixe-me apreciar os anjos de cabelos negros em paz. Ficámos ambos satisfeitos.

(O que amofina em Portugal é a ilusão de que as coisas não são assim.)

2009/04/06

Escuridão

(também amo este homem.)

Gran Torino

(fui ao cinema com o meu filho mais velho.)

2009/04/03

Cagarlax

Sabe deus nosso senhor o trabalho que me dá passar vinte e quatro horas por dia trombuda, maldisposta, enfadada. Hoje, porém, ri, com gosto, sozinha. Por duas vezes: logo pela manhã, com o cagarlax do Miguel Esteves Cardoso e, no metro, com a maravilhosa fotografia do Nuno Costa Santos, o recém-empossado provedor do leitor da revista Ler. É muita risota para um dia só. Não estou habituada a tanta galhofa.

Boca

Um dia, quando o engenho chegar - tenho fé que chegará na quarta década da minha vida -, hei-de escrever um romance sobre as altas classes médias de Lisboa. Personagens de sexualidade ambígua, caçadores e caçados, gente intelectualmente superior, noites que desaguam no Lux. Uma coisa assim original e verdadeiramente interessante.

(que feia é a boca do Fernando Pinto do Amaral.)

2009/04/02

Olé

Escutei este fim-de-semana, na telefonia, a entrevista do grão-mestre. Esmerou-se por defender a sua ordem, atafulhada de princípios e homens livres. Notei-lhe a voz pouco firme, bruxuleante. Pareceu-me que a dentadura lhe sacolejava. Como se tivesse castanholas dentro da boca. Olé. Ele a falar de assuntos sérios e importantes para o futuro da humanidade. Eu a picar cebolas para as pataniscas de bacalhau e a pensar na mulher que lhe papou a amantíssima esposa. Feia, uma dessas lésbicas matulonas e tronchudas, incapaz de usar um rímel, um vestido, um colarzinho de pérolas de água. Apesar de tudo o que se passava, tinha o grão-mestre em grande consideração. Para além da esposa, apreciava-lhe os ideais de liberdade e fraternidade, gabava-lhe a filantropia e o humanismo.

2009/04/01

Lampedusa


Pão

Na última reunião do G8, em Julho, depois de uma manhã a discutir a crise alimentar no mundo, os poderosos deleitaram-se com dezanove iguarias preparadas por um chefe japonês. Comeram, entre outros pratos, milho recheado com caviar e ouriços-do-mar, enguias avinagradas e cordeiro aromatizado com trufas negras. Para a refeição inaugural da reunião do G20, Jamie Oliver, o delicioso cozinheiro que me acompanhou nas manhãs molengonas da terceira licença de maternidade, fará um menu mais frugal: espargos ingleses, peixe fresco e borrego temperado com alhos selvagens. Convém ter algum comedimento, alguma consciência social nestas ocasiões. Para não parecer mal. Entretanto, na costa da Líbia, continuam desaparecidos trezentos imigrantes. O número não é certo. Vinham da Somália, da Etiópia, da Nigéria. Queriam chegar a um sítio onde houvesse pão.