2013/11/17

Al Green



Acontece sempre o mesmo: procuro no manto da virgem a cabeça do abutre e, nos olhos do menino, a maldade inicial. 

2013/10/21

Funeral

Chove. A viúva mantém-se imperturbável, rosto sem lágrimas, o corpo rijo como se fosse feito de pedra. Essa imobilidade, que soa um pouco a afectação, apenas é quebrada pelos puxões que dá ao filho. Presa pela mão, com uma lagarta de ranho a escorrer do nariz, a criança insiste em querer subir ao monte de terra que cobrirá o caixão. Familiares e amigos mantêm-se silenciosos, hirtos, o mesmo semblante inexpressivo, a mesma serenidade. Só uma velhinha, que mastiga o vazio, soluça abertamente. Quando o coveiro começa a largar pazadas de terra sobre o caixão, talvez incomodada pela contenção geral, leva as mãos ao peito e exclama “coitadinho do meu vizinho!”. A viúva não desvia o olhar, não se mexe. Dá apenas um novo puxão ao filho. O menino sorve o ranho e choraminga.

O coveiro vai compondo desajeitadamente as coroas de flores. Recordo o morto. Namorámos durante algum tempo, pouco depois do meu divórcio. Um homem amável, de conversa fácil, incapaz, porém, de partilhar um pensamento íntimo. Só uma vez, num dia igual ao de hoje, escuro, denso, chuvoso, me revelou o seu mundo interior. Descíamos a Rua da Madalena em direcção à Baixa quando parou a olhar uma varanda de vasos floridos. Como se fosse a coisa mais natural do mundo, explicou que a morte não o assustava. O que o assustava era a morte depois da morte, o esquecimento dos outros, sofria com a possibilidade de ninguém recordar os seus gestos, o tom da sua voz, os principais traços do seu carácter, sobretudo, as suas opiniões. Contou ainda que o pai morrera novo e a lembrança da mãe ajeitando as jarras da campa com flores frescas, beijando o nome incrustado na lápide, era a mais bela que guardava da infância. Como que surpreendido com a sua confissão, ficou por instantes em silêncio, depois continuou a caminhar.

Esqueço essa estranha conversa. Volto a fixar o vulto da viúva. Conheço-a vagamente. É bonita, inteligente, emancipada. Imagino que, ao contrário de mim, não encontre satisfação na simples ostentação do seu corpo. Tenho a certeza de que não voltará a entrar no cemitério. Cuidar dos mortos deve parecer-lhe uma mania de gente ignorante, uma tradição obsoleta, até estúpida. A ideia da campa degradando-se lentamente, enchendo-se de estrelas de bolor preto, entristece-me. Uma rajada de vento forte desequilibra-me e faz-me pisar uma poça de lama. Enquanto raspo o salto do sapato ao bordo de um aviso camarário, tomo uma decisão: não pude cuidar do João vivo, cuidarei dele morto.

2013/10/19

Nico

2013/10/15

Despique

A Dina trabalha há muitos anos no minimercado que fica nas traseiras do meu prédio. No início do ano lançou um romance e partilhou o acontecimento com os clientes habituais. Caí na tentação de lhe confessar que também andava a escrever um livro. Expliquei-lhe ainda que, se corresse tudo bem, o livro sairia em Setembro. Desde então temos conversas muito interessantes sobre o processo de criação literária. Acontece que, por cansaço, também falta de talento, o meu livro não saiu em Setembro. A Dina, cada vez que me apanha, insiste em querer saber quando é que será publicado. Respondo-lhe evasivamente, às vezes, finjo-me distraída e não digo nada. Há coisa de quinze dias, contou-me que escreveu um segundo romance. Sairá em Novembro. Dei-lhe os parabéns, forçando um sorriso amarelo. Enquanto ensacava as compras, notei-lhe um brilho de vaidade no olhar, como se me dissesse assim, toma lá, não consegues acabar o teu livro e eu já despachei dois. Senti-me magoada. Não mereço o despique e até lhe trouxe uma lembrança de Goa.

Ontem, numa grande livraria, procurei o livro da Dina. Encontrei-o com facilidade na bancada dos livros coloridos. Tem uma capa cheia de brilho e traz uma linda cinta a explicar que se trata de uma história de amor, com um travo picante de erotismo. Li páginas soltas e não tardei a pensar, muito aliviada, que merda, que grande merda, o que demonstra bem a minha mesquinhez e não desmerece a escrita da Dina. Li as primeiras cinquenta páginas do último livro do Coetzee, obra aclamada pela crítica – desconcertante, assombroso, alegoria não sei do quê -, e pensei exactamente o mesmo, que merda, que grande merda. Não voltei a entrar no minimercado. Não sou capaz de enfrentar a alegria da Dina e humilha-me ser confrontada com o meu fracasso. A decisão, porém, causa-me transtorno. Agora, se preciso de salsa, fiambre, pão, massa para a canja, tenho de caminhar durante dez minutos até ao grande supermercado que fica na outra ponta do bairro. Não sou propriamente rancorosa, mas penso muitas vezes que era bom que a Dina fosse despedida. Poderia dedicar-se a tempo inteiro à escrita, apurar o estilo, quem sabe até ganhar um prémio literário. Eu ganhava o minimercado de volta. 

2013/10/14

Aznavour

2013/10/10

Outubro

Morri no princípio de Outubro. Enterraram-me num cemitério com vista para a auto-estrada do sul. Passei os primeiros dias entretida, inteirando-me da minha nova condição, descobrindo como é estar morta. Escutei o restolhar das folhas dos eucaliptos e pude fazê-lo durante longos minutos, concentrando-me apenas no ruído das copas, isolando-o do resto do mundo até se tornar insuportável. Vagueei por alamedas, paralelas e perpendiculares, olhando as campas, lendo inscrições, observando a estatuária: gárgulas, anjos, cristos lacrimosos, conchas de mãos piedosas. Cheirei as flores frescas das coroas fúnebres e desfiz com as minhas mãos invisíveis corolas frágeis. No princípio da noite, quando a escuridão era ainda clara, os portões do cemitério eram sempre fechados com estrondo. As mulheres vestidas de preto voltavam para os seus apartamentos de marquises de alumínio e sentavam-se sozinhas em frente do televisor. Uma quietude insuportável abatia-se sobre o lugar e eu voltava então ao meu corpo, deitado num caixão de cetim branco. Encaixava perfeitamente nele. Uma noite, porém, senti desconforto ao voltar a mim. O corpo inchara e eu sobrava dentro dele. Aninhei-me no canto esquerdo e procurei adormecer. Um reco-reco pequeno, um barulho persistente, fez-me despertar. Pensei que fossem térmitas alimentando-se do pinho do caixão. Abri os olhos. Vi duas lagartas gordas, brancas, cegas, sorrindo-me. Uma das lagartas tinha boca de ventosa e mordiscava a ponta esquerda do meu coração. Enervei-me. Não vivo sem corpo. Mesmo morta, preciso dele. Não encontro conforto na imaterialidade, só compreendo o que é concreto, comum, palpável. Enxotei as lagartas que fugiram como toupeiras. Decidi partir. Tentei ressuscitar que é a única maneira que conheço de largar a morte. Não consegui. É muito difícil. É preciso ser deus, filho de deus, parente de deus, amigo de deus, para o conseguir. Na manhã seguinte, estava entretida a observar o namoro dos pardais, vi chegar pela alameda os meus três filhos. Não traziam flores. Vinham com olhos líquidos de abandono. Nessa noite, deitei-me nas ruínas do meu corpo, era já só ossos, os malares cavados, a carne ressequida. Ventava na arcada das costelas e o ruído desse vento perpétuo não me deixou adormecer. A morte pesou-me mais do que a vida.

2013/10/06

La Noyée

2013/10/04

Sala de espera

Tento ignorar as mulheres com o útero já descaído, concentro-me no livro que o Luís me emprestou pouco antes de morrer. Mal entro no gabinete percebo que a médica está tensa. Acelerada, masca uma pastilha elástica e, de tanto o morder, tem o canto do lábio superior cheio de sangue pisado. Sem sorrir, sem me olhar, manda-me despir. Abre-me as pernas e, bruscamente, enfia uma sonda vaginal. Que sorte!, explica enquanto olha o monitor, está limpinha, não precisa de fazer nenhuma raspagem. Despede-se dizendo que daqui a um mês posso voltar a engravidar. Saio do gabinete e volto a sentar-me na sala de espera. Não sinto tristeza, apenas humilhação. Sei que o meu corpo não presta, vive deslassado do resto, mas, para o suportar, sempre me agarrei à evidência da sua outra eficácia. Não chego a ser mulher, sou apenas uma fêmea, um útero, uma máquina. É assim que me vejo. É assim que os outros me vêem. Engravidei quando quis. Tive gravidezes calmas, trabalhei até à véspera do dia do parto. Gerei crianças sadias, grandes, espertas, risonhas e muito bonitas. Toda a gente mas gaba. Para mim era tão certo o nascimento deste filho que imaginei as suas feições, a cor do cabelo, o recorte das mãos. Também pensei em nomes: Ana ou Álvaro. Aproveitei até os saldos de verão para comprar roupa de grávida, duas camisolas, uma preta, outra vermelha, um vestido estampado. Tudo muito justinho e confortável como se quer numa grávida moderna.

Não percebo o que correu mal desta vez. Aconteceu no domingo. O mais novo, sentado no chão, entretinha-se com um puzzle. Preparava-me para lhe explicar que várias peças estavam mal encaixadas quando senti uma cólica violenta. Deixei-o e corri à casa de banho. Sentei-me na sanita e imediatamente escorreu um coágulo escuro, morno, do tamanho de uma uva. Soube naquele instante que dentro daquele saco estava um minúsculo lagarto arroxeado, morto, de mãos de dedos membranosos, cauda embrionária. Fiquei sem saber o que fazer. Descreio do aborto como forma de emancipação feminina e muitas vezes penso no destino desses embriões e fetos expulsos antes do tempo. Que lhes acontece? Devem ser metidos em grandes sacos de lixo pretos juntamente com rins, massas tumefactas, mucos, quistos, secreções, escarros, ossos, restos de pele. A possibilidade desses pequenos monstros serem indistintamente incinerados em fornos de altas temperaturas impressiona-me. Faz-me muita confusão. Deixei-me ali estar, de pé, a olhar o coágulo na sanita, sem conseguir descarregar o autoclismo. 

