2011/10/18

Cozido à portuguesa

Aos domingos, a minha mãe e a minha tia faziam cozido à portuguesa para o almoço. Era uma opção que não compreendia e não aprovava: detestava as carnes gelatinosas, as outras fibrosas, as metades de batata e de nabo desenxabidas, as tiras de couve acastanhadas por causa da cozedura excessiva, só o chouriço de sangue, com sabor intenso a vinagre, textura coalhada, despertava em mim algum interesse. Adorava o arroz que a tia Dé fazia com o chouriço de sangue. Porém, apesar de não gostar de cozido à portuguesa, fazia um esforço para acabar depressa o que a minha mãe me punha no prato. Até as metades de nabo eu engolia, apesar do vómito que se assomava à garganta. Não tardaria a começar o programa do Cousteau e, à hora que começasse, queria estar despachada para mergulhar no mundo silencioso dos corais, das baleias, dos cardumes nadando em espirais, dos tubarões com fiadas sucessivas de dentes em ziguezague, dos homens marinheiros de pele crestada, deve ser bom beijar um marinheiro e sentir o sal na boca.

Aquelas tardes, passadas em frente à televisão, vendo os programas do oceanógrafo francês, eram obra do meu pai que nos incentivava a ver documentários, fossem de bicheza, de política, fossem sobre os bosquímanos da Namíbia ou sobre os aborígenes da Austrália, não havia grande critério na selecção que fazia, tudo servia para nos educar e, sobretudo, para nos libertar de um país que considerava confinado, de grades, bolores, líquenes. Ganhei com o meu pai o gosto pelos documentários. Ele manteve-o. Desde que a televisão de cabo chegou, carregada de canais temáticos, o meu pai tem dificuldade em seleccionar os documentários que quer ver, desconfio que, por vezes, fica baralhado com tanta informação. Os documentários sobre animais são os que mais gosta de ver. A minha mãe queixa-se que passa tardes inteiras a ver filmes sobre escaravelhos, térmites, aranhas peludas, um nojo, uma pessoa quer ver um programa de variedades, uma telenovela e não pode, diz ela, compungidamente, não compreendendo o interesse do meu pai por esse mundo de animais tão insignificantes que se estraçalham com a biqueira do sapato.

São essas tardes de domingo em que a minha família se juntava à volta de televisão para ver os documentários do Cousteau, a sala ainda a cheirar a farinheira, a chispe, a chouriço de sangue, que lembro, passados tantos anos, quando encontro o meu pai sentado em frente do televisor a ver os seus documentários. Aproveito esses momentos para disfarçadamente o observar. Enquanto se inteira da nidificação dos albatrozes, passa ele a ser o objecto de estudo. Vou ao armário, onde há garrafas de bebidas licorosas e vidros em forma de parra que vieram nos contentores de Moçambique, encho uma malguinha de madeira com aperitivos indianos e, enquanto debico lentilhas fritas, observo-o com atenção: o modo como o pijama lhe cai no corpo, os pés de barbatana, os tremores involuntários da cabeça, a boca ligeiramente aberta mostrando a prótese dentária que colocou num dentista em Margão. Tomo mentalmente nota do meio ambiente envolvente, as movimentações da casa, o cheiro que vem da cozinha, o ruído dos chinelos ortopédicos da tia Dé chiando no chão de madeira, a voz da minha mãe a falar com a minha filha.