(já vou tarde.)
Sou Ana de cabo a tenente/ Sou Ana de toda patente, das Índias/ Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada/ Sou Ana, obrigada/ Até amanhã, sou Ana/ Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos/ Sou Ana de Amsterdam.
2007/11/28
Vatim
Há um homem que não me sai da cabeça. Entrou pela manhã no meu corpo e aninhou-se num lugar menos sombrio, onde há luz e medusas de gelatina e os frutos nunca apodrecem. Trata das dálias melancólicas que não encontro nas floristas da cidade. Há um homem que vive dentro de mim. É o jardineiro-canibal de Almoçageme.
Clausura
Se a gente abrir o dicionário e lhe procurar o significado há-de lá encontrar os seguintes sinónimos: recinto, espaço fechado, reclusão, prisão, internamento, vida claustral, monástica ou conventual, recolhimento, convento. Lido o significado da palavra, ficamos com a sensação de que é um conceito distante, alheio, que não nos respeita. E respiramos de alívio. Enclausurados estão os homicidas, os traficantes, os ladrões, os violadores, os maus desta vida que prevaricam, que não respeitam os preceitos, as leis e as ordens. Enclausuradas, privadas da liberdade e do convívio dos outros, estão as monjas, tão lindas com as suas vestes puras, hábitos e escapulários, nos dedos virgens, um aro simples como sinal da sua consagração esponsal. Por opção decidem viver no silêncio das paredes antigas, murmurando orações e salmos. Enclausurados estão os que vivem nos países onde a liberdade não se apregoa. Enclausurados estão os loucos, os dementes, os tolos, que se amontoam como coisas em manicómios, em casas de repouso, em hospitais psiquiátricos. Pensamos em clausura e temos por adquirido que nunca a experimentaremos. A clausura é um conceito distante, que impomos aos outros ou que associamos a realidades longínquas. Porém, a clausura não é uma palavra simples. As palavras nunca são simples. Porque o nosso corpo pode ser uma clausura, uma prisão, um túmulo anunciando uma morte.
(Estou deprimida. Acontece-me muitas vezes.)
(Estou deprimida. Acontece-me muitas vezes.)
2007/11/26
Judite
O líder da JC acusou o Bernardino Soares de ser um dos principais protagonistas dos distúrbios revolucionários do Verão quente de 1975. Claro que o Pedro Moutinho, é o líder da JC, na altura de tais acontecimentos, ainda não era nascido. Era apenas um espermatozóide marreco, tortinho, coitadinho, que, anos mais tarde, conseguiu ganhar a corrida no acto sagrado da cópula. Nesse preciso instante seu pai terá tentado suster uma bufa mal cheirosa para não se embaraçar diante da fêmea se abria à sua frente como um fruto maduro. A bufa, em vez de ser expelida pelo olho do cu, soltou-se para dentro das entranhas e matou, de supetão, os espermatozóides concorrentes, os fangios que, serpenteando em espirais frenéticas, agonizaram aos molhos. Ficou apenas o espermatozóide marreco e tolinho e dele nasceu um promissor líder partidário. Adiante. Ora, o Bernardino Soares tem a minha idade. Se, com quatro anos, já era um perigoso revolucionário, também quero inventar para mim um qualquer passado revolucionário. O Verão Quente diz-me pouco, poucochinho. Podendo escolher, escolho uma coisa assim a modos que mais elevada, com um quê de sofisticação: quero ser uma escritora exilada, exímia na descrição da solidão dos que vivem no meio das multidões, casada com um professor comunista também ele exilado. E já agora posso ser gira, cheia de pinta e chamar-me Maria Judite de Carvalho.
2007/11/25
Fim
Eu, Rosie, eu se falasse eu dir-te-ia
Que partout, everywhere, em toda a parte,
A vida égale, idêntica, the same,
É sempre um esforço inútil,
Um voo cego a nada.
Mas dancemos; dancemos
Já que temos
A valsa começada
E o Nada
Deve acabar-se também,
Como todas as coisas.
Fausto, Madrugada dos Trapeiros
Que partout, everywhere, em toda a parte,
A vida égale, idêntica, the same,
É sempre um esforço inútil,
Um voo cego a nada.
Mas dancemos; dancemos
Já que temos
A valsa começada
E o Nada
Deve acabar-se também,
Como todas as coisas.
