1ª parte
O homem abre o armário. Tira uma garrafa de vidro escuro. Explica: é
preciso que compreendas a divindade deste líquido, sagrado como o chão de um
cemitério; cheira a aloés, agaves, zambujos, alperceiros e laranjais, recorda a
rigidez láctea das rochas calcárias, nele se aninha o sopro do oceano e a doce
barbárie das figueiras da índia; tem moléculas antigas, leves e aristocratas,
também polifenóis, tocoferóis e carotenos, andam à solta, em carnavais de
concertina e gaita de beiço, dão-lhe um travo picante, acidez que mal se nota.
2ª parte
A mulher pensa: tudo o que é divino é aborrecido e a maja desnuda continua,
em estático convite, pendurada no prado, já nada acontece quando por ela passo;
morri há muito tempo, mas esqueci-me de me levar a enterrar, mesmo morta deixo
entrar filetes de lava, gumes de faca, às vezes, touros solitários que
resfolegam uma bravura que cheira a urina. Entram e saem. Saem e entram. O
movimento é perpétuo, nunca termina. Deixa marcas de ripos e malhos. Esgaça-me
os panais.
3º parte
A mulher pega na garrafa. Olha-a. O homem acredita, por breves instantes,
que comunga da divina unção, falará talvez da purificação dos leprosos, dos
votos dos nazireus, de açafates de coscorões de ázimo e obreias de mel. A
mulher deixa cair a garrafa. Caminha sobre os vidros. Sabes, explica, por fim, sou
parecida com este líquido, livraram-me do ranço, rasparam-me o verdete, mas fico
sempre a boiar na bordadura dos corpos.