Agora, estou aqui, nesta sala de espera, limpinha, bem limpinha, como explicou a médica dos lábios trilhados, sem precisar de fazer uma raspagem. Que faço às duas camisolas? Ao vestido estampado que comprei nos saldos? Aos nomes que escolhi para o pequeno lagarto assexuado? Ao rosto redondo que lhe imaginei? 

2013/10/02

Sufixo

Li o relatório várias vezes, satisfeita com o resultado final. Gosto de redigir ofícios, contestações, pareceres, dá-me prazer apurar essa escrita glaciar, objectiva, sem desperdícios, mas formalmente inspirada. Ao final do dia, corri à chuva, procurei subidas íngremes, pisei poças de água e lama. Corro porque preciso cansar o corpo, é a única forma de o sentir vivo.  Na volta passei  pelo minimercado, comprei broa branca, dióspiros, também morangos a um euro o quilo. Fui buscar o Joaquim a casa dos meus pais, beijei o cabelo oleoso da tia Dé, abracei muito a minha mãe, o meu pai pediu-me cuidado com as corridas tardias. Já em casa, enquanto escolhia alguns livros para o R. levar para Dunquerque, encontrei A Aldeia de Stepantchikovo e os Seus Habitantes, o livro mais divertido que li em toda a minha  vida. Levei-o para o quarto e deixei-o em cima da mesinha de cabeceira. Lavei os morangos, arranquei-lhes  o pezinho, enchi quatro grandes taças, polvilhei-as com açúcar e um salpico de água de rosas tal qual aprendi a fazer num programa de culinária inglês. Os meus filhos espantaram-se quando me viram chegar com as taças dos morangos. É o nosso jantar, expliquei. O mais pequeno bateu palmas e, com a sua voz de corneta, exclamou:  és a melhor mãezinha do mundo. O amor num sufixo. Já os deitei, beijei, escutei cada um falar do seu dia. Também já tomei a fluoxetina e o comprimido cor-de-rosa para dormir. Terei uma noite branca, lisa, sem sonhos. É isto um bom dia: eu, livre de calamitosos delírios, aceitando a vida em toda a sua bela tranquilidade, não querendo, não esperando absolutamente mais nada. 

2013/10/01

Andar a pé

 “Posso morrer porque amei e porque fui amada. Gostei de homens, de mulheres, de velhas (de velhos não), de bebés, de bichos, de plantas, de casas, de filmes, de concertos, de quadros, de teorias, de jogos, de pastéis de nata, de jesuítas, de russos, de hamburgers, de Paris e de Londres. Nunca fui a Nova York e gostava de ir, mas não me importo de morrer sem ter ido. Também nunca tive um orgasmo, mas posso morrer sem nunca ter tido um orgasmo. Não me arrependo de nada. É claro que Nova York não se compara com um orgasmo. Um orgasmo é muito mais importante.”

Adília Lopes, Irmã Barata, Irmã Batata


2013/09/25

Coração

No dia seguinte, a cidade despertou, ignorando a dimensão da tragédia. Os jovens casais despediram-se com um beijo. Um homem pediu à mulher que arranjasse beterrabas e repolho no mercado e preparasse um borsch com natas azedas para o jantar. Uma rapariga levou para a fábrica uma merenda de conservas de pepino e pão duro. Dois velhos planearam uma pescaria no rio, num recanto fresco, perto do bosque de abetos, onde nadavam trutas gordas. Uma mulher apanhou o comboio para Kiev na estação de Yanov e, ao olhar a cidade sentiu, sem a saber explicar, a imensa solidão dos espaços vazios. A vida continuou como se nada fosse, a mancha invisível, porém, já se havia espalhado, entrara nas casas, penetrara nos solos, procurara o coração dos objectos, dos animais e das pessoas para aí se instalar.

Shouei

2013/09/20

Endofalk

A preparação para o exame durou dois dias. Andei a dieta de caldos, carnes magras e pão branco, fiambre de peru, peixes magros, carapau, faneca e robalo. Nada de legumes, nada de fruta, quatro saquetas de endofalk diluídas em muita água, três litros para beber, de quinze em quinze minutos, na véspera. O médico explicou-me com familiaridade: Ana Clara, se fores muito presa dos intestinos, podes juntar ao endofalk uma colher de dulcolax. Ele a falar, eu a pensar no canto da sibila, em sefarditas e aristos. À cautela, não fosse dar-se o caso de não levar a tripa bem limpa e ter de repetir o exame, segui o conselho: juntei duas colheres de laxante e espremi meio limão para evitar a agonia de tanta doçura. Enchi um copo de vidro biselado muito bonito que roubei este verão da casa abandonada. Levei-o à boca,  bebi de trago como faço nas noites em que procuro o sossego de uma embriaguez rápida. Comecei a preparar o jantar e aumentei o volume do rádio. Abraçado às minhas pernas, o Joaquim fala de ninhos, ouriços e castanhas, o mais velho, acelerado no quarto, está nas habituais atrapalhações da adolescência. Tenho um potro e um alazão. A doce menina contempla em silêncio a travessa do peixe. Sorrio e esqueço-os. Enquanto espero que a água levante fervura para deitar o arroz, penso no homem de mãos escuras que não me toca, não me quer. Na sua indiferença e distância reside a justificação do meu amor. Felizmente o endofalk não tarda a fazer efeito e liberta-me da melancolia. Empalideço e corro à casa de banho.

2013/09/14

2013/09/12

Fervura

A adolescência trouxe-me uma espécie de fervura ao sangue. Foi por volta dos vinte anos que desejei morrer pela primeira vez. Contava lamelas de comprimidos. Pressionava pontas de faca contra os pulsos. Ficava à beira do passeio a sentir o corpo estremecer à passagem próxima dos autocarros. Subia ao telhado do prédio com o intuito de me atirar lá de cima. Apesar da angústia, sinto um conforto esquisito quando recordo esses instantes desesperados, sobretudo quando me chega a lembrança da beleza extrema do telhado do prédio dos meus pais. Abria a pequena porta de metal e o ar era subitamente puro, livre de fuligem cancerígena. Olhava em redor, só via céu, o alinhamento simétrico das torres de doze andares, a pista do aeroporto ao longe. Parecia-me que ali, naquela dimensão, mundo inóspito, silencioso, solidão muito branca, o ar voltava a chegar-me aos pulmões. A pouco e pouco passava-me a vontade de morrer. Deitava-me no declive de telhas, esverdeado de líquenes, sentia o vento no rosto, esperava que o tempo passasse.

Pensar na morte tornou-se num vício. Aliviava-me. Fazia listas de métodos, tentava perceber qual o mais eficaz e menos doloroso. Todos apresentavam desvantagens e dificuldades. Na queda havia o instante em que o corpo bate no passeio e o crânio se racha. Cortar os pulsos trazia o incómodo do sangue empapando as carpetes da sala e a certeza de morrer lentamente. O enforcamento parecia-me uma morte feia, abrupta, os enforcados morriam aos soluços, o corpo sacudido pelo estertor final, a língua de fora. Outra coisa me fazia rejeitar o enforcamento. Sabia que os enforcados perdiam o controlo do esfíncter e a ideia dos meus pais darem comigo morta, cheia de urina e fezes, envergonhava-me. Tomar comprimidos era, de longe, o melhor método, mas havia a possibilidade da falhar a dose, se não tomasse a quantidade certa corria o risco dos outros encontrarem artificialidade no meu gesto. A reflexão enfraquecia pois a minha determinação. Queria morrer, mas através de um gesto que fosse simples como beber um copo de água ou desligar um interruptor. 

Durante a noite, deitada na cama, muitas vezes, pensei que a solução mais fácil era entregar o assunto a um especialista. Podia simplesmente contratar alguém para me matar. Havia maridos que contratavam assassinos para matar as suas mulheres e mulheres que contratavam assassinos para  matar os seus maridos. Por que não havia eu de contratar quem me matasse? Estes pensamentos extraordinários chegavam geralmente depois de me masturbar a pensar em prostitutas com grandes mamas e vestidos de lantejoulas. A ideia do pistoleiro parecia-me boa, mas não tardei a perceber que a morte, encomendada e eficaz, era um pouco como as prostitutas de vestidos de lantejoulas: um luxo que não estava ao meu alcance. Não tinha dinheiro para contratar um assassino, e mesmo que tivesse, não conhecia nenhum. Vivia num bairro de classe média, pacato, perto de Sacavém. Havia apenas alguns heroinómanos que roubavam enciclopédias, loiças finas e garrafas das garrafeiras dos pais para assegurar a dose diária. Tudo era cinzento e deprimente. Encontrar ali um assassino não era fácil.