Fausto, Madrugada dos Trapeiros
2007/11/24
Charneca
O João entrou no quarto no preciso instante em que eu chamava cabrão ao Octávio Teixeira que, na antena 1, logo pela manhã, se masturbava publicamente a falar do Hugo Chávez. Lançava o homem jactos espasmódicos de esperma bolorento, louvando a revolução venezuelana, os índices de alfabetização, a reforma agrária e a diminuição da pobreza. O meu filho olhou-me de viés, censurando-me a linguagem. Expliquei-lhe que metade do meu corpo é alentejano, metade do meu corpo gosta de açorda, coentros, poejos e beldroegas, metade do meu corpo sabe jogar ao jangro, metade do meu corpo vive na charneca de terras arenosas onde as alcagoitas ainda crescem entre os tomateiros e uma menina já morta penteia os cabelos longos de uma mãe que se chama Umbelina. Metade do meu corpo, disse-lhe eu, exausta, é alentejano e no Alentejo cabrão não é asneira. “E eu? Também sou um bocadinho alentejano? Também posso dizer cabrão?”, perguntou. Respondi-lhe que nem pensar, que nunca, mas nunca, se atrevesse a dizer cabrão à minha frente. Ter apenas um quarto do corpo alentejano, uma insignificância, não dá direito a tais liberdades linguísticas.
Labirinto
podias ser o cigarro ultra-longo
que arde até queimar os dedos
podias ser o ar do ditongo
que aquece por dentro os segredos
podias ser o baque que esmaga
o olhar obsceno que assanha
o toque de anca que alaga
a unha diamante que arranha
serias o meu livro de areia
que traz a Maomé a montanha
a linha de vida que enleia
como na estratégia da aranha
serias o objecto perdido
que me faz sentir sempre pobre
o fio de Ariane escondido
cuja ponta o amor descobre
podias ser a vela cansada
o dia que eu apenas pressinto
podias ser a cera dourada
à espera no fim do labirinto.
Fio de Ariane, Clã
que arde até queimar os dedos
podias ser o ar do ditongo
que aquece por dentro os segredos
podias ser o baque que esmaga
o olhar obsceno que assanha
o toque de anca que alaga
a unha diamante que arranha
serias o meu livro de areia
que traz a Maomé a montanha
a linha de vida que enleia
como na estratégia da aranha
serias o objecto perdido
que me faz sentir sempre pobre
o fio de Ariane escondido
cuja ponta o amor descobre
podias ser a vela cansada
o dia que eu apenas pressinto
podias ser a cera dourada
à espera no fim do labirinto.
Fio de Ariane, Clã
2007/11/22
Pirliteiro
Lembro-me bem dessa árvore. Dos ramos espinhosos nasciam folhas enceradas e pequenas que faziam lembrar asas frágeis de insecto. Na Primavera a árvore cobria-se com umas flores de tule branco, muito tolas e perfumadas. Durante o Outono, a árvore vestia-se com uma sobrepeliz de frutos pequeninos, vermelhos, que pareciam romãs e cresciam em cachos. Quis muitas vezes trincar aquelas maçãs liliputianas. Tomar-lhes o gosto. Porém, a tia Dé, quando me via perto de tal árvore, as mãos fechadas escondendo as bagas, abria muitos os olhos. Adivinhando a vontade que eu tinha de as trincar, corria a gritar que tais frutos eram altamente venenosos, que certa vez lhe aparecera no hospital um menino, coitadinho, tão pequenino, muito, muito doente por ter comido umas bagas daquelas. Os médicos, contava ela em alarido, tiveram de lhe enfiam um tubo duro de plástico até ao estômago para o livrar de uma morte certa. Depois dava-me palmadas nas mãos até eu as abrir e largar os frutos vermelhos. Nunca soube o nome de tal árvore. Encontrava-a no jardim do Campo de Santana, talhada em sebes vivas. Também a encontrava nos jardins do Seminário dos Olivais onde o cheiro estival das amoras maduras e o crocitar dos grilos tornavam as tardes de Agosto muito mais quentes. Sempre que via tal arvorezinha vinha-me de dentro uma vontade urgente de lhe trincar os frutos. Mas logo me lembrava dos avisos da minha tia. Imaginava, então, que se trincasse uma daquelas bagas vermelhas cairia redonda no chão tal qual a branca de neve quando provou a luzidia maçã. Se provasse as bagas de tal árvore, era certo e sabido, que passaria o resto da vida enfiada num esquife frio de cristal. Por isso, em obediência à minha tia, nunca mastiguei os pequenos frutos. Apertava-os nas mãos até os esmagar. Uma decepção profunda tomava conta de mim quando lhes via o interior grumoso e pálido. Queria que tivessem um corpo rubro, sinal de doçura, como o dos diospiros. Hoje, quando cruzo o parque da fundação, ignoro os avisos civilizados que aconselham a não pisar a relva e a não apanhar flores, folhas, frutos. Apanho meia dúzia de bagas das árvores que crescem junto do centro de arte moderna. Enfio-as nos bolsos. As bagas continuam sem cheiro. A superfície polida, nacarada, faz-me lembrar um tempo incerto em que fui feliz. Apodrecem nos meus bolsos até ao dia em que resolver metê-las à boca.
(Ontem, lendo certo livro, para além de merovíngios castelos, descobri que a arvorezinha da minha infância se chama pirliteiro e que os seus frutos se chamam pirlitos. Fiquei esfuziante com a descoberta. Como se um sol pequenino nascesse das páginas do livro. É tão importante conhecer o nome das coisas. E, hoje, vagabundeando pela net, descobri que se pode fazer marmelada de pirlitos. Tamanha revelação deixou-me atordoada. Hei-de fazer uma marmelada de pirlitos e dá-la a provar à minha pobre tia.)
