2008/06/12

Continente

Diz a Ana Drago, no Expresso desta semana, que anda a ler o Homem Sem Qualidades, do Robert Musil. Não esquece, naturalmente, de colocar ênfase na tradução do João Barrento. Admito que uma pequena elite saiba explicar a razão pela qual o trabalho do João Barrento é tão importante e elogiado. Não é o caso da maior parte dos leitores. A maior parte dos leitores (não estou a dizer que é o caso da Ana Drago) não tem capacidade para compreender o que lê, quando mais para escalpelizar uma obra, apontar critérios de análise e enunciar méritos da tradução. Lêem determinada obra, sobretudo determinada edição ou tradução, para pertencer à pandilha dos iluminados, dos eleitos, da fina-flor que roça o traseiro escanzelado nos teatros e livrarias do Chiado (o resto da cidade não existe, nem interessa). Aconteceu o mesmo com a reedição da obra do Proust pela Relógio de Água. Foi uma roda-viva, um insuportável afã, como se o livro apenas tivesse aparecido com a tradução do Pedro Tamen. É bestialmente interessante dizer que já se leu o em busca do tempo perdido. Dizer-se então que se leu o em busca do tempo perdido traduzido pelo Pedro Tamem é oiro sobre azul. Eu, confesso, comprei os sete volumes da velhinha edição dos Livros do Brasil. Custaram-me três euros cada no Continente. Uma pechincha. Estavam para lá amontoados num refugo de obras menores. Não tinha sequer intenção de os ler. Mas tive pena dos livros do Proust. Tão tristes e abandonados. Peguei neles com compaixão, aconcheguei-os no carrinho das compras entre os pensos higiénicos e as embalagens de cera depilatória e trouxe-os para casa.