2010/07/06

Violante (1)

Bem vistas as coisas não era mais feia do que as outras mulheres de S. Teotónio. Pequena, o corpo ligeiramente truncado, tinha a pele muito crestada do sol, desenhando aqui e ali fissuras como se de um deserto se tratasse. Usava o cabelo, escuro e crespo, apanhado num carrapito que prendia com dois ganchos de massa. Tinha um rosto redondo, os lábios eram finos, as narinas dilatadas davam-lhe um ar ligeiramente suíno. Maciça, mas ágil, movimentava-se com desenvoltura e certa graciosidade. Porém, era o olhar de Violante, assim lhe chamara a mãe, que a embrutecia e não lhe permitia a banalidade que sempre se atribui às mulheres comuns. Era o olhar que a tornava medonha e diferente. Lembrava-se bem. Devia ter uns dez anos e trepara a um marmeleiro para apanhar os frutos maduros que espreitavam no alto, muito redondos e amarelos. Estava toda esticada, prestes a agarrar o primeiro marmelo, quando um ladrar furioso, vindo de longe, se calhar do inferno, a assustou e a fez largar o tronco da árvore. Mergulhou num silvado. Saiu de lá como se tivesse sido açoitada por mil varas de vime. Ficou, para sempre, com o corpo marcado, cheia de pequenos aleijões e cicatrizes. Partiu uma vértebra discal. Foi nessa ocasião que um espinho lhe perfurou o globo ocular esquerdo. O espinho, curto, muito afiado, parecia um dente de tubarão, foi removido com mil cuidados por uma vizinha que tinha fama de curandeira. Violante não cegou. Continuava a ver da vista esquerda. Porém, como um balão de feira, preenchido apenas pelo vazio, o olho começou a esvaziar. Minguou, minguou, até ter o tamanho de uma ervilha. Ficou aquele olho pequenino solto na cova, muito laça e escura. Dando-se conta do nojo que causava, havia quem desviasse o olhar quando lhe falava, por precaução, passou a fechar a pálpebra. Só à noite, quando estava sozinha, a voltava a abrir para se abeirar do precipício e da fundura que se escondia no seu rosto. Com o tempo, porém, foi deixando de o fazer. Por fim, como uma gelosia fechada, que se encrava e não mais se abre, a pálpebra ficou perra, cada vez mais pesada, até se colar para sempre à linha inferior do olho.