(Ontem, lendo certo livro, para além de merovíngios castelos, descobri que a arvorezinha da minha infância se chama pirliteiro e que os seus frutos se chamam pirlitos. Fiquei esfuziante com a descoberta. Como se um sol pequenino nascesse das páginas do livro. É tão importante conhecer o nome das coisas. E, hoje, vagabundeando pela net, descobri que se pode fazer marmelada de pirlitos. Tamanha revelação deixou-me atordoada. Hei-de fazer uma marmelada de pirlitos e dá-la a provar à minha pobre tia.)
2007/11/21
Cupido
A minha filha apareceu em casa com piolhos. Desconfio que também os apanhei. E cresceu-me, no lábio superior, uma pústula herpial que está prestes a dar-me cabo da curva do cupido. O joanete do pé direito dói-me que se farta e não me deixa usar sapatos de salto. O pior é o corrimento vaginal, inodoro, mas de consistência duvidosa, que insiste em fugir do meu interior. Apodreço.
2007/11/20
Guebuza
Certo dia chegou um papelinho oficial a comunicar que o meu pai tinha quinze dias para abandonar o país. Se ficasse, avisavam, corria o risco de ser preso por traição, por infame conivência com a anterior potência colonizadora. A ordem de expulsão era assinada, numa letrinha femininamente redonda que sugeria certo recato, por um tal Armando Guebuza. Ficou a minha mãe sozinha no apartamento de Lourenço Marques, na Avenida Central, com três filhos, o trabalho no dispensário, uma vida inteira para despachar em caixotes e contentores. Como se embalam as memórias, os hipopótamos descansando nos lagos, as nuvens taurinas abatendo-se na baía, o chão encerado da casa de Tete? Como se encaixota o cheiro doce das mulheres, a brancura fosforescente dos dentes do meninos? A minha mãe teve apenas ajuda de um amigo, o Gomes, um homem pequenino, com uns dentes muito salientes, a fazer lembrar um esquilo gigante, que se desfazia em diligências, ia buscar um papel ali, carimbava outro acolá, dizia Solange é preciso você fazer isto ou tratar daquilo.
Contudo, pobre esquilo, era incapaz de um gesto arriscado, de um suborno, de mover uma influência, de dar uma palavrinha a um chefe de repartição para acelerar o caso da minha mãe. Cumpria escrupulosamente as regras estabelecidas pela administração do recém-nascido país que desprezava com dissimulação. Apesar da catadupa de dificuldades, a minha mãe consegui embalar tudo. Ficou só a Vitória, empregada-menina, chorando a um canto da cozinha amarela, dizendo que também queria vir para a metrópole. Por muito que a minha mãe lhe explicasse que a nossa vida futura era uma incerteza, que não se podia responsabilizar por ela, a Vitória derramava lágrimas grossas, violáceas como a noite. Assegurava que, se preciso fosse, cruzaria os mares enfiada num contentor, sentada na cadeira de palhinha onde costumava dar de mamar à minha irmã.
Tratados os papéis, a minha mãe preparou-se para voltar. Vestiu-nos as melhores roupas. O meu irmão calçou os sapatos de verniz com fivela e penteou os caracóis com um pente de dentes largos. Porém, uma mulher branca, sozinha, com duas meninas e um menino mulato, que não era seu filho, levantava sérias inquietações aos zelosos guardas do aeroporto. Para seguir viagem, disseram, a minha mãe teria de arranjar uma autorização da mãe biológica do meu irmão. Nunca soubemos como a minha mãe conseguiu trazer o meu irmão, como evitou essa perda irreparável, como garantiu que continuássemos para sempre a ser três. Ela não conta. Mas eu desconfio que, ao contrário do Gomes, o ajudante-esquilo, a minha mãe sabia como as coisas funcionam em Moçambique. Nessa tarde, os guardas do balcão de embarque do aeroporto celebraram o dia. Tiveram com que pagar o amor ordinário das ruas esconsas da cidade. Comeram travessas róseas de camarão tigre. Beberam até os corpos adormecerem de cansaço. E não reparam na abóbada celeste que, nessa noite, se cobriu de estrelas violáceas, iguais às lágrimas grossas de uma menina que nunca chegou a cruzar o mar.
(O melhor dos jantares de família são as memórias laurentinas que desfiamos com descontida emoção até ao momento em que o meu pai, já bebido, começa a chamar filho da puta ao Armando Guebuza. Grandessíssimo filho da puta, é como ele diz. Nós calamo-nos, embaraçados. Não se ofende assim, por dá cá aquela palha, o presidente da república de um país.)
