2006/12/29

Vicks inalador

Tenho uma grande constipação,
E toda a gente sabe como as grandes constipações
Alteram todo o sistema do universo,
Zangam-nos contra a vida,
E fazem espirrar até à metafísica.
Tenho o dia perdido cheio de me assoar.
Dói-me a cabeça indistintamente.
Triste condição para um poeta menor!
Hoje sou verdadeiramente um poeta menor.
O que fui outrora foi um desejo; partiu-se.

Adeus para sempre, rainha das fadas!
As tuas asas eram de sol, e eu cá vou andando.
Não estarei bem se não me deitar na cama.
Nunca estive bem senão deitando-me no universo.

Excusez un peu... Que grande constipação física!
Preciso de verdade e da aspirina.

Álvaro de Campos

2006/12/28

Sandokan


(Quando era muito, muito, pequenina achava o Sandokan o homem mais lindo à face da Terra. Não havia outro igual. O que eu gostava dos turbantes e das lutas de sabre.)

Clara

Não sei em que dia foi. Nem em que mês. Só sei que foi antes do Verão. Usava uma saia de bombazina rodada e uma camisa branca com arabescos vermelhos. Lembro-me de ir na ambulância e de um bombeiro falar comigo. No hospital, enfiaram-me um tubo pela boca dentro. Durante a noite arranquei-o com as duas mãos. Doeu-me. Foi como se me arrancasse de mim própria. Ao meu lado, uma velha, muito velha, gemia. Adormeci. Pela manhã, cedo, levaram-me ao médico de serviço. Não lhe fixei o rosto. Só sei que era grande. Como um lutador de sumo. Perguntou-me se queria ir descansar para o Júlio de Matos. Disse-lhe que não. Dispensava o estigma. Foi precisamente esta a palavra que utilizei. Estigma. No preciso instante em que utilizei esta palavra tive noção da sua desadequação. O médico receitou-me uns comprimidos e disse para, em quinze dias, ir a uma consulta de psiquiatria. Anui. Procurei o meu casaco e saí para fora. O meu marido esperava-me. Olhei-o e, não sei porquê, desatei a rir à gargalhada. Quanto mais olhava para ele, triste como um animal manso, esguio, esquálido, mais vontade tinha de rir. Ele abriu a porta do carro. Sentei-me. Pelos vidros passeavam-se os prédios, as árvores e os cartazes da avenida. Continuei a rir. O meu corpo sacolejava com as gargalhadas. Ouvia-se o silêncio do meu marido e eu sempre a rir. Depois parei e vomitei.

2006/12/27

Marsiglia

A Mila foi a Veneza e trouxe-me um sabonete de marselha. Melhor, um sabonne de marsiglia, que é o que se lê na etrusca embalagem. Ri-me. Ela também se riu ao perceber que eu, apesar de não muito esperta, captara o sentido daquele presente. É que o Manuel da Silva Ramos, no seu último livro, um manicómio de palavras que ambas lemos, confessa lavar vigorosamente o seu pénis com sabão de marselha (ele, um descaradão, chama-lhe mesmo caralho, eu é que não lhe chamo assim, por ser donzela casta, delicada, contida, incapaz de utilizar tal palavra.)

Muda

Desde pequena que sonho partir um braço ou, em alternativa, ficar afónica. Infelizmente, tal nunca sucedeu. Os meus braços mantiveram-se sãos e inteiros à custa da benévola tirania da tia Dé que gritava mal nos via cabriolando. Chegou a sugeriu aos meus pais que brincássemos de capacete na cabeça para evitar traumatismos cranianos. Quanto à mudez, quis o destino, esse malvado, que constipações e gripes nunca me atingissem a fala. Cada vez que acordava um pouco mais rouca almejava estar afónica, para não ser interpelada pelas professoras e fazer ar de coitadinha no recreio da escola. Hoje acordei ranhosa, com uma aspereza muito grande na garganta. Pensei. É desta que estou afónica. É desta que vou passar o dia a fazer sinais às pessoas, a dizer que não posso falar. Enganei-me. Quando os miúdos se pegaram ao pequeno-almoço, supliquei-lhes que parassem. “A vossa pobre mãe está doente!”, disse-lhes baixinho. Ignoraram-me. Detesto que me ignorem. Fugi pelo corredor, tiritando de frio, enfiando as calças, e dei-lhes um grito que deve ter-se ouvido no sétimo andar. Voltei para o quarto, resmungando contra as agruras matinais da minha vida. Foi, pois, com enorme desilusão, que percebi que não estou afónica. Estou só muito ranhosa e um pouco rouca.

