2010/10/24

PCP

O pcp, em cartazes que por aí andam espalhados, reclama ser a esquerda patriótica. Estranhei. As palavras, como as pessoas, também se catalogam, colam-se a realidades, têm um passado, uma história. Há palavras da direita e palavras da esquerda. Toda a gente sabe que a palavra pátria pertence à direita saudosista, nacionalista, aos salazaristas que levam coroas de crisântemos e gerberas a Santa Comba Dão. Nem o PP usa a palavra pátria nas suas campanhas.Qualquer pessoa associa a palavra pátria aos manuais escolares do antigo regime. É a nossa mãe protectora. Dócil, humilde, casta. É a pátria do império, dos heróis, dos santos, do povo obediente, da ordem, do senhor presidente do conselho e da governanta. Não há outra pátria. Que o pcp se assuma como esquerda patriótica (aquela que ama a pátria) é coisa bizarra. Sei que os entendidos explicam que o pcp sempre foi um partido patriótico, mas a utilização daquela expressão, apelando a um imaginário que, à primeira vista, é precisamente o oposto do do pcp, tem um propósito claro. A esquerda patriótica do pcp é como a fé debochada da Dilma Rousseff, a marioneta polida pelo Lula.Serve para conseguir votos, mesmo que seja à custa dos ideais que sempre defenderam.

2010/10/21

Domingo (2)

Quando o marido alterou os seus procedimentos, passando a procurá-la apenas nas noites de domingo, Odete aborreceu-se. Agradecia o sexo agendado, era ao domingo, sempre ao domingo, mas não suportava que os lençóis mudados ao sábado, imaculados, cheirando tão bem, a sabão de marselha, a aloé vera, a flores orientais, se sujassem no dia seguinte. Era o suor, eram os derrames ocasionais de esperma, era o cheiro animal de corpos, coxas, nádegas, o pénis do marido, a sua vagina nua, esfregando-se no tecido dos lençóis! Na noite seguinte, à segunda, deitava-se e sentia que não se deitava na sua cama. Era uma enxerga imunda. Um catre de asilo que roda de dono todas as noites. Um dia, puxando a roupa para trás, encontrou mesmo dois pelos púbicos do marido, muito pretos, encaracolados, aninhados em espiral como vermes. Analisou o problema. Percebeu que havia apenas uma solução: deixaria de mudar a roupa da cama ao sábado, passaria a fazê-lo à segunda-feira. Fazia-o, porém, com sacrifício. Sendo um dia de semana, a segunda-feira não lhe deixava muito tempo livre. Na altura, ainda os filhos eram pequenos, desde que entrava em casa até à hora do jantar, andava num corrupio: vigiava os trabalhos de casa, fazia o jantar, preparava as marmitas para o colégio, varria quartos, corredores, a sala, limpava as casas de banho, tratava da roupa. Por mais que tentasse, e tentou-o várias vezes, não conseguia desempenhar aquela tarefa antes do jantar. A mudança da roupa da cama ficava sempre para depois. Apressava a limpeza da cozinha, muitas vezes, não tinha sequer tempo para arear os bicos do fogão. Deixava a loiça a secar em cima do balcão e corria para o quarto. Perdia quase sempre o início da telenovela. O marido a chamá-la, Odete, anda, já está a dar a novela, ela no quarto a esticar lençóis, a enfiar o bico de pato nos cantos da cama, a zelar pela higiene do lar. Mas o sacrifício valia bem a pena! Aos domingos, o marido passou a sujar o que já estava sujo. Podia esfregar o corpo nos lençóis, soltar líquidos, impar, guinchar, cuspir se quisesse, podia esvair-se em sangue, derramar as entranhas, soltar mucos, esvaziar os testículos! Ela não se importava. No dia seguinte, mudava os lençóis, aspirava com o bico de pato os bichos que comiam pó, adormecia numa cama limpa. Na verdade, nas noites de domingo, nas tais noites que se tornaram ruma rotina inalterável, já lá vão tantos anos, o que menos custa a Odete é o sexo propriamente dito. O sexo é uma obrigação que cumpre como outra qualquer. Num instantinho a vida passou e uma mulher acostuma-se a tudo. Não sente dor. Não sente tristeza. Não sente nada. Não a aborrece o sexo que se pratica com hora marcada, muito pelo contrário, só tem a agradecer ao marido ter tornado o sexo numa rotina. Poupou-a à imprevisibilidade da coisa, evita-lhe a ansiedade, a angústia da incerteza. É ao domingo, sempre ao domingo. Ficaram os restantes dias da semana libertos, pode dormir descansada, adormecer em sossego: o sono não será interrompido para o cumprimento das obrigações conjugais.

