2015/05/30

Seis andares (1)

Depois do último internamento, há cerca de seis meses, passei a sofrer de insónia. Demoro muito tempo a adormecer. Acordo várias vezes durante a noite e fico às voltas na cama, à espera que o sono volte. Sonho recorrentemente com a enfermaria onde estive internada. É um sonho estranho. As chapas do telhado, enferrujadas, têm buracos por onde entram pássaros e outros bichos. Os degraus da entrada, de madeira apodrecida, estão cobertos de urtigas. As paredes, manchadas de tinta azul escura, parecem esboroar-se em caliça. Nas janelas há grades de ferro. O soalho é pardacento e áspero. As camas da enfermaria estão pregadas ao chão e, nos lençóis, manchados de urina, passeiam-se lindos percevejos verdes. Na verdade, a enfermaria com que sonho é muito diferente daquela em que estive internada, limpa e arejada, mas, não sei por quê identifico aquele lugar com a enfermaria da Clínica de São Lázaro. Desperto cansada, como se tivesse caminhado durante muito tempo, o corpo transpirado e moído, a cabeça a latejar, a boca seca, a língua encortiçada. Já experimentei comprimidos, mezinhas, chás para dormir. Já fiz tratamentos alternativos. Nada resulta. 
Há algumas semanas, Eduardo convidou-me para ir lanchar a uma pastelaria antiga, com paredes de espelho e mesas cobertas de toalhas de pano. Queria saber de mim, como me sentia, se estava melhor. Enquanto comia um lindo duchesse coberto de frutas, confessei-lhe que estava melhor, muito melhor, não alucinava há muito tempo, mas não conseguia dormir. Expliquei-lhe que não aguentava continuar assim, sentia um cansaço extremo, o meu desespero era de tal ordem que ponderava mesmo consultar um bruxo, um exorcista, enfim alguém que, dotado de dons místicos, me ajudasse a dormir uma noite sossegada. Eduardo, o meu amigo, também é doente dos nervos. Não é esquizofrénico como eu, nunca esteve internado, mas sofre de fobia social e ocasionalmente tem ataques de ansiedade. Escutou as minhas queixas e, com gargalhadas ruidosas, riu-se do meu desespero. Depois contou que, apesar dos picos de ansiedade, não tinha qualquer problema em adormecer.
- Deitas-te e o sono chega? – perguntei-lhe com despeito. 
Não era bem assim. Tinha um truque para adormecer. Arregalei-lhe os olhos, quis imediatamente saber que truque era aquele, talvez funcionasse também para mim. Eduardo não tardou em revelar-mo. Todas as noites recordava um sonho que tivera. Não era um sonho alucinatório ou enigmático, desses que estimulam o pensamento e nos fazem procurar respostas para a vida. Tratava-se apenas de um lugar, um lugar tranquilo, que lhe trazia paz. Bastava fechar os olhos, imaginar-se nesse lugar e era imediatamente inundado por uma sensação de bem-estar. Pouco depois adormecia completamente relaxado e dormia a noite inteira. Quis saber como era o tal lugar. O meu amigo hesitou durante alguns segundos, depois, levando a sua enorme mão às barbas grisalhas, falou calmamente:
- Estou debruçado no muro do terraço do meu prédio. Lá em baixo, em vez da confusão habitual das ruas, abre-se um oceano de águas azul-turquesa, onde o sol embate com tal intensidade que me fere um pouco os olhos; no meio do mar, um mar brando, claro e fresco, há uma ilha muito bela. Nas encostas da ilha, vislumbram-se veredas solitárias que serpenteiam entre pomares e jardins perfumados. Nos recantos da costa, as praias são de areia dourada e fina. São praias pequenas e desertas, nas águas transparentes notam-se as sombras velozes dos cardumes de peixes. Quero ir para aquela ilha, para aquele mar, mas para lá chegar, não te sei explicar por que razão, tenho de atravessar uma estufa degradada, um pouco suja e com vidros partidos. Na estufa, há um banco de pedra antiga, polvilhada de musgo negro e muito seco. É nesse banco que me costumo sentar antes de adormecer, fixando o horizonte onde parece terminar o mar, olhando a pequena ilha, entorpecido por memórias quentes e indefinidas.