2011/02/25

Roda Viva

Static Man

Março, o meu mês, trará o novo romance da Lídia Jorge. Enquanto não chega, releio O Jardim Sem Limites, leitura recorrente porque tenho uma paixoneta antiga pelo static man. Por causa deste livro, há alguns anos, passei uma tarde em Alfama à procura da Rua da Tabacaria e da Travessa das Gáveas. As ruelas estavam cheias de brasileiros, mestiços de camiseta e calções curtos, e uma morrinha caía de um céu muito escuro e fechado. Havia turistas italianos, extasiados, muito tolos como sempre costumam ser, que fotografavam o rio visto de Santa Luzia. Descobri a Travessa das Gáveas num instantinho e tive uma desilusão. Das maiores da minha vida. Não era nada como a imaginara a partir do romance. Um muro alto, uma casa branca de cortinas rendilhadas, uma nespereira de frutos oxidados. Esperei pela rapariga cachalote enquanto mordisquei uma nêspera. Ela nunca chegou. Eu nunca descobri a Rua da Tabacaria.

Mal-amanhados

O Rui Lagartinho, no Público, escreve sobre o romance de estreia do Paulo Ferreira. Termina assim: “impressiona-nos que subsistam editoras que se dão ao luxo de se demitir da sua função mais nobre, deixando chegar às livrarias esboços mal-amanhados de romance como este”. Não conheço o Paulo Ferreira nem li o livro que escreveu. Sou incapaz de avaliar o acerto da crítica do Rui Lagartinho. Porém, o que diz em relação às editoras é bem verdade. Há editoras, a Quetzal é uma delas, que catam autores da blogosfera como se fossem piolhos, não percebendo que à blogosfera se vão buscar as pipocas doces e demais apreciadoras de sapatos de saltos compensados. Não se encontram na blogosfera bons escritores e boas escritoras. E não se encontram por uma razão simples. Não estão lá. O tempo da escrita literária é diferente do tempo da escrita blogosférica, corrida, desabrida, concreta, para consumo imediato. O tempo da escrita literária exige entrega e disponibilidade. É um tempo de solidão e angústia. É constrangedor encontrar esses livros mal-amanhados, como lhes chama o Rui Lagartinho, nos escaparates das livrarias. Até porque, quase sempre, são escritos por homens e mulheres interessantes, que, sendo bons bloggers, são maus escritores. Tais livros, no entanto, são sempre bem promovidos pelas editoras, as capas são catitas, os autores vão à televisão, dão entrevistas nos suplementos literários e os críticos amigos cumprem o seu papel, fazendo críticas jeitosinhas. De que vale escrever um mau livro?

Beco

Gritei a primeira vez e a chinesa largou o fresco do interior da loja de quinquilharia e assomou à porta. Gritei a segunda vez e dois rapazes do bairro, vestidos de preto, boné na cabeça, o corpo arrumado à parede suja de um prédio, entreolharam-se. Gritei a terceira vez e as freguesas da mercearia - uma velha de xaile e uma negra indolente de refegos -, largaram as compras e vieram postar-se na calçada, à espera de um espectáculo que as livrasse do tédio. Quanto mais eu gritava, mais o homem me apertava os pulsos, imobilizando-me à porta do restaurante indiano. Olhei-lhe para dentro dos olhos cada vez que gritei. Só quando gritei a quarta vez e o meu grito percorreu o beco, estilhaçando vidros, açoitando os gatos, matando baratas, é que o homem me largou.

