2009/03/17

Carrossel dos Esquisitos

O rapaz mais feio do meu curso casou com a rapariga mais feia do meu curso. A feiura dos dois é coisa nunca vista. Excessiva num mundo onde a beleza é quem mais ordena. Ele tem a pele muito seca, originada por uma qualquer doença de pele, psoríase provavelmente. Volta e meia, as escamas da sua pele soltam-se e deixam à descoberta manchas de um vermelho intenso e feio. Tem os dentes salientes, a fazer lembrar um coelho gigante. Uma pessoa olha para ele e espera, a qualquer momento, vê-lo cobrir-se de uma pelagem cinzenta e desatar a saltitar, frenético, em busca de um prado verdinho. É juiz. Há alguns anos, apanhei-o numa comarca do interior, muitíssimo sério, feioso dentro da sua beca, cheia de cordões e pregas, a ditar despachos com uma voz fanhosa. Quis atirar-me à cara a superioridade da sua casta. Deixei-o. Uma coisa é ser magistrado. Outra é ser jurista de um instituto público.

Ela, a rapariga mais feia do meu curso, sempre foi velha. Já o era na faculdade. Usava saias por cima do joelho e calças vincadas. Tinha olhos pequeninos, a pele baça, o cabelo oleoso colado ao rosto, sem vida, sem volume. Alta, movimentava-se com lentidão como se o corpo lhe pesasse em demasia. Tinha, e tem, uns enormes pés voltados para fora, as ancas largas, muito robustas, a maternidade entranhada nos ossos das bacia. Deve ter seguido o notariado. Assentos, certidões, averbamentos, procurações, testamentos, tudo ela há-de tratar com eficiência e sisudez, disfarçando o fastio que o cheiro a papel velho lhe provoca. Eram ambos alunos aplicados. Não faltavam às aulas, não frequentavam o bar, não fumavam, não bebiam, tinham notas medianas. Eu desprezava-os porque eles simbolizavam tudo o que eu não queria da vida: ordem, conformismo, rotina, previsibilidade.

Ultimamente, andava eu já tão esquecida dos tristes anos em que andei na faculdade de direito, voltei a cruzar-me com eles. Devem viver no meu bairro. Encontro-os no talho a pedir carne picada para fazer almôndegas e na mercearia a comprar duzentos gramas de fiambre de peru. Andam sempre juntos, de mãos dadas. Ele olha-a com amor. Ela deixa-se envolver pelo amor dele que é como uma gaze diáfana, muito leve e delicada. São, de uma forma quase escabrosa, felizes por se terem. Olho-os com uma pontinha de emoção e muita vontade de chorar.

(O Pedro Mexia também foi meu colega de curso. Não era o rapaz mais feio do meu curso, mas andava lá perto.)