A
camioneta chegou a Pangim depois da hora da sesta, no preciso instante em que o sol começava a decair e a cidade se preparava para a frescura
do entardecer. O início da noite traz às cidades do oriente uma aceleração de
corpos e movimentos, luzes explodem por todos os cantos como fogos de
artifício, misturam-se as conversas das pessoas com as conversas da gralhas que
descansam nas copas das árvores enquanto debicam frutos maduros que pingam mel
para os passeios. O início da noite não marca o fim do dia. Na Índia sempre
tive a sensação de que o dia continua noite fora. Só termina quando fechamos os
olhos. Procurei, no meio da multidão do terminal, Rafael, o amigo do meu pai, a
convite de quem viera a Pangim. Não me deixou sozinha por muito tempo. Conheci
Rafael o ano passado, no crepúsculo nacarado de Curtorim. É um goês alto.
Tem a robustez de um herói grego. Usa o cabelo branco puxado para trás e óculos
de aros pretos a marcar-lhe pesadamente o rosto. É um gigante delicado. É assim
que o vejo. Corremos ao bairro das Fontainhas onde estava hospedado em casa de
um amigo. “Venha,
venha. O meu amigo vive rodeado de coisas preciosas.”, disse ao chegarmos a uma casa antiga cor de
vinho. Perante o meu olhar inquisidor esclareceu: “Antiguidades!” Percival
Noronha, o dono da casa, é mais velho do que Rafael, rondará os oitenta anos.
Traz o corpo frágil. Há-de ter os ossos porosos e rendilhados. Ofereceu-me
chá e um bolo escuro de frutas que vinha embrulhado em papel pardo. Caetano, o
empregado que nos serviu, tinha o rosto puído pelos anos. Olhando em redor
vislumbrei vestígios de uma Goa que desaparece com lentidão. Como um corpo que
se afunda devagar nas águas densas e movediças de um pântano. As paredes
esmaecidas com retratos de gente já morta. O mobiliário indo-português, cheio
de arabescos e floreados, a fazer lembrar contorcionistas de circo. Livros e
mapas espalhados por todo o lado. Loiças chinesas antigas, com desenhos de
pagodes e pinheiros mansos, dormitavam nas vitrinas dos louceiros. Percival
pediu desculpa pela desarrumação da sala e contou a sua história: os cargos públicos
exercidos na Índia de Salazar, o interesse pela história de Goa, os convites
das universidades portuguesas para leccionar, as recepções organizadas para os
presidentes Mário Soares e Cavaco Silva, a paixão pela astronomia. De repente,
interrompeu o seu relato e levantou-se, dizendo que estava na hora do
lançamento do livro. Era para isso, para o lançamento de um livro na Fundação
Oriente, que eu viera ao encontro de Rafael. Ao entrar no jardim da fundação,
que fica na rua onde Percival mora, reparei que as pessoas se movimentavam com
a cerimónia própria daquelas ocasiões. Avistei apenas dois brancos: um homem
cujo rosto me pareceu vagamente familiar e uma mulher que espantava pela
informalidade. O cabelo curto num desalinho. A ausência de pulseiras, brincos
ou anéis. A roupa larga e sem corte. Achei-a feia, demasiado pálida. Fumava. Esse gesto
pareceu-me insuportavelmente masculino e inadequado.