Mas, por mais que tentasse livrar-me dos pensamentos suicidas, a vontade de morrer não me largava. Tornei-me obsessiva, a ideia era-me tão agradável como sentir a luz da tarde coada pelas cortinas brancas no quarto da tia Dé ou observar a minha mãe, nas manhãs de sábado, limpando o pó do grande móvel escuro da sala. Sentia-me naturalmente desadequada, anormal, adensava-se a minha inquietação: não só me masturbava a pensar em mulheres prostibulares como sentia esse desejo latente de morte. Muitos anos passados,  habituada à natureza cíclica desse desejo, a minha iniciação no desespero parece-me caricata. Às vezes, entre soluços e lágrimas, dá-me até vontade de rir. Tudo bastante dramático, sofrido, estupidamente inconsequente. Sei agora que, assim como somos pornográficos às escondidas, somos suicidas às escondidas. A vida tem um punhado de coisas boas, mas não é como se pinta. Quase sempre é aborrecida, uma desilusão, está cheia de sofrimento, tristeza, injustiça, ruas sujas e íngremes, crianças com fome, gente silenciosa e desesperada. Como não achar a vida  insuportável? Não tenho dúvidas de que a morte é desejada por muita gente e constantemente. Se houvesse um método infalível, fácil,  instantâneo, limpo, haveria no mundo uma mortandade grande, talvez fosse até preciso mandar construir crematórios, valas comuns, investir na formação de coveiros, técnicos de equipamento de cremação, cangalheiros. Mas há vinte anos, precisamente há vinte anos, não tinha o discernimento de hoje, vivia na certeza da minha singularidade. Dava voltas na cama, inquieta. Quanto mais pensava no assunto mais me convencia de que a morte era o melhor que a vida tinha para me oferecer.

2013/09/11

Aos Amores




2013/09/10

Indicador

Fixo o almoço: sopa de feijão e uma pêra cozida num líquido licoroso. O jornal está aberto. Finjo ler. Recordo o desenho do meu sobrinho, a boca do meu irmão, o sonho de domingo interrompido pelo telefonema da Dá. Distraio-me com pensamentos soltos, lembranças felizes, mas, atrás, correm as imagens de sempre, latentes, dolorosas. Desejo o vazio, isso e aprender a deslizar o indicador no ecrã de um telefone. Sinto o cheiro da minha transpiração e noto pêlos escuros nas pernas. Mantenho-as, porém, cruzadas, à vista, para que sejam observadas na sua triste mornidão pelos homens que esperam na fila. Enquanto levo a colher à boca observo o rapaz das sopas, há doze anos que o vejo ali, entre a Rosa e a Fátima, sempre no mesmo aprumo: pega na concha, mete-a na panela, dá duas ou três voltas para dar corpo ao caldo, trá-la vertical e, com um rápido movimento do pulso, quase imperceptível, faz verter o líquido na tigela. Para além de ser excepcionalmente bom naquilo que faz, o João é gentil, doce. Imagino-o a viver com uma avó, os dois, felizes por se terem, a observar a cintilação do televisor. É isto a minha vida. Almoçar sozinha, imaginar as noites do rapaz que serve sopas e mostrar as pernas aos homens que aguardam na fila do refeitório.

2013/09/05

Lado B



(é bem melhor, este disco; escuto e tenho vontade de acelerar nas curvas.)

Filha

Pergunto “Nunca sentes vontade de maltratar os mais fracos, os miúdos doentes, aleijados, aqueles que são infelizes ou simplesmente parecem infelizes?”. Diz que não e deixa cair a cabeça no meu colo. “Não acontece sempre, mas, por vezes, tenho vontade de gritar com a mulher que pede à saída no metro e, hoje, durante a hora de almoço, senti vontade de pontapear uma criança. Maltratar os fracos sabe sempre bem.”, explico com vagar e cheiro-lhe o cabelo.

Anão

Os poetas, antes de tudo, celebram o amor, e têm razão, porque nada como o amor precisa tanto de ser transformado naquilo que não é. As mulheres tornam-se então melancólicas, enche-se-lhes de suspiros o peito, e os homens ganham um ar sonhador, pois todos percebem imediatamente que um poema que desfigura a tal ponto a realidade deve ser particularmente belo.

O Anão, Pär Lagerkvist

2013/09/01

Joaquim


2013/08/30

Malha metálica

Usa alpercatas roxas, calças de algodão descontraidamente arregaçadas, um fio de ouro com um berloque fluorescente. É uma mãe jovem, cheia de graça e entusiasmo. Conheço-a vagamente do portão da escola. A conversa sai-lhe diluviosa e o tom vai num crescendo de afectação nasalada. É extraordinário como é capaz de libertar uma quantidade tão grande de palavras. O ritmo é alucinante, quase mecânico. Nem por um segundo hesita. Talvez seja isto a capacidade demiúrgica do dizer. Ser capaz de falar assim parece-me uma proeza irrealizável, quase mágica. Mas, aos poucos, o ruído torna-se excessivo. A conversa obriga-me a um esforço de concentração: tenho de escutar, acenar a cabeça, responder, sorrir. A vida passa a ser insuportável e a realidade paralela, onde sempre renasço, desaparece lentamente. A mulher continua a falar. Passo a mão pelos borbotos da blusa e fixo os sapatos novos que comprei numa loja de calçado ortopédico. Enquanto noto o brilho encerado da pele maleável desejo que a mulher emudeça ou morra. Podia simplesmente pedir-lhe que se calasse, mas a minha cobardia tem raízes fundas, grossas como dedos, bastante poderosas e paralisantes. Nunca serei capaz de interrompê-la, tocar-lhe no ombro, explicar-lhe educadamente que preferia estar ali, em silêncio, em frente da carne morta na vitrina do talho, a observar o empregado vesgo encarregue de desossar uma perna de cabrito, um prodígio de brutalidade que, a cada novo corte, compõe o bivaque da farda ensanguentada e ajeita a luva de malha metálica.

2013/08/27

Slimane




2013/08/26

Caldo de cenoura

Acordei com a habitual sensação de vergonha e cansaço, picadas na mama esquerda, dores de cabeça e mau hálito. Deixei-me ficar sentada na cama a olhar a criança desconhecida que cavalga uma nuvem de fuligem. Durante a manhã, peguei no processo de um jovem médico, compulsivamente aposentado por sofrer de psicose delirante crónica. Senti-me aliviada por ter uma doença que, avançando com lentidão, me poupa do enxovalho social. Tenho-a há vinte anos, e, na maior parte do tempo, ninguém dá por ela. Ao almoço comi um caldo ralo de cenoura e encalhei na seguinte expressão: capacidade demiúrgica do dizer. Li-a na contracapa de um livro e não a compreendi. 

2013/08/25

Calor de Agosto

Matou-a com trinta e quatro golpes de faca. Atingiu-a nos braços, nas pernas, no tronco, vazou-lhe uma vista. O médico legista explicou que, pelas marcas, se percebia que a ponta da faca fora torcida depois de enterrada no olho. Para justificar tanta facada, o assassino explicou ao juiz que encontrara, naquela tarde de Agosto, um outro homem em casa. O ciúme falou mais alto. Pegou numa faca e, enquanto o calor abafava o apartamento, escorrendo pelas paredes, esfaqueou a mulher. O calor era muito e talvez tenha sido esse calor de Agosto, tão ardente, que lhe ateou a raiva e permitiu que o ódio se apoderasse de si. Talvez, continuou o homem, se estivesse um dia mais fresco, a raiva não tivesse ardido como ardeu.

Com o calor de Agosto, num instante, a fagulha se ateou e incendiou-lhe o corpo. A culpa, via-se bem, era dele, que não era homem para a não assumir, mas também do calor, do maldito calor de Agosto. O juiz escutou o assassino em silêncio e encontrou beleza nas suas palavras. As vizinhas, durante o julgamento, contaram os pormenores daquela vida. A pancadaria era muita e as discussões permanentes. Discutiam por tudo e por nada. Por causa do dinheiro, por causa do choro do menino, que tinha cólicas, mas, sobretudo, por causa da televisão. Ele queria ver o domingo desportivo; ela queria ver as telenovelas. Os gritos interrompiam o silêncio da noite. Eram gritos lancinantes. Pareciam arrancados de dentro. O homem chamava muitos nomes à mulher, nomes indecentes, porcos e ordinários, nomes que custava repetir ali, na sala de audiências, na presença dos senhores doutores juízes. Porém, explicaram as depoentes, quando amanhecia, a porta do apartamento abria-se e saiam os dois, homem e mulher, a caminho da paragem do autocarro. Como se nada se tivesse passado. Às vezes, quando a mulher trazia o corpo mais moído da pancada, o homem aliviava-lhe a carga e levava o bebé ao colo. Uma mulher contou que, muitas vezes, enquanto ele lhe batia, ela pedia “Amor, por favor, não me batas na cabeça”.

(A última frase, lida há alguns anos num jornal, não me larga e, hoje, para o meu filho mais velho, para lhe mostrar a maldade de Deus, li uma passagem de um conto do Albert Cossery, o do barbeiro que mata a mulher.)

2013/08/23

Lésbica turca

- Estás horrível, mãe. Pareces uma lésbica turca.
- Sou uma lésbica turca. - respondo e, lentamente, começo a descolar as bordinhas do adesivo para lhe mudar o penso. 

(os mais velhos voltaram; a felicidade, por vezes, parece-me uma coisa bastante simples e alcançável.)

2013/08/22

Encontro feliz

Andava por ali, mole, espapaçada do calor, desinteressada, triste por sentir as calças de ganga ligeiramente apertadas. Estava já de saída quando, numa prateleira baixa, alinhados, descobri vários livros do Albert Cossery. Um encontro feliz. Li páginas soltas e, de imediato, escolhi três livros. Perto do balcão, desacelerei na espiral consumista: lembrei-me de que ainda precisava de passar pela perfumaria para comprar uma base de verão. Comprar três livros, mais uma base da dior, assim de uma assentada, pareceu-me um capricho, um devaneio perdulário, apetecível, mas revelador de destrambelhamento e desorientação. Decidi levar apenas dois livros, o das entrevistas (5 euros) e a colectânea de contos (12 euros). Ainda pensei em prescindir da base de verão, mas, na minha vida, a estética pesa tanto como a literatura e a frivolidade por enquanto fica-me bem. Percebi, no entanto, que desejava ter exactamente aquele exemplar de “Mandriões no vale fértil”. Não outro qualquer. É raro acontecer, mas, por vezes, dá-se uma espécie de magnetismo entre mim e certos livros. Deve ser uma sensação parecida com o amor à primeira vista. Há livros cheios de sedução fantasmagórica que parecem dizer-me assim: sou teu, és minha, leva-me para o teu quarto, toca-me com os teus dedos curtos de cutículas roídas, depois esquece-me nos entremeios dos teus lençóis. Não deve haver muita gente à procura dos mandriões do vale fértil. Tenho a certeza de que, deixando o livro na prateleira onde o encontrei, daqui a uma semana, um mês, um ano, voltaria a encontrá-lo no mesmo lugar. Mas, à cautela, não vá o diabo tecê-las e um qualquer parvalhão pegar nele, enfiei-o atrás de uma fila de livros técnicos, num canto escuro onde ninguém o encontrará.

