2008/05/28

Sopa

Almoço, todos os dias, sozinha no refeitório. Conheço os funcionários que lá trabalham. Acompanham com entusiasmo a minha gravidez. Sugerem alimentos saudáveis. Não me deixam comer pastéis de bacalhau. Servem-me couves de bruxelas e brócolos com uma abundância inusitada. Escolho sempre uma mesa junto do balcão das sobremesas, virada para o corrimão dos tabuleiros e, dali, observo-os. Há a Rosa, a minha patrícia de olhar aflito. A Fátima, que é desbocada e que, com excepção dos homens mais velhos de fato e gravata, trata por tu toda a gente. A rapariga da caixa, cujo nome não sei, tem os dentes podres, as unhas roídas, cicatrizes antigas no rosto. Raramente sorri. Traz sempre os olhos inchados. Como se tivesse passado a noite a chorar. Há também a D. Conceição, a chefe do refeitório. Maneja as pinças da carne com autoridade, o peito inchado como uma generala comandando um exército. Gere os legumes com avareza. Justifica, com azedume, a secura da carne de vitela. Observo, sobretudo, o João, o rapaz das sopas. Há um empenho comovente nos seus gestos. A voz entaramelada, gutural, arrastada, indicia uma qualquer deficiência. Uma deficiência leve, que não sei, nem quero, catalogar, mas que o torna diferente, à margem, anormal. Usa óculos de lentes grossas, permanentemente sujas. Está sempre a piscar os olhos. A pele, de tão oleosa, escorre gordura sebácea e brilha sob a luz branca do refeitório. Invejo-lhe a eficácia e a precisão dos gestos. Pega na concha, mete-a na panela, dá duas ou três voltas para dar corpo ao caldo, trá-la cheia, na vertical e, assim, naquele aprumo, com um rápido movimento do pulso, quase imperceptível, faz verter o líquido na tigela. Nunca respinga para fora. Nunca suja os bordos dos pratos. Todos os dias me entrega a tigela, sorrindo de satisfação. O seu sorriso parece dizer “Sou excepcionalmente bom naquilo que faço”. É verdade. É mesmo.

(A normalidade é um conceito injusto. E aborrecido. Quantos anormais há entre os normais? Muitos.)