2008/03/26

Cérbero

Durante a adolescência interessei-me pelo Tibete. Li tudo o que me apareceu pela frente. Tirei notas num caderno de capa quadriculada que, mais tarde, no ramerrão das limpezas dominicais, perdi. Gravei os poucos documentários que passaram na RTP. Mostravam sempre caminhos de lama e janelas embaciadas que guardavam silêncios. Sublinhei, a lápis, a enciclopédia “Raças do Mundo”, comprada a prestações pela minha mãe no Círculo de Leitores. Os volumes, muito grossos, tinham lombadas verdes e destoavam, pela sobriedade, no meio do esparrame de memórias das viagens dos meus pais. Loiças de barro coloridas trazidas de Marrocos. Uma terrina de Limoges cheia de ramalhetes primaveris. Vidros coloridos de Itália. Latões cinzelados da Índia. Uma imitação de presa de elefante, minuciosamente trabalhada, comprada pelo meu pai a um guineense retinto na Baixa, ocupava lugar de destaque do móvel escuro da sala. Com o passar do tempo o meu interesse pelo Tibete desvaneceu-se. Ficou-me na lembrança o chá de manteiga de iaque, a poliandria fraternal e um sentimento vago de tristeza e desespero. A China aparecia-me, já nessa altura, nos primórdios da minha adolescência, como um monstro. Continua a sê-lo. Tornou-se, porém, numa criatura ainda mais medonha, um monstro de duas cabeças, que alia, num só corpo, o pior dos dois mundos.