2006/12/26

Índia


(Ainda me custa acreditar. Começo a ficar nervosa. Tenho vontade de vomitar. Os nervos dão-me para isto. Cada vez que penso nos miúdos tenho vontade de desistir. Ela quer que lhe traga um esquilo do quintal. Prometes, mamã? Prometo, filha. Ele não percebe que interesse posso ter em conhecer um país onde, em vez de futebol, se joga críquete. É muito homem, o meu filho.)

Libélulas

Quando estou em baixo, que não é o caso, para além dos comprimidos letais lembro-me do senhor-professor-doutor-poeta-não-surrealista-que-hoje-faz-anos, passeando, vagaroso, pelo bosque de árvores centenárias, onde vivem libélulas gigantes que meninos salvam dos lagos com pauzinhos e caninhas. Com a sua voz, um ribeiro de água transparente e fria, disse que eu, Ana Clara Costa Cássia Rebelo, sou uma mulher muito interessante e enigmática. Sinto-me logo melhor quando penso nisto. Até me esqueço do buço proeminente, da pele acneica e daquela questão sexual que me perturba. Mas não tem razão, o poeta. Sou interessante, é verdade, apesar disso resultar, em parte, da psicose de que padeço. Mas não sou enigmática. Nadinha.

Serafim

O peixe está moribundo. Flutua no balão de vidro, com o papo muito inchado, as barbatanas murchinhas, os olhos remelgados, fixos no tecto. Parece um astronauta dentro de uma nave espacial. Flutua como se não houvesse gravidade, sempre de barriguinha para cima. Uma coisa estranhíssima. Por mim, há muito, que o teria deitado pela retrete abaixo. A Cristina, minha colega de gabinete, é que mo proibiu. Abriu-me muito os olhos e disse “ Ana, não te atrevas!” Gosto tanto da Cristina, mas desconfio que ela é contra a eutanásia. Pobre Serafim, vai penar até se finar.

2006/12/21

Livro (2006)


Gargantua et son fils Pantagruel, par François Rabelais, 1537

Irritações

Já não posso com botas de cavaleira, artefactos feitos em feltro (colares, bonecas, bonequinhas, bolsas, malas, pregadores, brincos) e unhas pintadas de vermelho escuro. Até a anã, responsável pela loja de animais onde costumo ir, que tem para aí um metro de altura e voz de falsete (faz lembrar um roedor), usava as unhas pintadas de vermelho escuro. Fiquei agoniada e feliz por ter as unhas ratadas, branquinhas, cheiinhas de peles. As mulheres chegam a ser quase tão estúpidas como os homens.

2006/12/20

Mexia

Nunca comento blogs alheios. Aliás, para me colocar acima da ralé, finjo que os não leio (na verdade leio três ou quatro blogs). Só que desta vez não aguento. O Pedro Mexia, que tem um dos poucos blogs que me habituei a ler, assegura que numa semana foi três vezes ao teatro. Explica que esse devaneio, esse exagero teatral só ocorreu porque estava em Londres, cosmopolita, moderna, diversificada, e não em Lisboa, armada aos cucos, bolorenta. É uma atitude tristemente provinciana. Condiz em absoluto com a infundada vaidade que enche o traseiro, quase de certeza furunculoso, do Pedro Mexia.

