Sou Ana de cabo a tenente/ Sou Ana de toda patente, das Índias/ Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada/ Sou Ana, obrigada/ Até amanhã, sou Ana/ Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos/ Sou Ana de Amsterdam.
2011/02/25
Static Man
Mal-amanhados
Beco
2011/02/16
Baltazar Abelha
Fecha-te Sésamo
O marido está finalmente despachado. Odete afasta-o com as mãos. Levanta-se com cuidado. Veste o robe que está aos pés da cama. Contrai os músculos do períneo a ver se fecha a abertura vaginal. Fecha-te Sésamo. Caminha até à casa de banho para se lavar. O percurso é longo. Os seus passos tornam-se leves, os pés mal tocam no chão para que o impacto não provoque um derrame inesperado. À cautela, não vá escapar-se uma gota e salpicar o soalho que lhe dá tanto trabalho a encerar nas manhãs de sábado, coloca sempre a mão por baixo da vagina. Vai pelo corredor, o robe aberto, pisando a passadeira de linólio, os músculos do pavimento pélvico contraídos, as mãos rebentadas de picar alhos e cebolas a amparar qualquer fuga. Duas andorinhas de loiça esvoaçam nas paredes e, no seu nicho, uma nossa senhora de fátima padece numa luz triste, vermelha de lupanar. Quando finalmente se senta no bidé, suspira de alívio. Nem uma gota se perdeu. Sacoleja o corpo a ver se lhe arranca os resquícios que o marido lá deixou. Depois de lavada, veste umas cuecas de algodão e a camisa de noite. Volta para o quarto. Deita-se à bordinha da cama. Adormece.
2011/02/07
Chuva
Durante muito tempo, uma eternidade, achei que era a única rapariga do mundo que me masturbava. Sabia que os rapazes o faziam. Falavam entre eles sobre o assunto, vangloriando-se, de modo um pouco absurdo, das raparigas que imaginavam enquanto se tocavam freneticamente. A masturbação (palavra proscrita naquela altura no universo feminino e agora também) era permitida aos rapazes porque era uma inevitabilidade da sua natureza. Revelava virilidade e mostrava o lugar que homens e mulheres tinham na ordem do mundo. Os homens masturbavam-se, as mulheres não. Ponto. O prazer que uma mulher sozinha arrancasse do seu corpo era pecado, era uma coisa muito suja, muito porca, sinal de desvario, de transvio. Cabia aos homens inaugurar a vida sexual das suas namoradas e esposas. Na verdade, devia ser assim porque eu não conhecia uma única rapariga que se masturbasse. As minhas amigas nunca falavam do assunto e faziam um esgar de sincero nojo se a palavra “masturbação” fosse pronunciada. Convenci-me, pois, que era a única rapariga do mundo que pensava em sexo. Esse sentimento de orfandade, de pária, de indigente, deixava-me num estado de inquietude e incerteza. Por um lado, cedia aos ditames dos bons costumes e achava que estava perdida. Lastimava a minha pouca sorte. Queria ser como as outras raparigas que viviam dentro de corpos mortos. Essas raparigas, já mortas, morriam todas as noites um bocadinho mais. Era assim que eu queria ser. A vida de uma mulher morta é um sossego. Às vezes, porém, dava por mim a achar que o meu segredo tinha um lado bom: a prática de tantos e tantos anos de masturbação havia de me tornar mais tarde numa amante eficiente e competente.
Percebi que era uma mulher normal, alguns anos mais tarde, quando vi o primeiro filme do Steven Soderbergh. Foi uma revelação. Afinal havia mulheres como eu, mulheres que gostavam de sexo e que não esperavam pelos homens para cumprir os seus desejos. Suspirei de alívio. Ainda por cima, as mulheres desse filme, são só duas, eram muito mais bonitas e interessantes do que aquelas com quem me cruzava no bairro e na universidade. Tal facto consolou-me. Apaixonei-me naturalmente pelo James Spader, o impotente. Ainda hoje, quando penso no assunto, acho que o parceiro ideal para mim devia ser assim, impotente. Mas isso são conversas que ficam para outra ocasião. Nesse verão pedi à minha mãe que me costurasse um vestido largo, tipo bata, com botões à frente, igual aos que a Andie MacDowell usa no filme. Acreditei que um dia havia de amanhecer perto de alguém a quem pudesse dizer “parece que vai chover” e que esse alguém saberia ler tudo o que essas palavras não dizem. Hoje, passados tantos anos, lido bem com o meu onanismo. Faz parte de mim. É uma competência. Uma espécie de qualificação.
Março 2010
(O meu filho João utiliza a palavra masturbação com uma naturalidade que me dasarma.)