2013/08/18

Maputo



Três da manhã. Li o primeiro romance “faceto”, o primeiro “frívolo livreco”, reli o segundo, tomei meio comprimido, bebi um chá de ervas muito quente que me queimou o avesso. Animei-me com a Custódia, a Pascoela, a Eufémia Tronchuda, a Felícia, esqueci até a irritação que me provocou a misógina comparação entre a Fêmea e a Política. Consolada, julguei a noite ganha, pensei que adormeceria rapidamente, esquecida do resto. Voltei porém a não conseguir adormecer. Dei voltas e voltas na cama. Chegou a espertina habitual. Pensei em mil e uma coisas. Em aulas de tango. No meu cabelo que não pára de cair. Na mulher de ancas largas desmerecendo um jovem escritor. No entusiasmo apopléctico, deslumbrado, cheio de tremores, da M. em relação a um outro que cheira mal dos sovacos. No cheiro da minha prima Filomena. No cheiro dos escabicidas. Em sudação animalesca. Nas contas que tenho para pagar. Em Dunquerque. Na Cornualha. No meu filho João, distante, provocador, cada vez mais bronco. Pensei também na primeira noite em Maputo. A noite quieta e o velho da bomba de gasolina dançando sozinho ao som desta canção. 

Leda

Voltei com o Joaquim. Fazem-me falta os outros. Passei o dia em limpezas, as minhas mãos estão cheias de cortes, a polpa dos dedos inchada. Cheiram a lixívia. Preciso de ter a casa limpa, gavetas ordenadas, roupas lavadas, as madeiras a cheirar a óleo de cedro. Deitei o Joaquim, mordi-o e lambi-o. Não jantei e bebi duas cervejas no estendal. Lembrei a conversa com a minha irmã. Contou que a Laurinda, depois do divórcio, bebia muito. Também bebo, bebo todos os dias, não muito, só o suficiente para largar a minha pele e fingir que sou outra qualquer. Despi-me para tomar banho. Vi-me reflectida no espelho do lavatório, nudez morna, corpo escuro, olhos borrados de khol, o cabelo solto, pensei no marroquino do café da aldeia, desejei que me visse naquele instante, a entrar no banho, mascarada de leda cigana.

2013/08/02

Conchanata

Havia sempre flores frescas nas jarras. O quarto estava limpo, arejado, perfumado. A cama feita com os meus lençóis preferidos. Na fruteira, em lugar de destaque, para que a visse mal entrasse na cozinha, uma papaia madura. Essas pequenas atenções da minha mãe amorteciam o desconsolo do regresso, faziam-me esquecer a liberdade das férias, longe da disciplina do meu pai e da preocupação excessiva da minha tia. Agora sou eu que preparo o regresso dos meus filhos. A Madalena volta hoje do estágio, chega no comboio das onze, frágil, bonita, com os dentes tão tortos. Passei a tarde a arranjar tudo para que se sinta feliz por voltar a casa, a nossa casa: comprei ramos de cravinas, obriguei o Joaquim a fazer um desenho colorido para embrulhar uma tablete de chocolate salgado, há bacalhau com natas no forno, figos no frigorífico, uma conchanata no congelador. 

2013/08/01

Pilriteiro

Dos ramos espinhosos nasciam folhas enceradas que faziam lembrar asas frágeis de insecto. Na Primavera, a árvore cobria-se de flores muito perfumadas e, no Outono, de pequenos frutos vermelhos que pareciam romãs e cresciam em cachos. Quis muitas vezes trincar aquelas maçãs liliputianas. Tomar-lhes o gosto. Porém, a tia Dé, quando me via perto de tal árvore, as mãos fechadas escondendo as bagas, abria muitos os olhos. Adivinhando a minha vontade de as trincar, explicava que tais frutos eram venenosos, certa vez até aparecera no hospital um menino, tão pequenino, muito doente por ter comido aquelas bagas. Depois, com rispidez, dava-me palmadas nas mãos até eu as abrir e largar os frutos vermelhos. Nunca soube o nome de tal árvore. Encontrava-a no jardim do Campo de Santana, perto do infantário, talhada em sebes vivas, também nos jardins do Seminário dos Olivais onde o cheiro das amoras maduras tornava as tardes de Agosto mais quentes. Sempre que via a tal arvorezinha chegava-me uma vontade urgente de lhe trincar os frutos. Mas logo me lembrava dos avisos da minha tia. Imaginava, então, que se trincasse uma daquelas bagas vermelhas cairia no chão tal qual a Branca de Neve quando provou a maçã. Se provasse as bagas de tal árvore, imaginava eu, pequena, unhas sempre roídas, passaria o resto da vida enfiada num esquife frio de cristal. Por isso, por temor, nunca desobedeci à minha tia. Apertava os pequenos frutos nas mãos até os esmagar. Uma decepção profunda tomava conta de mim quando lhes via o interior grumoso e pálido. Queria que tivessem uma polpa vermelha, dramática, sinal de paixão e doçura. Hoje, quando cruzo o parque da Fundação, ignoro os avisos para não pisar a relva e não apanhar flores e frutos. Apanho sempre meia dúzia de bagas das árvores que crescem junto do Centro de Arte Moderna. Enfio-as nos bolsos. As bagas continuam sem cheiro. Apodrecem nos meus bolsos até ao dia em que as meterei à boca.

(Voltei a pegar no livro que, para além de castelos merovíngios, fala de pirliteiros e pirlitos. Cedo, voltarei a abandoná-lo.)

2013/07/30

Elvis



(tão bom.)

Für Elise

Um dia, para além dos habituais pacotes de pinhoadas e amores,  a prima Laura  trouxe-lhe da feira de Grândola uma bonequinha musical. Era uma figura de porcelana áspera, uma dama antiga, cabelo aos cachos, vestido enfunado com um remate de folhos, uma cadelinha dengosa nos braços. Por baixo do vestido havia uma pequena manivela que, torcida, fazia a boneca dançar ao som de uma melodia triste. A minha avó adorou o presente e, muitas vezes, mostrava-me a pequena estatueta, insistindo na sua beleza e maravilhando-se com a música sombria, mas bonita, que se libertava do seu avesso. Dava-lhe corda e, muito quieta, vestida de negro, lenço de lã na cabeça, escutava o arranhar melodioso das palhetas metálicas no pequeno carrilhão. Eu não dizia nada. Olhava a minha avó com distância e condescendência. Achava a boneca um objecto de mau gosto, bastante foleiro com as suas cores garridas e traços grosseiros. Desprovida de qualquer beleza evidente, sem marcas de erudição estética,  a boneca causava-me naquela altura um arrepio de nojo. Passados tantos anos, morta, enterrada, quase esquecida a minha avó, a lembrança dessa pequena boneca de loiça liberta em mim reflexões frívolas, tremores poéticos, as melancolias mais íntimas.

2013/07/29

Ameixas

- Ana, que barulho foi esse?
- Um peidinho. -respondo, lembrando o domingo passado na cama a ler e a comer ameixas amarelas, e continuei a arrumar os iogurtes no frigorífico. 

2013/07/25

Marcador preto

Escrevo no caderno com um marcador preto. Tenho páginas e páginas escritas, coisas sem interesse, as banalidades do costume, sobretudo notas sobre os outros: a mulher-elefante que todos os dia chega ao café, cigarro ao canto da boca, voz grossa, a expectoração solta a notar-se em cada gargalhada, o marido da Graça esperando no carro, tão acabado do cancro, quase morto, as mãos da minha irmã, o cheiro dos pés do Joaquim, os olhos da minha mãe, o meu pai de pijama pedalando na marquise da sala para afugentar as atrapalhações da idade. São apenas impressões, desabafos, nada que mereça a correcção de uma segunda leitura. E, no entanto, gosto de olhar essas páginas ligeiras, mas fecundas, cheias de vida. Reaprendi a escrever e, depois de anos de abandono, tomei posse da minha caligrafia, ligeiramente inclinada para a direita, correndo, arrepiada, fora de margens e linhas, cheia de golpes, hastes longas, exageros. Enquanto escrevo deslumbro-me com a habilidade e a velocidade da minha mão.

2013/07/24

Solipsista

Solipsista. Nossa Senhora do Carmo. Ombros nus. Vestido branco. Alinhavos vermelhos. A velha má da mantilha preta. Fantasmagoria. Malaquias imolando o filho. O cutelo ao alto. Luz coada pelos vitrais. Noventa anjos. A pele das mãos rebentada. Tomo conta de ti e dos teus filhos. Rosto tortulhado. Cabeças de pus esverdeado. Pontos negros. Carnes secas. Unhas roídas até ao sabugo. O cheiro das flores de figueira. Duas figueiras em Xabregas, outra numa esquina da cidade, crescendo num canteiro de fetos velhos. Um cipreste de gálbulos languinhosos. Uma mosca vareja. Uma porta de fitas. Amostras de cremes firmantes, clareantes, hidratantes. Farmacopeia variada. Duas manchas de pano. Uma sombra picada de bexigas. É um poeta muito, muito, muito bom. A sério? A sério. A palavra grunho impressa. O sexo dos textos. O tempo das mulheres. Um livro na Rua de São Domingos de Benfica. Uma cama na Rua Passos Manuel. As mãos do homem no corpo da mulher. Tomo conta de ti e dos teus filhos. Uma tosse cheia de gosma. Um arfar pesado. Uma pinça arrancando pêlos negros do buço. Sarro atrás da torneira do lavatório. Outros sarros. Duas irmãs descalças apanhando bolotas para matar a fome. Mãe. Tia. O vento morno. O sino marcando o início da tarde. Uma mulher deitada no meio da rua mais feia da cidade. Mãos entrelaçadas. Olhos fechados. Palavras novas e advérbios interrogativos. Porque chorava? Porque o tratava mal? Por que chorava? Por que o tratava mal? A certeza da ignorância. Duas sardinheiras no canteiro da escola de yoga. 

