2009/08/29

Mau Tempo no Canal

Mais do que a minha gripe, a otite da Dá, a bronquiolite do Joaquim, mais do que o Alentejo deixado assim de supetão, as flores de papel desabrochando das mãos da Maria da Luz, o circo que chegou ao largo da aldeia numa noite de vento, o homem comendo lacraus mansos no café do Leandro, os canteiros com cristas de galo e cravos tunicos, a vizinha Antónia descansando pela tardinha na soleira da porta com um mata-moscas no regaço, os cartazes anunciando a feira de Grândola, a prima Laura apertando os meus filhos nos braços e comprando vestidinhos às tendeiras,
- Gostas Clarinha?
- Gosto prima.
- Pareço uma baleia.
- Não parece nada. Parece uma menina.
mais do que isso tudo, que é tanto, aborreceu-me ter deixado o livro esquecido em cima da arca do quarto da minha avó. O fantasma da minha avó nem sequer sabe ler. Sabe contar histórias de mulheres vaidosas e de bichos falantes, mas não sabe ler. Já não me lembrava dos Dulmo, dos Clark, dos Garcia, de como é bom voltar aos livros que são assim, melhores do que qualquer companhia, qualquer conversa, qualquer amigo.
Funguei de raiva quando dei conta do meu esquecimento. Um pingo de ranho escorreu-me do nariz. Desdenhei o filho da mãe e todos os livrinhos que merda - bons, mas, ainda assim, livrinhos de merda - que tenho lido nas últimas semanas. Exigi à minha mãe, que vinha tratar de mim e da minha prole, que me trouxesse a caras, a lux, a tv guia. Não podendo voltar ao romance do Nemésio decidi, numa espécie de harakiri literário, entupir-me das histórias das carolinas patrocínios e das alexandras lencastres desta vida. Se era para ler merda que fosse merda a sério. Ela estranhou o pedido e chegou a casa carregadinha de antibióticos e comprimidos efervescentes de vitamina C. Folheei as revistas com exagerado nojo, insultando cada loira que me aparecia pela frente e levantando a máscara para lhes tossir para cima. Antes de adormecer, engoli o Clavamox Dt. Um comprimido que parece um torpedo, um míssil, uma bomba. A minha cunhada avisou-me que o tomasse de 12 em 12 horas e não estranhasse o desarranjo intestinal provocado.
Tratei os meus filhos com cansaço. Agradeci à minha mãe a ajuda e adormeci-lhe no colo. Tão bom ter uma mãe. A meio da noite acordei sem conseguir respirar. Enquanto punha os pingos no nariz veio-me outra vez à cabeça o livro esquecido no Alentejo. Entristeci e recordei a tareia que Diogo Dulmo dá a Margarida logo nas primeiras páginas. Há tantas maneiras de um homem sovar uma mulher. Tenho um ódio miudinho aos homens. Está-me entranhado no corpo. Desprezo-os com benevolência e sinceridade. O meu filho mais velho acha-me injusta quando lhe explico que os homens não valem um caracol. Havia de ter nascido lésbica. Foi então, assim do nada, enquanto meditava nas vantagens do feminismo/lesbianismo, enfim, nas enormes vantagens de um mundo livre de falos, que me lembrei que tenho o hábito de comprar edições antigas de bolso. Faço-o quando gosto das ilustrações das capas. Levantei-me, trôpega, mas feliz, salva. Acendi a luz do corredor e ali, no meio da estante, encontrei um rabo gigante de baleia mergulhando no mar dos Açores.