2011/02/16

Baltazar Abelha

O operário desceu os sete lances de escadas. Chegou cá abaixo e explicou ao encarregado da obra que o morador do 7º-A se recusava a tirar os seus pertences da varanda: vasos, colchões velhos, cadeiras, até um armário de madeiras podres. Também se recusava a apanhar a roupa que se encontrava a secar nos dois estendais da janela da cozinha. O encarregado da obra era um homem sábio. Escutou em silêncio. Conhecia muitos axiomas e teorias. Sabia, por exemplo, que, sempre que nos aparece um problema pela frente, o melhor a fazer é torná-lo no problema de outra pessoa e esperar que ela o solucione. Olhou para a janela do 7º-A. Viu um homem de olhar alucinado; era Baltazar Abelha que os espreitava com um olhar ameaçador. Nem por um momento lhe passou pela cabeça subir os sete lances de escada e tentar convencer o morador do 7º-A a retirar todos os seus pertences da varanda e estendais. Explicou ao operário que deveriam esquecer o sétimo andar e começar, desde já, a pintura do oitavo andar. Ligaria para a câmara ao final do dia. Eles que mandassem algum técnico da divisão administrativa tratar do assunto. Por ele, o edifício C do bairro camarário podia ficar assim: fachadas tratadas com aprumo, raspadas, reparadas, banhadas com impermeabilizantes anti-musgo e anti-bolores, pintadas a rolo com a cor escolhida pelos arquitectos da câmara, um rosa chá muito clarinho, a fazer lembrar vivendas à beira-mar com floreiras perfumadas; as paredes exteriores do 7º-A mantendo para sempre a sua cor original, azul tempestade, esboroado, estalado, furioso, cheio de manchas de salitre.

Dr. Spock

A Joana Amaral Dias arranjou as sobracelhas.

Fecha-te Sésamo

O marido está finalmente despachado. Odete afasta-o com as mãos. Levanta-se com cuidado. Veste o robe que está aos pés da cama. Contrai os músculos do períneo a ver se fecha a abertura vaginal. Fecha-te Sésamo. Caminha até à casa de banho para se lavar. O percurso é longo. Os seus passos tornam-se leves, os pés mal tocam no chão para que o impacto não provoque um derrame inesperado. À cautela, não vá escapar-se uma gota e salpicar o soalho que lhe dá tanto trabalho a encerar nas manhãs de sábado, coloca sempre a mão por baixo da vagina. Vai pelo corredor, o robe aberto, pisando a passadeira de linólio, os músculos do pavimento pélvico contraídos, as mãos rebentadas de picar alhos e cebolas a amparar qualquer fuga. Duas andorinhas de loiça esvoaçam nas paredes e, no seu nicho, uma nossa senhora de fátima padece numa luz triste, vermelha de lupanar. Quando finalmente se senta no bidé, suspira de alívio. Nem uma gota se perdeu. Sacoleja o corpo a ver se lhe arranca os resquícios que o marido lá deixou. Depois de lavada, veste umas cuecas de algodão e a camisa de noite. Volta para o quarto. Deita-se à bordinha da cama. Adormece.

2011/02/07

No cars go

Chuva

Era o tempo dos cisnes, dos patos, das folhas da árvore de borracha que cheiravam a manteiga, do Jardim do Torel onde viviam todos os bichos-da-seda da cidade, enrolados sobre si, alheios ao ruído e ao frenesim. Era o tempo dos sonhos. Adormecia e, na escuridão, apareciam árvores com copas cor de cobre, milheirais, precipícios, gigantes que tinham sempre o rosto meigo de um primo afastado que estava internado no Júlio de Matos. Também eu, por vezes, aparecia na escuridão da noite e dos sonhos. Usava socas e tinha as unhas roídas. Nesse tempo não percebia ainda o meu corpo. Sabia apenas que se apertasse as coxas com muita força, durante algum tempo, até ao limite da exaustão, o meu avesso, o meu lado de dentro, seria invadido por uma crescente onda de calor que, pouco depois, se transformava numa sensação única, a melhor que até então experimentara. Aquela sensação durava pouco, era um arrepio, uma vertigem, uma explosão, mas era de uma intensidade tal que valia bem o esforço físico que exigia de mim. Depois da exaustão e do prazer chegava um cansaço morno, muito bom, que me deixava o corpo adormecido e apaziguado. Fazia-o em segredo porque era uma coisa boa e, naquele tempo, todas as coisas verdadeiramente boas - mascar pastilhas elásticas, beber coca-colas, brincar no pátio, experimentar os sapatos de saltos altos da minha tia, enterrar as mãos na terra, pegar na minha irmã recém-nascida ao colo - eram proibidas. Fi-lo durante a infância e a adolescência. Sempre em segredo. Partilhava o quarto com a minha irmã. Esperava que ela adormecesse. Na escuridão, em vez dos gigantes e das árvores com copas cor de cobre, apareciam então mãos que percorriam o meu corpo com vagar e urgência. Nunca percebi se a minha irmã, aconchegada no seu sono, escutava o restolhar dos lençóis e os gemidos quase inaudíveis que, volta e meia, não conseguia calar. Só sabia que a minha escuridão era diferente da dela.