(livre associação.)
(Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra: “Joaninha, Joaninha, porque tens tu os olhos verdes?; Eça de Queirós, Os Maias: “Porque não tens tu voltado aos Gouvarinhos?)

2013/07/23

Lost Soul



Descobri que gosto mais do Geater Davis do que do Marvin Gaye. Muito mais. 

Vício

O Flaubert aconselhava a ter cuidado com a tristeza. Cuidado com a tristeza, dizia ele, pode tornar-se num vício. Percebo bem o que queria dizer. Sou depressiva há muitos anos, mais de vinte, e não sei como me livrar da tristeza quando ela decide tomar conta de mim. Já tentei psicoterapeutas e psiquiatras. Já tentei o suicídio. Já tomei muitos comprimidos, lamelas e lamelas de comprimidos. Já falei com um padre. Já tive filhos para que a maternidade, me secundarizando, acabasse de vez com a tristeza. Já tentei preencher o tempo com coisinhas para experimentar a felicidade dos gestos rotineiros. Nada resulta. É preciso força de vontade para nos livrarmos de um vício e eu não a tenho. Sou de vícios e fraquezas.

(São cinco da manhã. Há três noites que não durmo. Fico de olhos abertos a olhar a escuridão, a escutar a cómoda estalar com o calor. Podia aproveitar a espertina para escrever sobre as duas mulheres que encontrei no cemitério, sentadas em banquinhos de lona, sossegadas, a limpar uma campa. Achei-as muito bonitas, ali no meio da brancura funérea, tratando os seus mortos. Não sou capaz. Espero apenas que amanheça. O dia é sempre melhor do que a noite. Está cheio de ruído, o silêncio não pesa.) 

2013/07/21

Domingo



No escuro da sala, peguei-lhe na mão e sussurrei-lhe ao ouvido "amo-te". Depois, estivemos sentadas num banco, em silêncio, a olhar o Joaquim correr no parque, irrequieto como um cabritinho, os pés de dedos gordos enfiados nas sandálias baratas. Gostava que ele nunca crescesse, que ficasse assim para sempre, pequenino, a depender de mim, a fazer-me companhia, a ser a minha muleta, acabei por lhe confessar. Ele vai crescer, mas podes sempre ter outro filho, respondeu, segura, serena, certa das palavras que usa.  E com quem?, perguntei-lhe, atrapalhada com aquela conversa. Ela respondeu. Pergunto-me muitas vezes como é possível que esta criança seja minha filha. Às vezes, aliás muitas vezes, parece que é ela a mãe e eu a filha. 

2013/07/20

Aninhas e a flictena

Aninhas, nas noites de Inverno, enquanto esperava que o professor de semiótica ligasse, sentada em frente da televisão, acendia sempre um aquecedor eléctrico de resistências incandescentes. Costumava ter os pés frios e os dois filamentos cor de laranja, brilhando na escuridão, davam-lhe algum consolo. O lume é uma companhia, lembrava-se de ouvir a avó dizer quando era pequena. O pequeno radiador eléctrico, com as suas lágrimas de fogo contido, pousada aos pés, era um triste substituto dessas fogueiras. Fazia-lhe companhia.Mas deve ter-se cuidado com as companhias que as há perigosas. Uma noite, em que adormecera a ver um documentário sobre crocodilos, acordou com um cheiro intenso de borracha queimada. Deixara os pés demasiado perto do aquecedor e a sola das pantufas amolecia com o calor das resistências ligadas na potência máxima. Em vez de se descalçar, assustada, levantou-se com um salto. O peso do corpo pressionou os pés sobre as solas que ferviam. A pele ficou apenas superficialmente queimada, mas a erupção de uma flictena obrigou-a a estar sem andar durante alguns dias; deitada na cama, os pés cobertos com um creme gordo, entreteve-se a ler revistas de culinária para aprender a confecção de pratos que agradassem ao professor de semiótica. A epiderme acabou por cair, nasceu outra, dura e calejada e, por baixo do mindinho do pé esquerdo, no lugar da flictena, uma pequena verruga muito obstinada que, apesar da constante aplicação de adesivos com ácido salicílico, insistia sempre em nascer.

2013/07/17

Miraflores

Planta carnívora

A modernidade exige-lhe artefactos: usa fiadas de pulseiras, colares coloridos e, quando ajeita o cabelo, mostra uma borboleta negra, tatuada no pescoço. É dada a misticismos, vitalismos e esoterismos, acredita no poder da risoterapia, da cristaloterapia e da cromoterapia, também pratica o reiki, o tai-chi e o kung-chi. Demora-se a explicar cada conceito, cada modalidade. No seu entender, explica muito séria, a felicidade pode facilmente alcançar-se com mantras, meia-hora de meditação por dia e uma alimentação livre de impurezas. Escuto-a sem a interromper. Tudo aquilo me parece disparatado e até um pouco triste. Tanto cuidado na escolha e acabo a falar com uma tipa que, rejeitando a tradição das suas origens, sem temer o ridículo da desadequação, parece admirar apenas a grandeza espiritual de países longínquos. Desprezo quem, encontrando nesse tipo de contemplação um sinal de mundividência, não se dá conta que tal apreço pelo exótico revela apenas provincianismo. Que estúpida, que grande estafermo, penso. Com um entusiasmo quase delirante, a rapariga põe-se a falar do espírito cósmico. A conversa desnorteia-me, afasta-me cada vez mais do meu propósito. Sinto  um profundo desalento durante o resto da refeição. Tudo o que oiço me parece despropositado, mesquinho, de uma frivolidade que me incomoda. Quando a rapariga se levanta para ir à casa de banho volto a olhá-la. A maquilhagem procura diluir a banalidade, boca apagada, lábios tão finos que mal se distinguem do resto do rosto, olhos espantadiços. O corpo, porém, hipnotiza, formas preenchidas no busto e quadril, a cintura marcada por um cinto de duas voltas. Fala de espiritualidade, mas é apenas matéria. O palavreado místico é um véu enganador, a carne é a sua vocação, o corpo funciona como a armadilha de uma planta carnívora. 

2013/07/16

Campanella

Sandra

Eu sentia-me esmagado de humilhação, como é que lhe havia de falar? Quem é que disse que o amor aproxima não sei quê? Não é verdade. Sou um homem experimentado – não é verdade. Se eu amasse pouco Sandra ou não a amasse, era-me muito mais fácil falar com ela, lidar com ela e com a irmã com quem quer que fosse dela, eu livre e independente. Amar é pôr ao alto e ao longe, treme-se como diante de um deus tresloucado. Amar muito é ter pouco de nós com que se possa ser gente. Amar é ser desgraçado e eu era. 

Para Sempre, Vergílio Ferreira

(Não pegava no Vergílio Ferreira há muito tempo. Que besta.)

2013/07/15

Aninhas e o beijo nipónico

Procurava uma palavra. Sentia cansaço, fome, o dia findo lá fora. Escurecera de repente e só o ecrã do computador brilhava no apartamento. Aninhas sentiu-se triste, aflitivamente só. Minimizou uma janela, maximizou outra. Procurou o filme do beijo nipónico. Deixou-se estar muito quieta a vê-lo. Duas jovens japonesas, de farda colegial, corpos óbvios, fecundos. Trocaram algumas palavras e começaram a beijar-se. Um beijo húmido, secreto. Aninhas baixou o volume para que os gemidos não se ouvissem no patim das escadas. Depois, despiu a camisa e libertou-se do sutiã. Humedeceu os dedos e tocou nos mamilos, sentiu-os firmes, cheios, teve vontade de os morder. Abriu ligeiramente as pernas e meteu a mão dentro das calças. Não tardou a sentir um orgasmo silencioso, bom, incapaz, porém, de suspender a realidade. Voltou a vestir a camisa, compôs o cabelo. Olhou em volta, por todo o lado, sinais de rotina, os chinelos do marido, a taça de gelado que o filho deixara em cima da mesa, os dois pretos de madeira que a empregada insistia em colocar no rebordo da estante. No ecrã, as colegiais japonesas continuavam a beijar-se. Aninhas deixou-se estar a olhá-las durante algum tempo, novamente fria, corpo feito pedra. Levou a mão ao nariz e, na ponta dos dedos, sentiu o seu cheiro, um cheiro adocicado, irritante, previsível, a lembrar calor, pedaços de jagra escura, passeios cheios de lixo. Ajeitou o corpo na cadeira e continuou a escrever.

2013/07/14

Coisas preferidas



(Ler em igrejas, correr, fumar, beber, ver o João chegar, escutar-lhe a voz e sentir-lhe o cheiro, cortar as unhas dos meus filhos, ler para os meus filhos, cantar para os meus filhos, caminhar sozinha.)