Desejo

O ano passado formulei três desejos para 2006: ter outro sobrinho, ir à Índia e arranjar umas sapatilhas all star pretas iguais às daquele rapaz engraçado que é vocalista dos Stroke. Realizaram-se dois dos meus desejos. Desisti das sapatilhas (não tenho idade nem estilo para andar de all star pretas). Não está nada mal. Como a coisa correu tão bem em 2006, tenho de pensar, com cuidado, nos desejos para 2007. O mais evidente seria pedir de volta a minha libido, aquela que nasceu comigo e que, desde criança, me acompanhou como boa amiga, nunca me envergonhando, apesar de descarada e desregrada. Viver assim amputada, entregando-me aos outros, sem me entregar a mim, não está com nada. Provoca, aliás, imensa frustração. Há quem viva bem sem sexo, entregando-se aos filhos, à casa, à carreira, ao tricot, às viagens, ao marido, às lojas das avenidas. Não é o meu caso. Não há nada como sentir a cama como uma enxovia. Não há nada como nos tocarem nas mamas e sentirmo-las flácidas, amorfas, distraídas. Dá vontade de as espancar. Enfim, uma tragédia. Porém, pensando bem no assunto, há uma coisa que me daria mais satisfação do que ter de volta a libido. Há. Já sei o que pedir.

2006/12/19

Visconde cortado ao meio

Voltei a encontrar o visconde cortado ao meio, a metade de homem que mendiga na estação dos Restauradores. Gritava com um outro homem que, inteiro, de pele tisnada, se assemelhava a um espectro. Era óbvio que rondava as poucas moedas arrecadadas durante a manhã pelo homem cortado ao meio. Fico sempre na dúvida. Terá ou não pénis? Em princípio tem pénis para urinar e ânus para defecar. Mas entumecerá o seu pénis? Terá companheira? Haverá quem se deite com o visconde cortado ao meio? No livro do Albert Cossery, Altivos e Mendigos (ou mendigos e altivos, nunca sei), há um homem assim, decepado, que, para espanto dos outros, provoca um ciúme doentio à sua mulher. Cada vez que passo pelo visconde cortado ao meio olho-o de viés, fixando-me nas suas partes baixas. Nada transparece. E se alguém por ali passar e, com maldade, lhe der um piparote, um empurrão? Ficará deitado, desesperado, bramindo ajuda aos transeuntes apressados da avenida que passam a caminho de sítio nenhum.

Confissões

Duas confissões. Primeira: Nem tudo o que aqui se escreve é verdade. Por exemplo, sou levemente frígida e depressiva, mas não sou nem alcoólica, nem suicida. Segunda: Gosto mais do Bryan Adams do que do Ryan Adams, o que, no panorama actual, me torna assim num ser abjecto e desprezível.

Natal


(É sempre mais prudente comprar as prendas que queremos que os outros nos ofereçam.)

2006/12/18

Mandamentos

Esta noite não fumarás. Cigarro atrás de cigarro. Até ficares com a boca com gosto e cheiro de estrebaria. Um odor acre de mijo de caprinos ao acordar. Esta noite não beberás. Nem martinis. Nem copos de uisqui com água gaseificada. Nem copos de vinho. Nem cervejas pretas. Esta noite não lerás. Nem a Bíblia dos Capuchinhos. Nem o livro de capa amarela e letras azuis. Com frases e pessoas inacabadas lá dentro. Nem o outro de capa castanha e letras bege que um colega de escritório te ofereceu no Natal. Esta noite não ligarás o pc. Personal computer. Deixa-o dormir na quietude fria da noite que é animal de estimação como outro qualquer. Esta noite não escreverás. Em sítio nenhum. Só deve escrever quem sabe. Ignorarás a Domitília Vento, a Rosa Maria, a Guiomar, a Judite e a mulher albina, de olhar simiesco, da estação de comboios. São mulheres que vivem dentro da tua cabeça. Esta noite não tomarás os comprimidos que escondes numa caixinha de cartolina roxa por baixo das cuecas e sutians. Estás demasiado cansada para morrer. Às vezes é menos cansativo viver do que morrer. (Parolada dos diabos.)

