2012/10/12

Azeite


1ª parte
O homem abre o armário. Tira uma garrafa de vidro escuro. Explica: é preciso que compreendas a divindade deste líquido, sagrado como o chão de um cemitério; cheira a aloés, agaves, zambujos, alperceiros e laranjais, recorda a rigidez láctea das rochas calcárias, nele se aninha o sopro do oceano e a doce barbárie das figueiras da índia; tem moléculas antigas, leves e aristocratas, também polifenóis, tocoferóis e carotenos, andam à solta, em carnavais de concertina e gaita de beiço, dão-lhe um travo picante, acidez que mal se nota.

2ª parte
A mulher pensa: tudo o que é divino é aborrecido e a maja desnuda continua, em estático convite, pendurada no prado, já nada acontece quando por ela passo; morri há muito tempo, mas esqueci-me de me levar a enterrar, mesmo morta deixo entrar filetes de lava, gumes de faca, às vezes, touros solitários que resfolegam uma bravura que cheira a urina. Entram e saem. Saem e entram. O movimento é perpétuo, nunca termina. Deixa marcas de ripos e malhos. Esgaça-me os panais.

3º parte
A mulher pega na garrafa. Olha-a. O homem acredita, por breves instantes, que comunga da divina unção, falará talvez da purificação dos leprosos, dos votos dos nazireus, de açafates de coscorões de ázimo e obreias de mel. A mulher deixa cair a garrafa. Caminha sobre os vidros. Sabes, explica, por fim, sou parecida com este líquido, livraram-me do ranço, rasparam-me o verdete, mas fico sempre a boiar na bordadura dos corpos.