Aninhas e a quiromante

Está acostumada aos pequenos acidentes que por vezes acontecem. Mete os lençóis a lavar a noventa graus e o edredão, volta e meia, tem de ir a limpar à lavandaria. Cada vez que lá vai, Aninhas tem de se sujeitar ao sorriso da empregada, uma brasileira já íntima da freguesia, sempre disposta a esquecer o serviço por dois dedos de conversa. É uma mulher vivaça, muito afogueada dos vapores que se soltam dos ferros com caldeira, esbagachada em vestidos justos, mostrando uma mamas enormes, imensas, que parecem não ter fim. Mas a brasileira da lavandaria não é só concupiscência exuberante: tem dons especiais, é uma espécie de quiromante. Sagaz, dotada de uma intuição apurada, é capaz de ler a vida de uma pessoa a partir de manchas e nódoas como outros a lêem das linhas das mãos e das borras de café. O cheiro a bafio é sinal de não querer largar o passado. Punhos e golas de camisa puídos revelam perseverança, desejo de alcançar uma vida monetária desafogada. Nódoas salpicadas em toalhas de festa são sinal de afectos intensos e espontâneos. Roupa amarfanhada, com pequenos rasgões nas costuras, mostram inflexibilidade e desentendimentos. Uma coberta de cama, cheia de manchas amareladas, revela frenesim no momento da separação dos corpos, é sinal mais que evidente de exacerbação sexual. Da última vez que Aninhas levou a colcha a limpar, a brasileira largou-lhe um sorriso retrincado e, depois de um instante a chupar os dentes para tirar um pedaço de febra entalado entre os molares, foi dizendo que as manchas já estavam muito entranhadas, da próxima vez, que trouxesse a colcha no dia seguinte, esfregando logo com vinagre branco e álcool talvez a coisa se compusesse. Continuou a chupar os dentes e, sem vacilar, entregou-lhe o volume plastificado. Aninhas sentiu um estremeção no peito e jurou nunca mais ali entrar.

2013/07/13

Notícia

2013/07/11

Carepas

De costas, numa cadeira de rodas, uma mulher espera. Pela postura, a cabeça mole, caída, percebo que a deficiência não é apenas física. Entro na tabacaria e rapidamente a esqueço. Folheio revistas e jornais, escrevo o meu nome num bloco cheio de garatujas coloridas para perceber o traço de canetas e esferográficas. O poeta anda por ali a comprar jornais. Olhando-o, olhos caídos para o chão como se tivesse medo do mundo, lembro a pobreza discursiva da minha escrita. À saída, volto a dar de caras com a mulher na cadeira de rodas. Continua sozinha. Como se alguém ali a tivesse propositadamente abandonado. Sorri-me, um sorriso cheio de pureza e fealdade. Faltam-lhe vários dentes na boca torcida como um parafuso. Os olhos, velhos, estão metidos em covas escuras. Tem, e é isso que mais impressiona, o rosto coberto de escamas vermelhas. Umas carepas de sarna, de seborreia, de caspa, não sei bem do que são. Com uma mão muito branca, em forma de garra, a mulher arranca pedaços de crosta que ficam acumulados por baixo da sujidade esverdeada das unhas demasiado compridas. Desvio o olhar, agoniada. Imagino-me a cuidar de uma irmã, uma tia, uma filha assim. Talvez fizesse o mesmo. Abandonava-a na frescura climatizada de um centro comercial e ia à minha vida.

(Na tabacaria, foi com esse propósito que ali entrei, comprei um caderno. Quero escrever com liberdade sem que me acusem de egoísmo. Censuro-me bastante aqui.)

2013/07/10

Sal do deserto

Hoje, à hora do almoço, deitei-me com um homem e lambi-o. Não gostei do homem nem do sabor do seu suor, asséptico, com um ligeiro travo a bolor e medicamento. Na casa de banho, enquanto me arranjava, bochechei a boca com água e cuspi. Como se estivesse no dentista. Ao olhar-me no espelho, lembrei-me da rosa do deserto que a Cilinha, minha madrinha, costumava guardar na cómoda do seu quarto. Feita de areia e sal, de uma cor muito bonita, misteriosa, foi objecto que durante anos exerceu sobre mim um fascínio muito grande. Sempre que visitava os meus padrinhos no apartamento de Benfica, corria ao quarto deles, procurava a rosa do deserto e ficava a olhá-la. Depois encostava a flor de pedra à boca para sentir nos lábios o sabor do deserto. Hoje, ao olhar-me no espelho, depois de lamber a pele de outro homem, percebi finalmente ao que sabe o teu corpo: ao sal do deserto.

2013/07/09

Linfoma

É doloroso ler o que escreves, explicou ontem a minha mãe ao telefone. Escutei-a em silêncio e pedi-lhe desculpa. À noite, deitada na cama, o Joaquim muito transpirado, enrolado nas minhas pernas, dei com esta passagem no livro do Vergílio Ferreira : “Mentalmente pensei, bócio, linfoma, seria ele ainda? Estava sentado no passeio, uma caixa de esmolas ao lado. Seria já um seu descendente? Seria talvez um seu antepassado que viera vindo através de gerações até chegar ali com o seu saco de pelicano suspenso do queixo. Perguntei-lhe se ele era de Coimbra, ele disse-me o senhor compreende, lá já ninguém me ajudava por já estarem habituados à minha desgraça. E eu compreendi. Porque uma desgraça, como tudo, vai perdendo o ser com cada vez que se vê e o ver lho come.” Li e percebi que a minha tristeza é tal qual o aleijão do pelicano de que fala o escritor. De tão assumida, escancarada, exposta, perdeu impacto, tornou-se banal. É simplesmente maçadora. Não devia impressionar ou preocupar ninguém. Faz parte de mim.

Bárbara

Mas eu esperei infinitamente que você me não humilhasse, que percebesse que eu abrira uma porta e você não ficasse à porta. E eu pensei o que ele quer de mim? Poderá ele entender um corpo de mulher? Saberá ele a verdade de um seio, de uma boca, do sítio definitivo em que esse corpo se cumpre? Do sítio em que o animal tem o direito de existir? Ele vai beijar-me, pensei, vai conhecer as mãos com os meus seios, vai indagar do secreto do meu ser, da fonte do meu sangue e eu vou sentir que o seu amor também tem um corpo a acompanhar. Mas você não fez nada, nem sequer me beijou e eu tive asco e horror e desprezo por si.  

Na tua face, Vergílio Ferreira

2013/07/07

Calor

Corpo atravessado na cama. Nu, suado, salgado, morto. O quarto muito escuro. Fecho os olhos. Penso em punhos cortados, nos meus pés à beirinha da linha do comboio, nas caixas de comprimidos guardadas no armário da casa de banho. Não consigo evitar a tristeza, os pensamentos sombrios, a angústia patética. A tentação é sempre grande. Tenho vontade de retalhar com golpes fundos, muito dolorosos, o meu corpo. Mata-lo. Não o suporto na sua inapetência. Devia ceder de vez à loucura. Deixar de brincar ao faz de conta. Talvez conseguisse descansar. Dormir uma noite seguida. Chega o Joaquim, só de cuecas, óculos escuros na cabeça. Deita-te em cima de mim, peço-lhe. Ele trepa e deixa-se estar muito quieto como se compreendesse a essencialidade do gesto. Estás triste, pergunta. Estou, estou muito triste, respondo. Ficamos assim, corpos sobrepostos, durante algum tempo, a ver se a minha tristeza passa. Costuma passar.

2013/05/23

2013/05/14

Vaca Profana



(a inclinação natural do meu destino.)

Vermelho


Estou com um buço espectacularmente escuro e grande, não tarda nada terei uma bigodaça farta e revirada, onde pingos glutinosos de caldo verde poderão secar como estalactites. Voltei a roer as unhas até ao sabugo, ando com as polpas dos dedos inchadas e cheias de feridas. Tenho um molar estragado que, deixando um sabor fétido na boca, larga uma halitose potente. Cortei o cabelo tão curto, já o não consigo apanhar. Os meus pés, por causa das sabrinas baratas que uso sem meias, cheiram a chulé e os meus sovacos, apesar do desodorizante, não aguentam até ao final do dia sem libertar um cheiro recozido de suor. Como os primeiros dias de sol, o meu melasma, apesar da furiosa aplicação de cremes despigmentantes, nota-se cada vez mais e, por causa do mioma, este mês, o meu fluxo menstrual voltou a ser diluvioso e inconveniente: largo golfadas de mênstruo coagulado, mas de um vermelho intenso, muito bonito.

2013/05/09

Barbela

Andavam duas jovens mulheres a cirandar pela livraria. Qualquer coisa no modo como caminhavam lembrava a alegria tola das galinhas criadas no campo: acabam no prato, como as outras, mas têm a ilusão da liberdade e da dignidade. Tinham ar de leitoras do Nicholas Sparks, o que só as enalteceria, mas não eram: uma levava a Serpente Emplumada debaixo do braço e a outra, com uma voz meio fanhosa, cheia de entusiasmo, pediu ao balcão o livro do último prémio Leya. Andaram por ali, largando comentários sobre a essencialidade da literatura nas suas vidas e mostrando a sua relação  íntima com os livros. Até que a mais gorda, arrebitando a crista, abanando o pelancame vermelho da barbela, olhou em redor e cacarejou assim ” Eu, se pudesse, levava a livraria toda!”. Saí, claro está. Fui enfiar-me numa loja chinesa a comprar collants. São mais baratos, a qualidade do fio é a mesma e as cores têm nomes bonitos: muskade, duna, tropical.

2013/05/07

Aninhas e o dono


Às vezes, a meio da noite, ia buscá-la à cama do filho e obrigava-a a voltar ao quarto. Não te faço nada, dizia calmamente, mas vens dormir na nossa cama. E puxava-a pelo braço. Como se fosse uma cadela, uma escrava, uma demente sem vontade própria. O filho cobria a cabeça com o edredão para não escutar  o que vinha a seguir: Aninhas tentava libertar-se, gritava muito alto, mordia os braços até os ver sangrar, batia com a cabeça nas paredes, rasgava a roupa do corpo e, assim, nua, tentava fugir para a rua. Com o tempo, porém,  acabou  por desistir da loucura. Isso custou–lhe mais do que o resto. Passou a ser obediente: percorria o corredor em silêncio, olhos caídos no chão, voltava ao quarto e deitava-se ao lado do dono. 