Domingo (1)

Se pudesse, trocaria de imediato os lençóis da cama, porém o marido adormece rapidamente nas noites de domingo. É o tempo de ir à casa de banho lavar-se. Na volta, encontra-o sempre a dormir, ressonando baixinho, a culpa e a vergonha fugindo-lhe pela boca e pelo nariz, ficam os lençóis reféns daquele corpo, presos às suas carnes, com o cheiro da noite entranhado. Por causa dos lençóis Odete alterou a sua agenda doméstica. Nos primeiros tempos de casada, quando a prática dominical ainda não estava instituída - o marido tanto a procurava na cama ao domingo, como à quarta-feira, como à quinta-feira, montava-a sem agendamento prévio, em qualquer altura da semana, às vezes, duas noites seguidas, causando-lhe sobressalto, mialgias várias -, trocava a roupa da cama ao sábado de manhã. Gostava daquela tarefa doméstica mais do que qualquer outra. Encarava-a com um zelo especial. Começava por colocar os cobertores a arejar no parapeito da janela durante toda a manhã. Aspirava o colchão com cuidado, enfiando o bico de pato em todas as ranhuras e frestas da cama, expurgando assim o leito conjugal dos bichos que se alimentam do pó. Fazia a cama com movimentos vigorosos e precisos; os lençóis eram abertos com um gesto largo, sacudidos com rapidez, às vezes estalavam, ficava aquela brancura enfunada, a planar por instantes sobre o colchão. Esticava depois os lençóis muito bem, até não se ver um vinco, um engelho, uma ruga. Fazia pequenos nós nas extremidades do lençol de baixo para não se soltar. Tal técnica, sabia-o bem, trazia certas desvantagens: esgaçavam-se as fibras dos cantos do lençol e a engomagem tornava-se mais difícil, tinha de borrifar o tecido, encharcá-lo várias vezes até desaparecerem os vincos. Odete não se importava. Os nós asseguravam uma semana descansada, sem lençóis fugitivos. Depois, entalava bem os cobertores e fazia uma dobra perfeita com o lençol de cima, nem muito grande, nem muito pequena, o quadrilé bordado a ponto de cruz ficava sempre simetricamente colocado ao meio. Estendia, por fim, a colcha, dispunha os almofadões de folhos, olhava para a cama no meio do quarto limpo, o sol da manhã entrando pelas janelas abertas. Experimentava um momento de deleite e conforto.

2010/10/16

Domingo

Está acostumada às noites de domingo. Já nada lhe custa nas noites de domingo. As noites de domingo são previsíveis como os almoços de feijoada ao sábado. Desenrolam-se sempre da mesma maneira, nunca trazem surpresas ou sobressaltos. Só lhe custa, nas noites de domingo, certa falta de asseio. Não é que o marido não seja um homem limpo. Pelo contrário, os cuidados de higiene fazem parte da disciplina que julga essencial para se viver com decência. O marido exerce as rotinas com método e precisão. Toma sempre banho depois do pequeno-almoço. Escova os dentes durante um minuto. Muda de meias, cuecas e camisa todos os dias. Apara frequentemente os pêlos das narinas e das orelhas com uma tesourinha retorcida que guarda num estojo de couro. Vai ao barbeiro uma vez por mês cortar o cabelo. Usa a piaçaba para limpar a sanita. Nunca se esquece de puxar o autoclismo. Corta as unhas das mãos e dos pés com regularidade sem as deixar espalhadas pelo chão do quarto. Odete sabe que teve sorte com o companheiro que a vida escolheu para si. É trabalhador, cumpridor, reservado, bom pai, bom marido, muito poupado, trata da declaração anual de rendimentos e oferece-lhe um ramo de cravos no dia da mulher. Porém, quando, nas noites de domingo, se transforma noutro homem e exerce a sua prerrogativa conjugal, agarrando-a com brusquidão, abrindo-lhe as pernas, enterrando-se dentro dela, exigindo o que é seu por direito, traz entranhados no corpo os cheiros que se acumularam ao longo do dia: fezes, suor, urina, a aguardente que bebe depois do jantar, o tabaco que fuma enquanto vê o domingo desportivo, às vezes, até o cheiro gorduroso do peixe frito que comeu ao jantar. É essa mistura de cheiros, individualmente suportáveis, que a deixa um pouco nauseada. O marido, é assim que pensa Odete, podia fazer um esforço para a agradar. Tudo seria diferente se, nas noites de domingo, antes de vir ter com ela, se lavasse no bidé e passasse uma esponja por baixo dos braços. Não lhe custava nada. Perdia um minuto. Se fosse um homem romântico, podia até borrifar-se com um bocadinho da água-de-colónia que os filhos lhe ofereceram pelo aniversário.

