2010/12/18

Tabacaria

Numa tabacaria do metro do Campo Grande apareceu-me, pela frente, na capa de uma revista de bem-estar e lazer, aquela anã que escreveu um livro e que grita aos quatro ventos que é muito feliz. Está por todo o lado. Revistas, programas da tarde e da manhã, as perninhas bambas, o cabelo às madeixas, aconchegada na sua cadeira de rodas, mexendo as mãos de unhas arranjadas, explicando sempre o mesmo. Vai a discotecas, namora, faz tudo o que os outros fazem, é independente e feliz. A anã (em rigor, segundo apurei, não é anã, padece de uma doença congénita que lhe atrofia os membros, a doença dos ossos de vidro) fala e delicia as velhotas de cabelo lilás e azul que assistem aos programas. É mulher realizada, apaziguada com o seu corpo minguado, exemplo de determinação e força de vontade. O que não tem em corpo, dizem, tem em grandeza de espírito. Detesto-a. Eu aqui, balzaquiana, de corpo inteiro, sólido, pernas, braços, peito, boca, ventre para esmagar, moderadamente bonita, esforçadamente interessante, sempre infeliz e miserável, e a anã, a parva da anã, grotesca, metade de um corpo, com a sua voz de apito, de palhaço de circo, ossos de vidro, de poeira, nas capas da revista, no ecrã da televisão a gritar a sua felicidade, desperdiçando razões válidas para depressões e angústias. Não posso com a mulher.