Durante muito tempo, uma eternidade, achei que era a única rapariga do mundo que me masturbava. Sabia que os rapazes o faziam. Falavam entre eles sobre o assunto, vangloriando-se, de modo um pouco absurdo, das raparigas que imaginavam enquanto se tocavam freneticamente. A masturbação (palavra proscrita naquela altura no universo feminino e agora também) era permitida aos rapazes porque era uma inevitabilidade da sua natureza. Revelava virilidade e mostrava o lugar que homens e mulheres tinham na ordem do mundo. Os homens masturbavam-se, as mulheres não. Ponto. O prazer que uma mulher sozinha arrancasse do seu corpo era pecado, era uma coisa muito suja, muito porca, sinal de desvario, de transvio. Cabia aos homens inaugurar a vida sexual das suas namoradas e esposas. Na verdade, devia ser assim porque eu não conhecia uma única rapariga que se masturbasse. As minhas amigas nunca falavam do assunto e faziam um esgar de sincero nojo se a palavra “masturbação” fosse pronunciada. Convenci-me, pois, que era a única rapariga do mundo que pensava em sexo. Esse sentimento de orfandade, de pária, de indigente, deixava-me num estado de inquietude e incerteza. Por um lado, cedia aos ditames dos bons costumes e achava que estava perdida. Lastimava a minha pouca sorte. Queria ser como as outras raparigas que viviam dentro de corpos mortos. Essas raparigas, já mortas, morriam todas as noites um bocadinho mais. Era assim que eu queria ser. A vida de uma mulher morta é um sossego. Às vezes, porém, dava por mim a achar que o meu segredo tinha um lado bom: a prática de tantos e tantos anos de masturbação havia de me tornar mais tarde numa amante eficiente e competente.

Percebi que era uma mulher normal, alguns anos mais tarde, quando vi o primeiro filme do Steven Soderbergh. Foi uma revelação. Afinal havia mulheres como eu, mulheres que gostavam de sexo e que não esperavam pelos homens para cumprir os seus desejos. Suspirei de alívio. Ainda por cima, as mulheres desse filme, são só duas, eram muito mais bonitas e interessantes do que aquelas com quem me cruzava no bairro e na universidade. Tal facto consolou-me. Apaixonei-me naturalmente pelo James Spader, o impotente. Ainda hoje, quando penso no assunto, acho que o parceiro ideal para mim devia ser assim, impotente. Mas isso são conversas que ficam para outra ocasião. Nesse verão pedi à minha mãe que me costurasse um vestido largo, tipo bata, com botões à frente, igual aos que a Andie MacDowell usa no filme. Acreditei que um dia havia de amanhecer perto de alguém a quem pudesse dizer “parece que vai chover” e que esse alguém saberia ler tudo o que essas palavras não dizem. Hoje, passados tantos anos, lido bem com o meu onanismo. Faz parte de mim. É uma competência. Uma espécie de qualificação.

Março 2010

(O meu filho João utiliza a palavra masturbação com uma naturalidade que me dasarma.)