Mas pior do que os cheiros que o marido traz no corpo são os líquidos que segrega e, no momento oportuno, liberta. Por mais que lhe recomende atenção, já lá vão tantos anos, precipita-se muitas vezes a soltar o pénis da sua vagina. O marido, nos breves momentos que se seguem ao orgasmo, antes de vestir de novo o seu corpo, a sua vida, a respeitabilidade e o bom senso, viaja até um mundo de desnorte e indisciplina. Ainda atordoado, zonzo de prazer, os olhos revirando em espirais frenéticas, parece não a escutar. Apesar dos gritos aflitos de Odete – Cuidado, filho! Olha que sujas os lençóis!- , respinga muitas vezes gotas leitosas de esperma para cima da roupa da cama. Quando isso acontece, e acontece muitas vezes, Odete pega num toalhete perfumado, tem-nos sempre à mão numa caixinha de plástica em cima da mesa-de-cabeceira, e esfrega o exacto local que o marido sujou.

2010/10/11

Justine

Recordo. Encontrei, certa vez, uma sem-abrigo que lera o Quarteto de Alexandria. Muito magra, de cabelo crespo, baço, tinha os dentes podres da heroína consumida durante de muitos anos. Na altura, tive a tentação de escrever sobre aquela mulher que dormia na rua, mas tinha um passado de leituras, interesses, sonhos. Recordo com precisão o seu aparecimento: o restaurante argentino, as sobremesas montadas com aparato em pratos de faiança colorida, quatro mulheres desconhecidas falando das suas sessões de psicoterapia, o empregado servindo copinhos de licor de rosas, eu, farta de ali estar, a pensar nos meus filhos, na falta que me fazem, a fazer um esforço para articular palavras, para mostrar interesse naquilo tudo. Foi então que uma mulher se aproximou da nossa mesa e ofereceu a revista cais. Notando o livro que tirei da mala para alcançar o porta-moedas, a mulher explicou que lera há muitos anos o romance de Lawrence Durrel. Confessou que, dos quatro livros, gostara mais, muito mais, do primeiro, Justine. Os olhos brilharam-lhe com saudade de um passado há muito esquecido. Percebi, naquele instante, que aquela mulher era a protagonista da noite. Nós, as quatro desconhecidas, que dissecávamos relações e beberricávamos copinhos de licor, éramos meras figurantes. Tínhamos tudo – problemas, angústias, sofrimento, também - mas faltava-nos densidade dramática. Senti-me inexistente ao lado daquela mulher. Nunca fui capaz de escrever sobre ela. Não sei explicar bem porquê. Senti que se o fizesse estaria a retirar-lhe a dignidade que lhe restava, a comer-lhe a sua individualidade, a reduzi-la a uma categoria, a um estereótipo. Isso pareceu-me monstruoso.

Onésimo

O Onésimo Teotónio Almeida encontrou, em São Miguel, um gasolineiro que lê Guimarães Rosa, Saramago, Eduardo Lourenço, outros que não recordo. Teve uma epifania tal que correu a escrever duas páginas sobre o assunto na revista Ler. Pouco mais faz do que elencar as obras que o gasolineiro de S. Miguel leu. É uma lista longa que tem tanto interesse como a lista que faço antes de ir às compras. Farinha, pensos higiénicos, leite, iogurtes, toalhetes, fraldas. Não me espanta que o gasolineiro, com a quarta classe ou coisa que o valha, leia o Guimarães Rosa. Assim como não me espanta que outros, com elevados conhecimentos, cargos digníssimos, nunca o tenham lido. O que me espanta é que o Onésimo Teotónio Almeida, com tanto saber, tantos graus, cátedras, tantos livros lidos, escreva um texto tão mau sobre alguém que é mais do que a lista dos livros que leu.