2013/05/05

Lobo Mau



(Foi à estante dos cds. Procurou qualquer coisa que não encontrou. Trouxe um disco do Nick Cave. Avisei-o que não era o género dele. Era música de crescidos. Expliquei-lhe que o senhor que cantava tinha uma voz muito grossa, parecida com a voz do lobo mau. Por teimosia, exigiu ouvi-lo. Gostou apenas de uma canção. Ouviu-a várias vezes, ignorando as restantes. Dançou enquanto dava comida ao peixinho vermelho. Depois piscou os olhos e disse "os lobos maus também sabem cantar canções de amor." É bom, ser mãe, mas não é suficiente para me tornar mulher.)

2013/05/03

Tia


“Mete aí uma pinguinha, filha!”, diz a tia Dé e estende-me uma chávena de café. Geralmente não se senta à mesa, se o faz, por ser almoço de domingo ou dia de festa, fica sentada à pontinha da cadeira, o corpo sempre tenso. Nunca tira o avental, raramente usa pratos ou copos. Debica em pires e chávenas de café. “Que raio de prazer podes ter em beber vinho numa chávena de café?”, pergunto-lhe. Ela não explica, não diz nada, limita-se a passar as mãos pelo cabelo completamente branco. Encolhe os ombros e começa a beber. Os seus olhos dizem sempre o mesmo: sou uma sombra, morri há muitos anos, num tempo tão antigo que parece de outra vida, sou um passarinho morto, tenho um coração solitário e palpitante, não sou mãe, não sou avó, não fui mulher, não deixo ruído, as minhas pantufas mal se ouvem. Sempre foi assim. Hei-de desaparecer sem que nenhum de vocês se dê conta.

Irmã


Vermelho. Paro no semáforo. Tenho os olhos inchados. Dói-me qualquer coisa por dentro. Não sei muito bem o que é ou se é sequer. Mexo com a mão no rasgão da flanela do pijama. Os rapazes do carro ao lado riem. Ri-se sempre dos imbecis e dos fracos. É suposto ser assim. Olho-os de volta. Trazem bonés na cabeça. Brincos. Sorrisos. Através do vidro embaciado, um rapaz moreno diz-me qualquer coisa. É tarde. Que horas são? Verde. Sigo. Dou voltas. Não sei onde estou. Aqui é o acelerador. Aqui a embraiagem. O travão é ali. Eu sou esta que está aqui. Chamo-me Ana e não hei-de enlouquecer. Tenho uma estrela da tarde e um barão trepador. Chego, por fim, à praceta da minha irmã. Está a chegar. Veste um poncho largo. Parece um anjo branco e tranquilo. Reconhece-me. Entra no carro. Encosto a minha cabeça no ombro dela. Digo-lhe que estou cansada.

2013/04/22

Mercúrio


Ainda tão perto de Lisboa, ali quando a auto-estrada passa por Alhandra, a cimenteira, a capela no altinho, a linha do norte marcando o fim à vila, os álamos que deitam uma sombra baça, cheia de poeira, sobre os prédios antigos, iguais aos de Moscavide e Sacavém, ali, ainda tão perto de casa, a curva do rio a ver-se, e já eu ia leve, levezinha, a bater os dedos no volante, esquecida da carraça que me chupa o sangue e deixa os vasos quebradiços, os órgãos secos, a traqueia estrangulada em muitos nós, quero respirar e não consigo. Fui e voltei. Cheguei a casa, deviam ser nove da noite, retemperada, consolada, o bem que a música me faz, é preciso tão pouco para me animar. Mal abri a porta veio a prole enrolar-se nas minhas pernas. Beijos e abraços, gotas de mercúrio, inchando até serem uma só, também gosto muito de vocês, tanto, são a luz da minha vida, o melhor que a vida me deu, o resto que se lixe, não fossem vocês, ricos amores, e já me teria lançado ao mar, num lugar de águas escuras, profundas, onde um peixe antigo, luminoso, iridescente, de fiadas de dentes fininhos, me arrancasse o corpo ao pedaços.

Virei-me para a minha mãe. Pedi-lhe para os aturar mais uma hora. Calcei uns ténis. Lá fora, a noite abafava, nem uma brisa se levantava do rio, era uma noite de verão, estática, andavam as tainhas mais moles do que é costume, nadando aos círculos que o cerebelo carregado de nafta e gasolina deixa-as muito estúpidas, vinham com a cabeça à tona para olhar com os seus olhos amarelos as estrelas e a lua. Não se via ninguém. Passei apenas por um homem grisalho que passeava um cão minúsculo e levava pelas costas uma mochila das jornadas peninsulares de psiquiatria. Atrasei o passo. Corri durante uma hora. Voltei a casa. Despediu-se a avó. Tomei banho. Deitei-me. Olhei a secretária e o computador. Lembrei-me dos meus propósitos, tão boas as minhas intenções, agora que ninguém me reclama, agora que ninguém me cansa, hei-de escrever todas as noites, um bocadinho de lixo todas as noites. Não custa nada. Até ter um lixo de muitas páginas. Apaguei a luz. Mal a escuridão entrou no quarto, pensei em mamas, rabos, pénis muito tesos ejaculando para dentro de bocas. O orgasmo veio fácil, em meia dúzia de segundos, numa vertigem, sem esforço, uma coisa sem jeito nenhum, sensaborona, aguada, desoladora, profundamente triste.

Adormeci. Às três da manhã, bradou o mais pequeno. Preciso de ti, disse e subiu à minha cama com o coelho Botelho na mão. Às quatro da manhã, veio a do meio, vestia uma camisa de noite cheia de anémonas, tão frágil, tão delicada, a minha filha, como uma gota de água. Tive um pesadelo contigo e com o pai, explicou. Fica, meu amor, que a noite não silencia os medos, nunca a escuridão os apazigua. Às cinco da manhã, chegou o mais velho, um cristo cigano, sem dizer uma palavra, dormia ainda, dormia de olhos muito abertos, trazia o corpo fluído de prata. Terceira gota. Ocupou na cama o lugar do pai. Adormeci a um canto, meio corpo de fora, caindo para um abismo de espinhos e névoas. Acordei de madrugada, chilreavam os pardais e os melros nas árvores da praça, piu, piu, piu, piu, um frenesim matinal muito bom. O mais novo despertou com o alarido dos pássaros. Galgou o corpo da irmã e livrou-me do precipício. Beijou-me e adormeceu. 

2013/04/19

Aninhas e as caixinhas de broas

Devia ter pouco mais de dez anos quando lhe ofereceram um livro ilustrado de fábulas. Aninhas, muito morena, cabelo curto, unhas roídas, um anelzinho de prata no dedo indicador, passava horas a lê-lo.  Lia e relia. Tomava atenção aos detalhes dos desenhos. Sentia a rugosidade das folhas e cheirava-as. A sua vida ficou para sempre marcada pela moral intuitiva desses bichos: leões, cigarras, formigas, burros, cavalos, lobos, cegonhas, grous e ovelhas. Por exemplo, sempre que um homem a abandonava, Aninhas procurava ter a astúcia da raposa que, olhando um cacho de uvas cheias e maduras, por as não poder alcançar, diz que estão demasiado verdes. Nem sempre a técnica resultava. Largada há pouco tempo por um professor de semiótica, Aninhas tentava fixar-se apenas  nos seus defeitos: a desadequação entre a careca e o brinco que usava no lóbulo esquerdo, a pança flácida tocando o seu corpo, a facilidade com que as outras mulheres lhe mereciam o superlativo absoluto sintético. Inteligentíssimas. Lindíssimas. Interessantíssimas. Fecundíssimas. Porém, mal acordava, rosto inchado de sono, as pálpebras coladas de ramelas, Aninhas lembrava apenas aquilo que desejava esquecer: as caixinhas de broas que o professor lhe trouxera pelo natal, o seu cheiro a rios de água gelada, o modo como certa vez, na entrada de um prédio, lhe abocanhara os mamilos, mordendo-os, o retalhe do seu corpo imenso na paragem de autocarro.

2013/04/17

Urbano


Toda a gente tem direito às suas embirrações. Eu, que não sou mais nem menos do que os outros, tenho direito às minhas. Embirro com quase toda a gente que conheço; às tantas, reconheço, já nem sei bem por quê. É um modo de estar na vida como outro qualquer. Embirro com a Sofiazinha, com o Nuno, a Natércia e a Patrícia, embirro com quase todas as amigas da minha irmã, umas mais do que outras. Também embirrava com vários vizinhos dos meus pais, a preferência ia para o capitão do quinto direito, beato, salazarento, sempre de charuto ao canto da boca. Agora já gosto dele. A mulher perdeu de vez o tino, está completamente louca e eu sou muito sensível à loucura. Embirro com a Anabela Mota Ribeiro (uma embirração misturada com uma pontinha de inveja porque a acho verdadeiramente bela), com o Kalaf Angelo, com o valter hugo mãe e, ao ponto da náusea e arrancos vómicos, com a Michelle Obama, de sabrinas e corsários, plantando nabos e pepinos nos jardins da casa branca. Há muitos anos que desligo o televisor sempre que aparece o António José Seguro. Embirrava, e continuo a embirrar, mesmo depois de morto, enterrado, eternamente celebrado, com o Eduardo Prado Coelho. Enfim, são tudo embirrações ligeiras, inconsequentes, mas que me provocam uma sensação boa de alívio. Assim como um arroto bem dado.

Mas, às vezes, aparecem embirrações que são como carraças. Não me largam. Tornam-se fixações. Há muitos anos que embirro com o Urbano Tavares Rodrigues. É uma coisa visceral, uma reacção não controlável, basta-me topar-lhe com a fronha, o cabelo ondulado, o corpo magro e esguio, a pele velha, manchada, carcomida, para me fazer largar um esgar de nojo. A entrevista que deu há meia dúzia de meses ao Público, a propósito do seu novo livro, deixou-me num estado de irritação profunda. Não aceito mas compreendo o machismo assumido por um certo tipo de homens: conservadores, marialvas ou simplesmente boçais. Bate a bota com a perdigota, como é uso dizer-se. Mas, encontrar homens supostamente esclarecidos, desses que enchem a boca cada vez que falam de liberdade e erguem o punho por dá cá aquela palha, a falarem das mulheres como se fossem caça, reconduzindo-as sempre à sua condição menor é triste e desolador.