Contudo, pobre esquilo, era incapaz de um gesto arriscado, de um suborno, de mover uma influência, de dar uma palavrinha a um chefe de repartição para acelerar o caso da minha mãe. Cumpria escrupulosamente as regras estabelecidas pela administração do recém-nascido país que desprezava com dissimulação. Apesar da catadupa de dificuldades, a minha mãe consegui embalar tudo. Ficou só a Vitória, empregada-menina, chorando a um canto da cozinha amarela, dizendo que também queria vir para a metrópole. Por muito que a minha mãe lhe explicasse que a nossa vida futura era uma incerteza, que não se podia responsabilizar por ela, a Vitória derramava lágrimas grossas, violáceas como a noite. Assegurava que, se preciso fosse, cruzaria os mares enfiada num contentor, sentada na cadeira de palhinha onde costumava dar de mamar à minha irmã.
Tratados os papéis, a minha mãe preparou-se para voltar. Vestiu-nos as melhores roupas. O meu irmão calçou os sapatos de verniz com fivela e penteou os caracóis com um pente de dentes largos. Porém, uma mulher branca, sozinha, com duas meninas e um menino mulato, que não era seu filho, levantava sérias inquietações aos zelosos guardas do aeroporto. Para seguir viagem, disseram, a minha mãe teria de arranjar uma autorização da mãe biológica do meu irmão. Nunca soubemos como a minha mãe conseguiu trazer o meu irmão, como evitou essa perda irreparável, como garantiu que continuássemos para sempre a ser três. Ela não conta. Mas eu desconfio que, ao contrário do Gomes, o ajudante-esquilo, a minha mãe sabia como as coisas funcionam em Moçambique. Nessa tarde, os guardas do balcão de embarque do aeroporto celebraram o dia. Tiveram com que pagar o amor ordinário das ruas esconsas da cidade. Comeram travessas róseas de camarão tigre. Beberam até os corpos adormecerem de cansaço. E não reparam na abóbada celeste que, nessa noite, se cobriu de estrelas violáceas, iguais às lágrimas grossas de uma menina que nunca chegou a cruzar o mar.
(O melhor dos jantares de família são as memórias laurentinas que desfiamos com descontida emoção até ao momento em que o meu pai, já bebido, começa a chamar filho da puta ao Armando Guebuza. Grandessíssimo filho da puta, é como ele diz. Nós calamo-nos, embaraçados. Não se ofende assim, por dá cá aquela palha, o presidente da república de um país.)
2007/11/17
She's Lost Control
Confusion in her eyes that says it all.
She's lost control.
And she's clinging to the nearest passer by,
She's lost control.
And she gave away the secrets of her past,
And said I've lost control again,
And a voice that told her when and where to act,
She said I've lost control again.
And she turned around and took me by the hand and said,
I've lost control again.
And how I'll never know just why or understand,
She said I've lost control again.
And she screamed out kicking on her side and said,
I've lost control again.
And seized up on the floor, I thought she'd die.
She said I've lost control.
2007/11/16
Alcaçuz
Bebi um café pela manhã e veio-me à boca um sabor desconhecido. Senti-o na língua, lá atrás onde ela nasce. Um sabor adocicado, perfumado, a fazer lembrar o da flor de anis. Bebi um café e veio-me à boca o sabor das pastilhas de alcaçuz que um dia a minha mãe comprou por engano. Meti uma à boca e logo se espalhou um sabor de antibiótico que nunca esqueci. Bebi um café e senti no corpo a mornidão dos lugares da minha primeira infância. O jardim do Torel e o do Campo Santana, a pastelaria Tarantela, os corredores e o refeitório do Hospital D. Estefânia, a entrada austera do Hospital de São José, a frontaria triangular do Instituto de Medicina Legal, a praça do Dr. Sousa Martins, carregada de mortos e padecentes. Bebi um café e veio-me, não sei de onde, uma vontade grande de chorar.
Brasília
Ele: Mãe, posso ler o teu caderno dos sonhos?
Eu: Não.
Ele: Porquê?
Eu: Está cheio de pesadelos.
(Uma velha pequenina, curva, de cabelo muito curto, pêlos pretos no nariz, passeia por uma cidade que, em tudo, faz lembrar Brasília. Uma arquitectura depurada, branca, luminosa, de formas redondas e escadarias intermináveis. Não se vê ninguém. Só a velha se movimenta com lentidão, apoiada numa bengala. Veste uma saia cor-de-vinho. Sobe uma escadaria de pedra e o seu corpo afunda-se devagar nos degraus. Há muito tempo que não tinha um sonho como o desta noite, que me assustasse tanto.)
Eu: Não.
Ele: Porquê?
Eu: Está cheio de pesadelos.
(Uma velha pequenina, curva, de cabelo muito curto, pêlos pretos no nariz, passeia por uma cidade que, em tudo, faz lembrar Brasília. Uma arquitectura depurada, branca, luminosa, de formas redondas e escadarias intermináveis. Não se vê ninguém. Só a velha se movimenta com lentidão, apoiada numa bengala. Veste uma saia cor-de-vinho. Sobe uma escadaria de pedra e o seu corpo afunda-se devagar nos degraus. Há muito tempo que não tinha um sonho como o desta noite, que me assustasse tanto.)