Bailarina russa

- Gostas mais do Chico Duarte, do Zeca Afonso ou do Sergio Gordinho?
- Gosto de todos.
- Mas gostas mais de qual? Diz!
- Gosto mais do Zeca Afonso.
- Porquê?
- Não sei. E tu?
- Gosto mais do Chico Duarte.
- Porquê?
- Porque tem bigode e canta a canção do João e da Maria.
- É bonita, essa canção.
- Mas também gosto das canções da Floribela.
- Eu também gosto.
- Gosto do Chico Duarte e da Floribela.

(Sentada na bancada da cozinha, com um penteado de bailarina russa, cheio de ganchos, elásticos e tranças, teatraliza a cantiga do formiga no carreiro. Exige que a emite. Aos nossos pés, a Julieta boceja. Sou uma mãe estupidamente babada. Credo. Como vou passar um mês, inteirinho, sem os ver?)

2006/12/15

Ensopado de lulas

A minha sogra gosta de provocar os outros. Fá-lo com inteligência e intuição. Muitas vezes os outros não percebem que estão a ser provocados ou gozados. É uma qualidade que lhe aprecio. E invejo. Hoje teve o descaramento de me dizer, como se fosse a coisa mais natural do mundo, que a Julieta, a minha Julieta, a Julieta que podia ter nascido do meu ventre, tal é a parecença no mau feitio, é uma cadela muito, muito feia. Horrível!, chegou a dizer. Olhei primeiro para a Fátima que me preparava o almoço, um fumegante ensopado de lulas. Procurei, em vão, consolo junto dela. Geralmente, a Fátima vem sempre em meu auxílio. Desta vez, sem se virar, disse apenas laconicamente que, se calhar, a feiura da Julieta se devia à mudança do pêlo. Fiquei abismada! Fitei de novo a minha sogra. Velha e congestionada, enrolada num xaile preto, pingando ranho aguado para cima de um prato de bróculos e frango estufado. É inteligente. É, porventura, das pessoas mais inteligentes que conheço, mas tomara ela ter metade da beleza da minha Jujuzinha.

2006/12/14

Rouge

Pedro

Finalmente tenho um Pedro na minha vida.

Sopa

Tem muito cuidado a servir as sopas. Enfia a concha na panela. Fá-la subir acima do prato. Depois inclina-a, despejando a sopa sem entornar uma única gota. Usa uma farda branca, com um grande avental de plástico, chinelos ortopédicos brancos e um quico na cabeça que lhe esconde os cabelos oleosos. Nunca fala com os colegas. Ignora os piropos da D. Fátima que, no balcão do peixe, apregoa carapaus à espanhola e pataniscas. Ignora também a tristeza que a Rosa traz do Cacém e derrama sobre as sobremesas plastificadas, assépticas, que ali repousam. Gelatinas de sabores vários, bavaroises de morango e ananás, bolo de chocolate, arroz doce. Ignora, sobretudo, a tirania da D. Conceição, a chefe do refeitório, solícita e educada apenas para os senhores e as senhoras que serve. Está sempre muito concentrado no que faz. Nos dias em que não está a servir as sopas vejo-o passar, apressado, com os tabuleiros de loiça suja ou lavada. Um sorriso tonto colado ao rosto. Um sorriso que se associa a desgraça, estupidez, imbecilidade, paralisia. Porque se ri ele, que se chama João? Porque se ri o João, o rapaz do refeitório, que não fala com ninguém e com quem ninguém fala, que se limita a servir sopas e carregar tabuleiros de loiça suja? Porventura porque vive e é feliz.