Ontem, rondando os escaparates da livraria do costume, dei de caras com o livro sobre o qual o escritor tão entusiasticamente falara ao Público. Parece que esteve dois dias sem dormir para escrever a primeira novela. Basta ler as duas primeiras páginas para perceber que leva ao limite do absurdo a sua ilusão de grande macho cobridor: há uma enfermeira que desfalece com os orgasmos que o narrador (ele, só pode ser ele!) lhe provoca numa sala com cheiro a clorofórmio e, mais adiante, logo na página a seguir, há uma empregada de limpeza que o venera. A sopeira chora quando o beija pela primeira vez e agradece quando o narrador lhe ensina a chupar devidamente o caralho. É tudo tão tristemente insultuoso que uma mulher fica sem saber se há-de rir ou chorar. Se não estivéssemos em crise, se não me tivessem papado subsídios e prémios, se não me tivessem cortado o salário com o qual sustento a minha prole, bem que comprava o merdoso livro do merdoso escritor Urbano Tavares Rodrigues. A minha vida é um martírio, sou uma autêntica penitente, devia ter direito a alguma diversão.


(O Urbano Tavares Rodrigues, escritor menor, foi casado com a Maria Judite de Carvalho, escritora maior, infelizmente sempre colocada na sua sombra.)

2013/04/16

Aninhas e o trevo de quatro folhas


Gostava de passear com os filhos nos jardins e parques da cidade. Procuravam rãs, patos, borboletas, lagartas, chapins, libélulas, papagaios. Cheiravam flores, sementes, folhas, caules, raízes, paus. Espreitavam grutas, tocas, troncos, lagos, todos os recantos sombrios, bons para namorar. Na primeira tarde de sol, a filha lendo na sombra de uma árvore, os mais pequenos esbulhando um formigueiro com varas fininhas de amieiro, no meio das ervas altas dos clorófitos, Aninhas encontrou um trevo de quatro folhas. Quando se preparava para o arrancar, notou o seu reflexo nas vidraças da biblioteca que ficava no meio do parque: um corpo deslassado do resto, um fruto maduro prestes a apodrecer. Fechou os olhos e desejou: nunca mais a força bruta, quero apenas o prazer, sem o sofrimento da paixão, sem o aborrecimento do casamento. Voltou a abrir os olhos e procurou os filhos. Meteu o trevo à boca e mastigou-o.

2013/04/08

2013/04/05

Al Green

2013/04/03

Acordar


Foi assim durante muito tempo. Muitos anos. O meu despertar era sempre igual. Acordava triste e desesperada. Procurava o corpo na penumbra do quarto, desejando não o encontrar. Talvez alguém, durante o sono, compadecendo-se da minha dor, o tivesse levado para longe. Quando o encontrava, ao meu corpo, adormecido a um canto qualquer, pontapeava-o com violência para que se erguesse. Como se fosse um vagabundo que se despreza. Erguia-se o meu corpo, tão estiolado, tão frágil, entrava dentro dele e corria à cozinha a arranjar os pequenos-almoços dos meus filhos. Habituei-me à tristeza, é como a solidão, fere, mas deixa em nós qualquer coisa, bela e única, que não se sabe explicar. Quem não tem dentro de si alguma tristeza e solidão não é gente. É personagem de anúncio de cerveja ou de telemóveis. Nunca me habituei, no entanto, ao desespero, ao choro louco, ao conforto das imagens sombrias, um parapeito para saltar, um rio de água barrenta, os bolsos cheios de pedras, os pulsos cortados com uma lâmina, lágrimas de sangue empapando a alcatifa cor de laranja do escritório do meu pai, sessenta comprimidos letais tomados ao pequeno-almoço como no poema. Hoje, voltei a acordar triste. Não me importo que a tristeza volte. É uma amiga para a vida. Se vier só, abro-lhe a porta, deixo-a instalar-se dentro de mim. É o desespero que me assusta.

Abril

2013/03/29

Verdes Anos

2013/03/10

Venezuela

2013/03/05

Joaquim


Lembro-me de te falar ao ouvido. Vou cuidar de ti. Até seres velho. Não sei como se faz, mas vou ser imortal, como os deuses, para nunca te deixar só. Vou ter muitos filhos. Até as minhas entranhas se cansarem e apodrecerem com cheiro de limão e manchas de bolor. Vou educar essas crias cegas para serem a tua bengala e o teu amparo. Repeti as mesmas palavras vezes sem conta enquanto te embalava. Meu amor. Até que as esvaziei. Tirei-lhes o sentido. Ficaram as palavras mortas, rotas, uns fiapos de espuma, pendurados no vazio. Quando não esperava, entrei-te pelos olhos dentro. Deixei de ser invisível. Senti o corpo quente. Inchei como um balão de feira. Era um deus louco e caprichoso que me soprava para dentro. Achei, pela segunda vez na vida, que podia ser feliz.

2013/02/21

América



(Hoje, enquanto corria, dois gordinhos, ele de botas pontudas, ela de jaqueta de napa, fodiam ao cimo da escadaria do pavilhão atlântico; mais adiante, perto do pontão dos pescadores, a outra margem tremendo em pontos de luz, uma negra chorava no ombro de um branco insuflado de músculos.)

2013/02/15

Etta Jones

2013/02/11

Holofernes


Noite dentro, enquanto a chuva mansa tamborila nas vidraças, Judite rebola na cama, resfolegando como se fosse um animal. Uma égua ou uma vaca. De lábios túmidos. Cabelos emaranhados. A pele recamada de bagas de suor. Parece uma planta orvalhada. Uma deusa ignota, imperfeita. Espera Judite que a escuridão do quarto tome a forma do corpo de um homem.

Pensa Judite: quando a escuridão e o vazio se condensarem em corpo de homem, por fim, amainarei. A chuva continuará, mansa, a bater nas vidraças. Com calma, olharei para os ciprestes que lá fora permanecerão hirtos. Olharei para o homem deitado ao meu lado. Será grande como sempre o imaginei. Cabelo comprido. Barba negra como a escuridão que lhe deu corpo. Olhos de lobo, de lince, de leão, de cão esfaimado. Um bafo quente, nebuloso, sair-lhe-á de dentro. Será como um animal feroz sem açaime ou jaula.

Judite continua a pensar: tirarei a camisa que me cobre o corpo e deixarei que o animal-homem-escuridão me tome. Este é o meu corpo. Tomai-o em nome de Deus. Ele tomar-me-á como os bichos. Saciado, descansará, então, sobre os lençóis ainda mornos. Dormitará com um sorriso de anjo boçal no rosto. Em silêncio, pegarei no machado que se esconde por baixo da cama. Ergue-lo-ei. Com um golpe, com um único golpe, cortar-lhe-ei a cabeça. Ele abrirá os olhos segundos antes do cutelo o penetrar. Um grito mudo perder-se-á pelo quarto. Baterá nas vidraças fechadas como moscas cegas. Haverá sangue derramado pela cama. Um líquido viscoso, denso, quase preto. Quando a sua cabeça rolar para o chão adormecerei. Ao lado do corpo decepado. Antes, porém, direi o seu nome: Holofernes.

( e o Joaquim, que hoje cheira a limão, vem mostrar-me as mãos. Depois trata  do coração do meu cristo.)


2013/02/10

Conimbricense




(Contaram-me que tem uma namorada nova, conimbricense. Deve ser cá um camafeu. Quase velha, com papos nos olhos, carnes flácidas, prazo de validade expirado, conimbricense. E eu, ainda de glúteos firmes, que o amo desde o ciclo preparatório, quando a Prof. Maria dos Anjos nos deu a ouvir o Barnabé, eu que tenho filhos que identificam as suas canções aos primeiros acordes e que os amo muito mais por essa razão, eu que quis perder os três a escutá-lo, que quis entrar na igreja a ouvi-lo, que me lembro dele em cada momento importante da minha vida, que escolhi para me tratar do divórcio, sobretudo por isso, o colega de faculdade que me gravou o canto da boca e o campolide, eu que detesto todos os que o ouvem porque acredito que as canções que compôs são só minhas. Só eu as sei escutar.)

2013/02/07

Saudade



(Voltei a almoçar ao lado dos informáticos do quinto piso.)

2013/02/06

Bukowski


Ando a ler sem grande entusiasmo um livro do Charles Bukowski. É uma sucessão de fodas, bebedeiras e alucinações. Não há mais nada. A temática interessa-me: as bebedeiras porque quem me conhece sabe que não sou alcoólica porque calhou não o ser (tenho tudo para ser alcoólica), o sexo porque enfim é um assunto que preciso resolver (recuso entregar-me à desistência), as drogas porque representam a miséria e a indigência (sempre gostei de indigentes, assim como há quem goste de cães e gatos). Mas tudo o que é demais enjoa. Por vezes, no entanto, o tal Bukowski tem assim uns repentes de clarividência, não diz nada de novo, são quase banalidades o que escreve, mas sabe-me bem lê-las, às banalidades, no meio de tanto broche, tanta cona e tanto caralho entesado. Hoje, no refeitório, ao lado da Rosa das olheiras fundas e do João das sopas, li assim: “Mercedes virou o rosto para mim. Beijei-a. Beijar é muito mais íntimo do que foder. É por isso que nunca gostei que as minhas namoradas beijassem outros homens. Preferia que fodessem com eles.” Não é nada de especial. É claro que beijar é mais íntimo do que foder. Mas li e soube-me bem ler, ali, no refeitório, ao lado do grupo do informáticos do quinto piso. Até me esqueci do desgosto fundo que tenho sentido desde que descobri que o rapaz das arcadas já não trabalha no meu edifício. Não sei como vou aguentar tamanha solidão no meu gabinete de azulejos verde água.