2007/11/15
Marxista-Leninista
Sempre estranhei os que elegem a coerência como virtude política. Enchem a boca e elogiam, por exemplo, a coerência do Álvaro Cunhal. A coerência é uma virtude pífia, vale pouco, quase nada, é uma virtude manca que deve ser abandonada quando pensamos o mundo e ele nos exige mudança. Ao contrário do Rui Tavares, não estranho que o Nick Cohen, no seu livro, comece por contar que em criança não comia laranjas portuguesas por causa do Salazar e termine considerando tolos aqueles que, de forma histérica, se insurgem contra a guerra do Iraque. Por influência da minha tia Dé - que Deus a conserve muitos anos perto de mim, enfiada no seu avental, sempre angustiada e tensa, o cabelo num desalinho, o amor a pingar-lhe dos olhos tristes - também eu fui uma menina marxista-leninista. Por exemplo, só gostava dos desenhos animados do Vasco Granja se fossem soviéticos, búlgaros ou checoslovacos. O meu irmão mais velho, um precoce neo-liberal, para me arreliar, volta e meia, abria muito os olhos e, com uma voz melíflua, dizia que aqueles desenhos animados eram americanos. Eu amuava e, num gesto convicto, desligava o televisor. Depois fui uma adolescente activa, possuidora de uma dose grande de entusiasmo e de imbecilidade. Frequentei amiúde a sede do PSR, sobretudo nas noites de sexta-feira, que eram animadas, em busca da dinâmica revolucionária, da justiça social, dos camaradas e das camaradas, da defesa das minorias e dos oprimidos. Agora, reconheço, sou uma balzaquiana, de hábitos burgueses, como é costume dizer-se, acomodada, desiludida, frívola, com queda para homens como o Pacheco Pereira e o António Barreto. Não vejo, pois, mal nenhum naqueles que mudam de opinião, que abandonam movimentos, partidos, ideologias. Só os burros, as mulas, as bestas cavalares, as cavalgaduras, olham o mundo sempre de frente. Mas esses têm desculpa. Usam palas.
(Desconfio que estou a desenvolver uma obsessão em relação ao Rui Tavares.)
(Desconfio que estou a desenvolver uma obsessão em relação ao Rui Tavares.)
2007/11/14
Torre
Levantei-me às 6.30 para ir correr. Cruzei-me com pescadores, com dois polícias, com um casal que caminhava de mãos dadas, com um homem jovem e alto, de pernas torneadas, que passou por mim como se fosse uma gazela ou um foguete. Perto da torre, alta, branca, ovnidea, passei por uma mulher gorda que passeava um cão preto, enquanto fumava um cigarro. Olhei-a de viés. Vestia um oleado castanho, tinha o cabelo hirsuto, muito despenteado e olhos pequeninos de animal. Quando por ela passei, achei o seu rosto familiar. Enquanto corri, tentei lembrar-me de onde é que a conhecia. Só perto do oceanário me lembrei. Marta. Chamava-se, e continua a chamar-se, Marta. Fomos colegas no liceu. Era uma figura triste da escola. Amava loucamente um rapaz de olhos verdes, cheio de caracóis, levemente idiota, chamado Marco, que não se dignava sequer a dirigir-lhe a palavra. Escrevia-lhe poemas, sonetos, verdadeiras elegias ao amor e à paixão. Apanhei secas monumentais na paragem do 19 a ouvi-la declamar os poemas que escrevia ao tal Marco. Acho que também tirou Direito. Está gorda. Foi por isso que não a reconheci. Fiquei imediatamente feliz. Gosto de encontrar os meus antigos colegas de liceu e descobrir-lhes banhas, celulite, rugas, cabelos brancos e ralos, barrigas de cerveja, outras de inacção. Gosto de olhar para elas e pensar que devem usar para aí o quarenta e dois. Gosto de olhar para eles e pensar na figura patética que fazem quando, pela noite, se despem para as suas amantíssimas esposas.
2007/11/13
Tia
Não tenho o privilégio da raça pura. Sou mestiça. Certa vez, contei à tia Amália a confusão que a indefinição dos meus traços provoca. Já me tomaram por brasileira, cubana, uruguaia, argentina, cabo-verdiana, moçambicana, marroquina, paquistanesa, indiana e até espanhola. Uma mixórdia de origens e lugares. A minha tia abanou a cabeça, rejeitando tais hipóteses. No crepúsculo vermelho, e fresco, da casa de Pondá, assegurou que pareço parsi. Perante a minha surpresa, buscou concordância na Joaninha, sua empregada de longa data que, nesse instante, entrava com um tabuleiro cheio de pastelinhos recheados de baji de batata. Habituada, porventura, a nunca contrariar a minha tia, a pobre mulher anuiu sem sequer me olhar. A minha tia fez-me uma festa no rosto que me soube às coisas boas que existem no mundo. Olhei-lhe para dentro dos olhos e vi, nesse preciso instante, a menina que o meu pai levava todos os dias para a escola, numa bicicleta que cruzava veredas de lama e nuvens fofas de insectos. Explicou-me que os parsis, mais claros, são indianos originários da antiga Pérsia, actual Irão, um povo influente, que vive sobretudo nos estados do Maharastra e Gujarat. O tom da minha pele, o recorte dos olhos, a ondulação do cabelo, continuou a minha tia, são característicos dos parsi. Beberricou, de seguida, um sumo de uva muito escuro e ofereceu-me uns doces enjoativos de grão. Engoli um quadrado esboroado que sabia a flores e especiarias. Engoli também as origens imaginárias que a minha tia, nesse dia, me traçou.