2006/12/13

Diogo Soares


(Diogo Soares, o grande general/chamado galego, o homem dos olhares fatais/comanda sessenta mil homens/ lutando e vencendo por quem paga mais... Este disco devia ser obrigatoriamente ouvido perlos miúdos nas escolas. É lindo.)

2006/12/12

Varsóvia

Sonhei com Varsóvia. Um sonho de imagens e cheiros fortes. Não sou capaz de o contar, apesar de me lembrar de todos os detalhes e pormenores. Estou cansada. Triste, também. E não sei porquê. Que há em mim que me faça tão triste e só? Que bicho é este que hiberna dentro do meu corpo para, de tempos a tempos, despertar furioso? É um bicho mau. Abre chagas e sulcos. Espalha pedaços de desespero por todo o lado. Sou patética. Sei que o sou. Mas, enfim, hoje guardo Varsóvia, com rio e mar, e tinta vermelha escrita em papel de guardanapo, só para mim. A tinta, cor de sangue, ensopava-se no papel e distorcia as letras que, crescendo, pareciam fantasmas, árvores mortas. As minhas palavras tornavam-se ininteligíveis e eram sinal de loucura e alheamento.

2006/12/11

Fidel

Espero que quando o Fidel morrer, os que agora celebram a morte do Pinochet, e têm todo o direito a fazê-lo, saibam celebrar com igual entusiasmo a morte do cubano. O moribundo camarada, apesar da admiração senil e bolorenta que suscita em muitos, não lhe fica atrás. Aliás, desconfio que o ultrapassa. Admitamos, ao contrário do Pinochet, que, pelo menos, acabou por se submeter à vontade do seu povo entregando o poder a um presidente eleito, o Fidel jamais o fará. Mas, enfim, há ditadores e ditadores. E os ditadores de direita, a “malta” abomina. Já os ditadores de esquerda, a “malta” fecha os olhos e diz tal e coisa e a culpa é da América. Credo. Há tantos imbecis no mundo. Demasiados. Citando o meu sábio pai (cujas sovas nunca foram capazes de soterrar o amor que lhe tenho), deviam de ser todos fuzilados.

Pinochet

Morreu o Pinochet. As notícias anunciam os festejos da sua morte. Não rejubilo com a morte de ninguém. Os ditadores, em regra, não passam de seres patéticos que me suscitam mais pena do que ódio. Apesar de não festejar a sua morte, reconheço - claro que reconheço ! - que o general não fará cá falta nenhuma. Uma das primeiras sovas que levei do meu pai foi quando celebrei a vitória do não no plebiscito realizado no Chile. Foi há muitos anos, oitenta e oito ou oitenta e nove. Lembro-me de estar no quarto dos meus pais, encolhida a um canto, perto da janela, a levar tabefes. O meu pai espumava da boca. Batia-me, com fúria e desprezo, por causa do ditador sul-americano que acabara de ser afastado pelos chilenos. Insultava-me, chamando-me comunista e outras coisas que ainda gosta de me chamar. Lembro-me de desviar o olhar para uma fotografia pousada em cima da cómoda, em que a minha irmã, concentrada, escrevia num caderno de capa verde. Mais do que de atrocidades que fez ao seu povo, confesso, sempre guardei rancor grande e antigo ao General por causa do ódio que nessa tarde vi nos olhos do meu pai.

2006/12/07

Chico Buarque - Construcao

2006/12/06

...ou não?