2010/10/09

Malick Sidibe


Lobo

Carla rodava no átrio da escola secundária, mal pousando os pés no chão encerado, evitando o ruído, escondendo-se atrás dos placares de informações da secretaria para não chamar a atenção. Comia pacotinhos de bolachas de água e sal nos intervalos. Parecia um esquilo. Não havia rapariga mais feia no liceu. Nem os olhos claros a salvavam. Era, por outro lado, desinteressante, muito aborrecida, chata. Tal carácter acentuava-lhe a feiura, tornando-a grotesca. Gostava de bordar a ponto cruz e encontrava conforto na aprendizagem da culinária. Certo dia, do nada, assim como que a querer meter conversa, explicou que sabia fazer rissóis, esclarecendo que o segredo estava na massa cozida e não no recheio. Ninguém lhe ligou. Ela lambeu os beiços e foi esconder-se atrás de um vaso a comer bolachas de água e sal.

Vestia fatos de treino de algodão. Sonhava soltar o seu primeiro beijo ao som das canções do Glen Medeiros. Miudinha, a voz fanhosa, muito irritante, fazia estremecer a alma mais bondosa. Quando falava, havia uma produção excessiva de saliva que se acumulava nos cantos da boca. Ficava aquela babugem de cuspo pairando ali, humedecendo-lhe os cantos, evitando as fissuras do cieiro. Carla aplicava-se no estudo com afinco, lia muito, fazia resumos que sublinhava com marcadores fluorescentes de várias cores. Até aí falhava. Nunca conseguiu ir além da mediania. Era fraca em quase todas as disciplinas, menos nas línguas estrangeiras, onde era assim-assim. Tinha um irmão efeminado, um ano mais velho, que dava ao rabinho escola fora. Chamavam-lhe Repolho, porventura por causa do tom esverdeado que, em dias de chuva, a pele do seu rosto tomava. Era uma cruz que Carla carregava contrariada.

Passaram exactamente vinte anos. Não voltei a vê-la. Soube que seguiu a sua fraca vocação. Tirou um curso de línguas. Ontem, encontrei-a na rua onde trabalho, a rua mais feia de Lisboa. Borriscava e a Carla passeava de mãos dadas com um marido muito magrinho, precocemente envelhecido. Atravessaram a rua perto do novo restaurante japonês que tem um letreiro cor-de-laranja torrado. Bufete de almoço a nove euros e cinquenta, incluindo café, uma bebida, sobremesa, e a Carla, à chuva, olhando com amor, tanto amor, o seu companheiro. Vestia um casaquinho de malha azul-escuro e calças vermelhas. Trazia um colar de contas, vermelho coral, rente ao pescoço. O colarzinho, de bom gosto, dava-lhe um certo sainete e, estranhamente, tornava a minha rua menos feia. Deve ter usado aparelho nos dentes. Nos tempos do liceu, os caninos encavalitados não a deixavam fechar a boca. Agora, sorri, confiante. Mostra uma fileira de dentes certinhos, grandes, brancos. Apesar do colarzinho e da dentadura nova, continua feia, com as ancas muito largas, obscenas e maternais. Parece feliz.

(Como sempre acontece, a inveja galgou sobre mim. Tornou-me num bicho de dentes aguçados, num lobo das estepes, faminto, passeando na rua mais feia da cidade. Olhei a Carla e quis ferrar-lhe os dentes, apossar-me do seu corpo, da sua vida, do seu marido de rosto esquálido e dedos amarelos de nicotina.)

2010/10/06

Mambo

El Sistema

No início do ano, passou no segundo canal um documentário sobre o sistema nacional de orquestras na Venezuela. El Sistema, como lhe chamam os venezuelanos, é a concretização do sonho de José António Abreu, economista e pianista amador, que, através do ensino da música clássica, criou um projecto único de inclusão social. Existem na Venezuela cerca de 125 orquestras juvenis que integram cerca de 250 mil crianças e jovens. A maior parte destas crianças vem de famílias pobres e muito pobres. No documentário, acompanhamos a história de Raul. Vive com a mãe, numa torre clandestina, de tijolos, cimento e grades, na periferia de Caracas. Levanta-se às seis e meia da manhã para comer tortilhas caseiras que a mãe lhe prepara. Raul vai à escola de manhã. Passa as tardes numa orquestra juvenil a tocar trompete. Fá-lo com uma alegria contagiante.

