2014/11/03

Luz

Não tenho vontade de escrever. Desconfio mesmo que já não sei escrever. Desaprendi. Salto valados durante a noite, encontro apóstatas e duendes, limpo o rosto a um lenço sujo de escarros da minha mãe, deito-me sozinha num chão de musgo e adormeço. Tenho quarenta e dois anos; na vida, procuro sobretudo o silêncio. Não o silêncio da solidão e da angústia, dos dias em que vivi morta e chorei. É um outro silêncio. Retiro das coisas mais simples um prazer genuíno e intenso : ouvir o fervilhar dos passarinhos nas árvores, ler o jornal de uma ponta à outra, ligar a telefonia no instante em que se escuta o primeiro acorde daquela canção antiga. Leio como outros vêem televisão, para ocupar os serões, para adiar o momento em que apago a luz e o ruído começa.