(Ontem, no segundo canal, vi um documentário sobre Teerão. Dei por mim a achar-me parecida com as iranianas, a imaginar como ficaria linda com um lenço a cobrir-me os cabelos, eu que sempre me insurgi contra o uso do véu. Pergunto: quão tola se pode ser? Muito.)
(Ontem, no segundo canal, vi um documentário sobre Teerão. Dei por mim a achar-me parecida com as iranianas, a imaginar como ficaria linda com um lenço a cobrir-me os cabelos, eu que sempre me insurgi contra o uso do véu. Pergunto: quão tola se pode ser? Muito.)
Pingue-Pongue
O Rui Tavares, por muito que tente disfarçar, tem simpatia pelo actual regime venezuelano. O anti-americanismo boçal que o presidente derrama nas suas arengas radiofónicas, nos seus discursos inflamados, suscita-lhe simpatia. Daí que consiga fazer o impossível: meter no mesmo saco o rei espanhol e o presidente venezuelano. Convenhamos, não é tarefa fácil. Para aligeirar o que se passa na Venezuela, o Rui Tavares, volta e meia, invoca a legitimidade democrática do presidente Hugo Chavez. É certo que o esférico venezuelano foi eleito em sucessivas eleições cuja credibilidade não se discute. Porém, o facto de uma pessoa ser eleita democraticamente não faz dela democrata. A democracia, ao contrário do que se imagina, não se esgota, nem se cumpre, no acto eleitoral.
2007/11/09
Rodovalho
Acabo de ter uma decepção profunda ao descobrir que o rodovalho faz parte do grupo dos peixes-chatos. É - imagine-se! - uma espécie de linguado, um peixinho amarelado, cor de tremoço, que se confunde com a areia, de olhitos esbugalhados, um peixe camuflado, um peixe da espessura de uma folha de papel, espalmado como uma panqueca. Ainda não estou em mim. Os romances do século XIX estão prenhes de maravilhosas descrições de jantares servidos em loiças rendilhadas de porcelana, onde as gargalhadas das mulheres se soltam, em cachos pequeninos, por trás dos leques, e os gestos dos homens são sempre corteses e delicados. Volta e meia, em tais banquetes, aparecia-me pela frente um rodovalho. Lia rodovalho e imaginava um peixe imenso, parecido com uma fataça, quase um monstro marinho, assado inteiro no forno, trazido para junto dos comensais numa enorme travessa, uma travessa em forma de barco, acompanhado por batatinhas novas e cebolas anãs. Lia rodovalho e imaginava a carantonha triste do peixe defunto elogiada por um homem elegante de barba aparada. O entusiasmo que a palavra rodovalho me provocava era tal que jurava a mim mesma que um dia, quando crescesse e me tornasse numa mulher frustrada e amarga, havia de escrever um conto chamado “O rodovalho”.
2007/11/07
Casa
Este blog é uma casa. Está tão desprovido de mim que consigo ouvir o eco das palavras que escrevo. As palavras que liberto ficam a ecoar, penduradas no vazio branco destas paredes. Aqui posso reescrever-me com frases curtas. Posso construir-me com outros gestos, outros significados. Fazer de mim uma sopa de letras, uma miscelânea de ideias. Posso reinventar-me, iludir-me também, fantasiar-me com plumas e berloques, usar sapatos de agulha, os saltos, altos e finos, a prenderem-se nas pedras irregulares da calçada. Posso sombrear as pálpebras com poeiras douradas, de reflexos violetas, azuis, cinzentos, pintar os lábios de carmim. Também posso usar o cabelo entrançado, preso nas pontas com fitas de veludo amarelo-torrado. Em alternativa, posso fazer um carrapicho, modelar uma espiral grossa e sustentá-la com travessas de tartaruga, ganchos, arames finos, pretos, quase invisíveis na negritude do meu cabelo. Posso ainda usar o cabelo em bandós e desenhar traços, sulcos, manchas no meu rosto. Envelhecer. Posso pintar as unhas das mãos de vermelho escuro. Ou de cor-de-rosa choque. Ou de lilás. Posso usar um vestido de alças finas, debruado de cetim azul, justo ao corpo, estampado de pássaros falantes: catatuas, milhafres, corvos, pousados nos galhos de uma árvore esguia, nua, despida. Uma balbúrdia de vozes e grasnares sobre mim. Ou então posso usar uma saia rodada, muito rodada, com uma orla bordada a fio de ouro e lãs amarelas, vermelhas, verdes. Os fios a desenharem no rodado da saia junquilhos, frésias, cardos, papoilas, aqui e ali, o verde vivo de uma folha de bananeira. Um tumulto de cheiros e cores sobre mim. Aqui posso travestir-me. Aqui posso ser o que não sou, ser um pastiche de alguém ou de mim própria.