Tem um amigo gordo, caboclo de cabelo lustrado, que toca tuba. Tem uma amiga desdentada, de totós floridos, que toca flauta. O maestro é um jovem mulato, muito bonito, que anda de mota e cresceu num orfanato. As orquestras juvenis da Venezuela, criadas na década de 70, são um mecanismo precioso de integração. No documentário, José António Abreu explica que o sucesso, em parte, se explica pela miséria em que a maior parte dos alunos vive. A miséria traz-lhes abnegação, disciplina, força. Os meninos venezuelanos vêem nas orquestras do seu bairro, na aprendizagem da música clássica, uma maneira de se salvarem do gueto. Ao contrário, as crianças dos países desenvolvidos, as nossas, experimentam o tédio do excesso. Vivem na triste miséria da abundância. Se lhes derem um clarinete ou uma trompa olham com desprezo e correm para o facebook onde inventam, para si, uma vida de alegrias breves e amigos virtuais.

Não percebo um corno de música clássica. Gosto das tocatas de Bach, pouco mais. Porém, quando vejo as imagens do Gustavo Dudamel, o mais célebre aluno do sistema de orquestras venezuelanas, com os caracóis aos cachos, sorridente, dirigindo uma orquestra de brancos, negros, mestiços, fico arrepiada. Mais encantada fico quando, no fim dos concertos, a música clássica dá lugar aos ritmos populares caribenhos e os músicos se levantam para dançar. Os meninos do público, Raul e o seu amigo gordo, aplaudem. Gustavo Dudamel canta e dança. É maravilhoso. Há dois anos que tendo comprar um bilhete para o ver. Há dois anos que sou excluída do circuito feroz dos melómanos que açambarcam tudo. O próximo concerto é em finais de Janeiro na Gulbenkian. Os bilhetes estão esgotados há muito tempo. Vai a Gulbenkian encher-se de empalados para o ouvir. Os empalados, para quem não sabe, são aquelas pessoas que têm um pau enfiado pelo cu acima e se movimentam, muito sérios, muito direitos, digníssimos, sorrindo aqui e ali, pelos corredores dos teatros e auditórios. Em todo caso, se algum empalado - impossibilitado de ir ao concerto ou apertadinho com a crise instalada - quiser, mediante preço a acordar, dispensar-me um bilhete, eu aceito.

2010/10/05

Cemitério

Foi uma alegria quando o sexto esquerdo do prédio dos meus pais foi comprado. Finalmente, o último apartamento seria ocupado. Acabava, assim, o corrupio de potenciais compradores, gente que entrava e saia, examinando cada recanto, mexendo em tudo, olhando-nos, seus potenciais vizinhos, com a mesma frieza com que olhavam os mármores da entrada e os alumínios dos caixilhos. O prédio seria, por fim, poupado ao embaraço desses estranhos que pareciam fazer troça do nosso lar. Podia repousar na tranquila alegria de uma família completa. Logo se soube que o apartamento fora comprado por um casal de professores aposentados. Tinham apenas um filho que acabara há pouco tempo o curso de medicina. As características do novo agregado familiar agradaram a toda a gente. Num prédio de funcionários públicos, donas de casa, militares de pequena patente, retornados, um casal de professores proporcionava a decência escolástica que o exercício do professorado ainda gozava naquele tempo. Um jovem médico exerceria, por outro lado, uma boa influência nos miúdos que cresciam naquele bairro dos arrabaldes de Lisboa. Feita a mudança, o casal instalou-se. Os professores aposentados eram muito educados. Nunca estacionavam o carro no lugar dos vizinhos e traziam o patim da escada impecavelmente limpo. Já o filho, o jovem médico, logo na sua primeira aparição, provocou nos habitantes do prédio um desconforto miudinho. Era uma sensação estranha que não sabiam explicar. Parecia um bicho cocegando a pele.

Convidaram-me para escrever aqui durante o mês de Outubro. Nunca desperdiço a oportunidade de escrever. Convido-vos, estimados leitores, a ir espreitar o cemitério. Hão-de encontrar o resto do texto, bem como as respostas que dei a meia dúzia de perguntas. Durante o mês, haja tempo e inspiração, conto escrever mais qualquer coisita.