Porém, a possibilidade de uma mulher no futuro poder abortar até às dez semanas num hospital público, com a assistência médica devida, não me faz dar pulos de alegria. Até porque não resolverá a maior parte dos problemas. As adolescentes continuarão a foder cada vez mais novas com rapazes de brinco que têm pit-bulls e querem ser parecidos com o Cristiano Ronaldo. Continuarão, sozinhas, a ter os seus filhos, apavoradas por confessar a gravidez aos pais. As mulheres da Maia e as de Aveiro, que convenientemente (sobretudo os jornalistas) toda a gente esquece que abortaram depois das dez semanas, continuarão a ser julgadas porque a lei continuará a criminalizar quem o faça a partir dessa data. As senhoras da classe média e da classe média-alta, que têm dinheiro, não se submeterão a uma interrupção da gravidez num qualquer hospital público. Continuarão a ir às clínicas de Espanha e Inglaterra onde poderão abortar com comodidade e discrição. Mas a verdade é que há mulheres, muitas, que têm uma vida difícil, amachucada, sofrida. Não merecem sofrer mais. Seja impondo-lhes um filho que não desejam. Seja empurrando-as para um aborto clandestino. Seja com a condenação de uma sociedade que, em nada, as ajuda. É por estas mulheres, só por estas, que votarei sim. Porque se as que vão a Badajoz e a Londres têm liberdade de escolher ter ou não um filho e têm a possibilidade de o fazer em segurança, com todas as mesuras e cuidados, o Estado, o tal que se apregoa de Direito, tem de garantir o mesmo às demais, sob pena de inadmissível violação do princípio da igualdade.

Sim...

Agora há para aí uns blogs que têm umas coisas amarelas que piscam e dizem “Este blog vota sim”. Estão a falar do referendo de dia 11 de Fevereiro, já se está mesmo a ver. Nesta, como em outras matérias, não percebo aqueles que têm uma posição inabalável. Não compreendo, nem aceito, as senhoritas que se põem de barriga flácida à mostra a dizer aqui mando eu (mandam no quê?!) como se a possibilidade de abortar lhes conferisse algum tipo de dignidade ou valor. Assim como me agoniam as tias de madeixas loiras que, nasalando, dizem que o que é preciso é investir na educação das mulheres e no planeamento familiar. A gente olha para elas e está mesmo a vê-las a distribuir preservativos às ciganas da Quinta do Mocho e a ensinar as cabo-verdianas da Cova da Moura a tomar a pílula todos os dias. É um discurso demagógico. As políticas de planeamento familiar, por mais eficazes que sejam, não excluem gravidezes não desejadas. Confesso, a mim, é-me muito difícil tomar uma decisão nesta matéria. No anterior referendo votei não. Estava grávida do João e acho que essa gravidez, a primeira, especial ao ponto de me fazer renascer, condicionou o meu voto. Desta vez votarei sim.

Kieslowski


(o que eu gosto deste filme.)

2006/12/05

Rosa Maria (3)

O caldo entornou-se. Já nem sei o que lhe disse. Só sei que, às tantas, ela olhou para mim e, abrindo muito a boca, mostrou-me outra vez a dentadura. E, depois, sabe o que me disse, senhor doutor, disse-me que tinha uns dentes melhores que os meus e que os homens gostavam de dentes bons! Foi aí, senhor doutor, que eu lhe disse assim ó Rosa Maria, tu, se fizeres um broche a um homem com esses dentes, pões-lhe a pila logo mole! E desatei-me a rir porque comecei a imaginar a Rosa Maria, muito velha, cheia de rugas, muito torta, a fazer o trabalhinho e os dentes a chocalharem por todo o lado. Deu-me um ataque de riso que não consegui parar! A gente ri-se tão poucas vezes nesta vida que tem que aproveitar quando tem vontade. Quando olhei para a Rosa Maria vi que estava caída a tremer por todos os lados. E a dentadura caída no meio do chão. Qualquer coisa no coração. Um ataque fulminante! Quando chegou o 112 e a levou parece que já ia morta. Coitadinha. Não queria que a Rosa Maria morresse senhor doutor! Fico doente, com o coração apertadinho, só de pensar que ela morreu porque eu lhe disse que nem com a dentadura nova ela conseguia arranjar homens que lhe pagassem! Apanhei a dentadura, guardei-a bem guardadinha e tenho-a aqui, senhor doutor, tenho aqui a dentadura da Rosa Maria embrulhada num guardanapo limpinho. O senhor doutor, faz o favor de a guardar, bem guardadinha, porque a Rosa Maria tem de ser enterrada com a dentadura posta. Percebeu, agora, porque quis falar consigo? É para lhe entregar os dentes novos da Rosa Maria.

