2017/01/03

Concentrado de tomate

No bairro onde cresci, na Portela de Sacavém, toda a gente conhece o diácono Armando e a sua história. Ele não a esconde. Vindo da esquerda mais dura, encontrou Deus tarde. Militou no partido comunista muitos anos, travou lutas, falou em comícios, distribuiu propaganda. Esteve preso. Viveu a revolução com o entusiasmo próprio dos que acreditam que o mundo pode ser um lugar melhor. Nos anos oitenta, quando sentiu que a sua crença no comunismo fraquejava, procurou Deus e, de uma forma extraordinária e simples, encontrou-o. Como o invejo! Converteu-se. Deixou de ser um comunista feroz. Passou a ser um católico feroz. Foi ordenado diácono com cinquenta anos. Acredita em Deus com a mesma força com que acreditava na ditadura do proletariado. Há muita gente no bairro que o admira. Outros olham-no com desconfiança. Não lhe apreciam a cultura enciclopédica, o estilo virulento, o passado esquerdista. A uns e a outros causa estranheza que um comunista, ateu confesso, se tenha tornado crente em Deus, fiel à sua palavra.

Eu, descrente, ímpia criatura, acho que a fé é uma espécie de droga. Vicia. Quem a experimenta não sabe viver sem ela. Acreditar no comunismo não é muito diferente de acreditar em Deus. A fé conforta, apazigua, alivia. Torna-nos parte de alguma coisa, dá sentido à nossa vida, passamos a ter um propósito, algo a que nos dedicar. É preciso acreditar. Ser fiel. Seja no que for. Os que são pouco originais são fiéis a Deus, a Buda, a Shiva, à Nossa Senhora de Fátima, à Santinha da Ladeira. Muitos, aos magotes, são fiéis a um clube de futebol. Vão rareando, mas ainda há os que são fiéis a um partido, a um ideal, a uma filosofia de vida. Há os que são fiéis a uma banda, a uma estrela pop, os que acreditam que o Michael Jackson padecia de vitiligo e nunca fez uma operação plástica ao nariz. Há os fiéis das novas seitas, em tudo acreditam, no poder da cura, nos milagres em catadupa, pague três e leve quatro, não estranham sequer os terminais de multibanco instalados nos altares para o pagamento do dízimo. Verde. Código. Verde. A sua alma está salva. Ámen.

O diácono do meu bairro acreditava no comunismo. Depois, imagino, começou a ouvir falar de execuções, censura, falta de liberdade, presos políticos, miséria. Não há fiel que aguente tamanha dose de realidade. Deve ter tido uma ressaca dos diabos. Foi preciso arranjar rapidamente um sucedâneo. Tal como os heroinómanos nos períodos de abstinência, também os fiéis, quando se apercebem da fragilidade das suas crenças, precisam de encontrar algo que substitua a fé estilhaçada. O diácono Armando, comunista convicto, - estou a imaginá-lo, de punho erguido, rosnando a Internacional, querendo nacionalizar a fábrica de concentrado de tomate de Benavente -, no dia em que o mundo se apresentou de outra forma, teve de procurar a fé noutra parte qualquer. Encontrou-a em Deus, que é magnânimo, infinitamente bom e se deixa amar por todos.