(estou fartinha desta casa.)
2007/11/05
Atlântico
Comprei a Atlântico, a revista da direita que se crê irrequieta e bem pensante. Não vale um caracol. Não se consegue ler. A gente folheia-a e, salvo uma ou outra excepção, só lá escrevem tipos licenciados, com mba em qualquer coisa, que escrevem em blogues, claro está, usam camisas às riscas e, no fundo de si próprios, acham que o cúmulo da irreverência é escrever a palavra foder ou caralho. Um tédio. Aproveita-se a capa. Pouco mais.
(Dou uma no cravo, outra na ferradura. É intencional. Gosto de estar mal com Deus e com o Diabo.)
(Dou uma no cravo, outra na ferradura. É intencional. Gosto de estar mal com Deus e com o Diabo.)
Esquerda
“Depois, percebi uma coisa terrível: que as pessoas que são vítimas de movimentos extremistas e de regimes ditatoriais cujos actos não podem ser atribuídos à responsabilidade dos americanos passam a ter muito pouco apoio. Por exemplo, as feministas iranianas, os palestinianos secularistas, os sindicalistas chineses. É só quando o sofrimento das pessoas pode ser atribuída à América, ou ao Ocidente em geral, só nessas condições é que merece solidariedade.”
“As mulheres muçulmanas que vivem na Europa, por exemplo, deviam poder contar com o apoio da esquerda para se poder emancipar. Mas, por causa do dogmatismo sobre o multiculturalismo, não podem. É a esquerda que hoje lhes diz: isso é a vossa cultura. E qualquer pessoa que se lembre de criticar essa cultura em termos mais duros é logo acusada de ser islamofóbico e racista.” Nick Cohen, em entrevista ao Público.
Aproprio-me das palavras deste tal Nick Cohen. A esquerda, tal como a conhecemos, está moribunda. Entre os detestáveis (Bernardino Soares), os desprezíveis (Bernardino Soares) e os apedrejáveis (Bernardino Soares), ficam os patéticos (os bloquistas, apreciadores do multiculturalismo, do paternalismo, da merdologia em geral; os comunistas que vêem o 25 de Abril como coisa só sua; os socialistas que, a todo o custo, evitam tocar o povo nos hospitais públicos, nos transportes públicos, nas escolas públicas, nas repartições públicas, nas praias públicas). Há excepções. Mas são poucas. Assim, de repente, não me lembro de nenhuma.
“As mulheres muçulmanas que vivem na Europa, por exemplo, deviam poder contar com o apoio da esquerda para se poder emancipar. Mas, por causa do dogmatismo sobre o multiculturalismo, não podem. É a esquerda que hoje lhes diz: isso é a vossa cultura. E qualquer pessoa que se lembre de criticar essa cultura em termos mais duros é logo acusada de ser islamofóbico e racista.” Nick Cohen, em entrevista ao Público.
Aproprio-me das palavras deste tal Nick Cohen. A esquerda, tal como a conhecemos, está moribunda. Entre os detestáveis (Bernardino Soares), os desprezíveis (Bernardino Soares) e os apedrejáveis (Bernardino Soares), ficam os patéticos (os bloquistas, apreciadores do multiculturalismo, do paternalismo, da merdologia em geral; os comunistas que vêem o 25 de Abril como coisa só sua; os socialistas que, a todo o custo, evitam tocar o povo nos hospitais públicos, nos transportes públicos, nas escolas públicas, nas repartições públicas, nas praias públicas). Há excepções. Mas são poucas. Assim, de repente, não me lembro de nenhuma.
2007/11/04
2007/11/03
Sansão (4)
O cabeleireiro chega, por fim. Conheço-o. Chama-se Quim. É um nome tão patético, tão abichanado, tão mariquinhas. Como é que alguém que tem a sorte de se chamar Joaquim admite que lhe amputem, de forma tão grotesca, o nome? Não é a primeira vez que me corta o cabelo. Há qualquer coisa nele que me incomoda. Vejo-o muitas vezes, à porta do salão, no intervalo entre dois cortes, a fumar cigarros. Acho-o triste. Nunca o vi sorrir. Está sempre tenso como se, permanentemente, lhe faltasse alguém. Depois de me cumprimentar pergunta, com um sumiço de voz, como quero o cabelo. “Curto, muito curto”. Ele olha-me. Sabe que quando uma mulher arrisca tanto é porque alguma coisa se passa na sua vida. Das duas uma. Ou tem vontade de fechar um capítulo da sua vida e começar de novo, de se tornar numa outra pessoa, ou, então, precisa de se flagelar, de se penitenciar, de se magoar. Cortar o cabelo equivale a uma expiação. Ele senta-se num banco alto, com rodas, e engole uma pergunta qualquer que estava prestes a fugir-lhe da boca. Começa a cortar, enquanto cantarola baixinho uma canção. Tesoura em riste, com precisão, vai-me decepando o cabelo. Ceifa-o com golpes profundos. Eu, como quando era pequena, desvio o olhar do espelho oval e começo a contar os vidrinhos de verniz que estão no interior de um cesto de verga.