Rosa Maria (2)

Ora, hoje de manhã, fui beber um galão e comer um papo-seco ali a um café antes de ir trabalhar. Cheguei à esquina devia ser cinco horas. Adivinhe quem já estava? A Rosa Maria! Só que estava diferente. Os beiços pintados de vermelho, vermelho, vermelho! As unhas, muito ratadas, mas pintadas também. Tinha uma roupinha diferente. Sei lá onde a foi desencantar! Nalguma loja chinesa ou na feira da ladra. Estava encostada à minha esquina, com a mala a tiracolo, e sorria a quem passava. Quando sorria mostrava os dentes. Foi então que percebi que a Rosa Maria tinha uma dentadura. Ó senhor doutor, eu olhei para ela, a mostrar os dentes novos, pronta para o engate, e nem sabia se havia de rir ou chorar! Eu, muito calminha, muito calminha, perguntei-lhe ó Maria Gertrudes, pá, olha que estás na minha esquina! Ela olhou para o relógio e disse que tinha chegado primeiro. Eu calei-me e pus-me a falar para dentro, a dizer, tem calma Maria Alice, tem calma, que a gaja é velha e já andou muitos anos na vida e tu mais dia, menos dia, vais ser igual a ela, uma puta velha. Foi então que a Rosa Maria começou a falar, a dizer que já não se faziam mulheres como dantes, que nós éramos todas umas drógadas, que andávamos a dormir com os homens e a espalhar doenças por toda a parte. Comecei a chatear-me porque há muita desgraçada com o vício nesta vida, mas não é o meu caso, senhor doutor, que nunca meti nada dentro do corpo e tenho dois filhos para criar! Olhe, mas ela não se calava, uma conversa sem pés nem cabeça!

Rosa Maria (1)

Vou-lhe contar tudo o que se passou, senhor doutor. Ando na vida há muitos anos. Já passei por muitos lugares, mas, de há uns tempos para cá, que estou na esquina da Rua João das Regras, ali perto da Praça da Figueira. É o sítio onde sempre fico. Às vezes, quando chego, está lá a Rosa Maria, a tal velha que morreu. Foi puta toda a vida. Desculpe a linguagem, senhor doutor, mas a gente tem que chamar as coisas pelos nomes! Geralmente, quando a vejo na minha esquina, chego-me ao pé dela e digo-lhe Rosa Mara põe-te a andar que este é o meu sítio. Ela resmunga, resmunga. Não se percebe metade do que ela diz. Às vezes tenho que gritar com ela para a pôr a andar. Digo-lhe assim ó Rosa Maria, põe-te na alheta se não rebento com o resto dos dentes que tens na boca. Eu sei que não devia dizer uma coisa destas a uma velha. Mas que quer, senhor doutor, a Rosa Maria é teimosa. Por mais que a gente lhe diga que já não há homens que a queiram, assim, velha, malcheirosa, desdentada, ela insiste em sair todos os dias para a rua à procura de clientes. Foram muitos anos na vida, foi o que foi. Tadinha. Deus a tenha em descanso, que bem merece!

2006/12/04

Fim

Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!

Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza…
A um morto nada se recusa,
Eu quero por força ir de burro.

Mário de Sá Carneiro

Confissão

Desconfio que sou uma espécie de alcoólica. Que desgraça.

2006/12/03

O Monte dos Vendavais

(Leio-o sempre que o Inverno chega. Já se tornou um hábito. Nunca perceberei os que afirmam que não voltam aos livros já lidos. Eu volto sempre. E não me canso de ler a palavra "urzeiral". Não hei-de morrer sem ver e cheirar um urzeiral. Mas posso morrer, isso sim, sem ler sicrano e beltrano.)