2009/04/07

Hemisfério Sul

Aprecio a franqueza dos países do hemisfério sul. Lá, tudo é claro, transparente. São países que, em muitos assuntos, estão mais avançados do que nós. A sério. Por exemplo, assumem com naturalidade a corrupção, o clientelismo, a utilização do poder público para alcançar benefícios pessoais, a promiscuidade entre poder político e judicial. A corrupção é uma coisa assumida. É a engrenagem que tudo faz funcionar. Se não houvesse corrupção tais países entrariam em colapso. Todos, cada um à sua medida, corrompem e são corrompidos. Com transparência. Sem temer consequências ou represálias. Isso é bom. Uma pessoa sabe com o que contar. Evita a vergonha, o embaraço, o constrangimento do gesto. Ninguém hesita se quiser subornar alguém porque todos são subornáveis, negociáveis. Recordo, a este propósito, a primeira vez que visitei o seminário de Rachol, em Margão. Ouvira falar do altar da capela e queria conhecer de perto os anjos de olhos amendoados e cabelos negros que por lá vivem. O padre que me franqueou a visita ao altar era um velhinho goês, um santo padre, de batina branca e óculos de aros grossos, tímido e frágil como uma papoila. Cheirava a mirra, a turíbulo, enfim, às coisas santas desta vida. Para meu espanto antes de me deixar entrar estendeu-me a mão a pedir qualquer coisa. Balbuciou um português antigo e correcto. Explicou que só me deixava visitar a capela, que não está aberta ao público, mediante uma pequena contribuição pessoal. Não me fiz rogada. Com certeza senhor padre, tome lá cem rupias e deixe-me apreciar os anjos de cabelos negros em paz. Ficámos ambos satisfeitos.

(O que amofina em Portugal é a ilusão de que as coisas não são assim.)