Sansão (3)
Sento-me na cadeira. A menina que lava as cabeças coloca-me um resguardo preto gigante e, por cima, uma toalha cor-de-salmão. Lava-me a cabeça. Com as pontas dos dedos, executa movimentos circulares. Sinto-me nua, exposta, assim, sentada, de cabeça inclinada para trás, com uma mulher jovem a massajar-me a nuca. Há qualquer coisa de perverso, de libidinoso, neste gesto. Não sei. Não me incomoda escancarar-me numa consulta de ginecologia. Abrir as pernas, sentir uma dedeira em latex, gelada, hirta, a percorrer-me por dentro. É um gesto asséptico e inócuo. Já a lavagem do cabelo sugere-me pensamentos impudicos e secretos. Quando termina a tarefa, a menina que lava as cabeças enrola o turco. Mal me sento, tiro a toalha e começo a secar o cabelo. Volto a olhar-me no espelho. Molhado, o cabelo torna-se ainda mais comprido. Pela primeira vez, consigo fazer uma trança, uma trança grossa, como se fosse a crina de um cavalo. Sempre gostei de penteados ultrapassados, fora de moda, que ninguém usa, a não ser as velhas e as inadequadas. Gosto de tranças e de carrapitos, espirais de cabelo cheias de ganchos e elásticos, uma redezinha transparente por cima.
Sansão (2)
Sempre foi assim. Em criança, quando rumava ao cabeleireiro com a minha mãe, as cabeleireiras elogiavam-no sempre. Chamavam-se umas às outras para ver a força do meu cabelo. Eu sentia-me uma espécie de Sansão aprisionado num corpo de menina. A dona do cabeleireiro, uma senhora redonda e feia, com muitos anéis nos dedos, cujo nome não recordo, era quase careca. Por baixo dos poucos cabelos que tinha, via-se a pele lustrosa do crânio. Sempre que me via, sentada na cadeira, a fugir com os olhos para o chão para evitar conversas de circunstância, pegava nas madeixas do meu cabelo e dizia “Que sorte, a tua. Quem me dera ter um décimo do teu cabelo!”. Eu fazia-lhe um sorriso, muito forçado, sabe Deus o que me custava aquele sorriso amarelecido e falso, e desviava de novo o olhar para outro canto qualquer do salão. Para os carrinhos cheios de rolos, molas, escovas e tesouras. Ou para os escaparates, com produtos da Kerástase ou da Lóreal, frascos bojudos, outros esguios, de cores variadas e apetecíveis. A verdade, porém, é que aquela mulher, gorda, de crânio lustroso, me assustava. Quando ela me dizia aquilo, eu, pequena, sentada na cadeira, imaginava-a uma Dalila feiosa e furiosa, uma espécie de feiticeira, capaz de me lançar um feitiço para se apoderar do meu cabelo. Esqueço-me desses outros tempos e retorno.
Sansão (1)
Entro no salão. Sinto, de imediato, o cheiro enjoativo das tintas, dos châmpos, das ceras, dos vernizes, dos cremes-amaciadores, das máscaras capilares. Está quase vazio. Há apenas duas mulheres. Uma está sentada lá atrás e lava a cabeça. A outra está sentada em frente dos espelhos ovais. Uma rapariga de cabelo vermelho seca-lhe o cabelo. A mulher é velha. Usa um fato cor de cereja e uns sapatos rasos de pala. Pintou o cabelo de cinzento, com matizes azulados. Nunca percebi o que leva as mulheres serôdias, velhas, quase mortas, a pintar o cabelo de azul, roxo, grená, cor-de-rosa. “Quero cortar o cabelo”, digo à rapariga que está na recepção. “Tem preferência por alguém?”, pergunta-me, enquanto fecha um livro de capa azulada que fala de anjos e demónios. Digo que não com um gesto. Indica-me uma cadeira. Dispo o casaco. Tiro os brincos. Retiro os inúmeros ganchos e elásticos que me prendem o cabelo. Enquanto me solto, olho-me. O meu cabelo está comprido, muito comprido, nunca o tive assim. É um cabelo forte e crespo. Tem uma ondulação indefinida que sempre detestei. Desde pequenina que o gabam. Por ser forte. Pela cor que tem. Piche, pez, breu, noite, alcatrão, escuridão, negrume.
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