2006/08/31

Picoas

Este Verão deu-me para olhar para as mamas das outras mulheres. Se os homens valorizam tanto as mamas, alguma razão hão-de ter para que, por causa das ditas, ignorem o resto. Passei por isso a espiar-lhes o tamanho, a flacidez, assim, de esguelha, como quem não quer a coisa. Hoje, no metro, topei com uma rapariga negra. Uma miúda típica dos subúrbios, com o cheiro de bairro social entranhado na pele. Feia, a pele manchada, o cabelo mal alisado, teso como um carapau. Usava umas calças de cintura descaída que deixavam a descoberto uma barriga flácida e uma camisolinha de licra, de alças finas, muito justa ao corpo. Pelo decote saltavam umas mamas cor de ébano, grandes, empinadas, rígidas, túmidas. Pareciam seres vivos, com vontade própria. Dir-se-ia que não tinha sido a rapariga a escolher mostrar as mamas, mas sim as mamas que tinham decidido mostrar-se, ordenando ao corpo da rapariga que as levasse para a rua. Fiquei estupefacta. Eram dignas de se ver, aquelas mamas. Olhei para as minhas, sempre tão negligenciadas, e prometi-lhes maior atenção, algum cuidado, um sutian talvez..

2006/08/30

Casamento debaixo de chuva


(É tempo de monções do outro lado do mundo.)

2006/08/28

As cabras capadas (2)

O problema das cabras inférteis é serem cabras inférteis e analfabetas. Muitíssimo carolas. Umas aventesmas dotadas de uma carolice quase alvar, digna de piedade. Porém, se a gente pensar bem no assunto percebe que há nisto a mão divina. Aliás, quanto mais penso, mais sou levada a crer que Deus, Nosso Senhor, Pai de todos as criaturas terrestres, existe mesmo. Porque se Deus não dotou de fertilidade estas caprídeas mulheres (cujos balidos ecoam, em bando, furiosos, pela blogosfera, fazendo béééé) é porque, munido da sua grandiosa perspicácia, percebeu que as suas lanosas vaginas serviam para ser penetradas por apelativos caralhos, de glandes refulgentes e escrotos cheios, mas nunca, jamais, para franquear a chegada de crianças a este mundo. Há mulheres que não têm condições para educar uma criança. Deus, Nosso Senhor, percebendo isso, capou-as. E capou-as muito bem. Coitaditas. Tão desesperadas para ter um filhinho, pequenino e ranhoso, para amar e Deus, Nosso Senhor, esse malandro, esse monstro impiedoso, a não deixar.

As cabras capadas (1)

A minha irmã foi vilipendiada, no seu berloque, por um bando de cabras inférteis. É digno de se ler. É o que dá ter comentários no blog. Ter comentários num blog é o mesmo que deixar aberta a porta da nossa casa e deixar entrar no nosso espaço, mexer nos nossos objectos, gente que vai ao teatro ver espectáculos da Teresa Guilherme, gente que lê livros da Margarida Rebelo Pinto e afins, gente que gosta da Rita Ferro Rodrigues e da Margarida Pinto Correia, gente que participa em eventos como a mais bela bandeira do mundo, gente que vive em Agualva-Cacém e vai para Quarteira e Armação de Pêra passear, debaixo do ordinário sol algarvio, nalgas esturricadas, cheias de celulite e estrias. Eu não vou sequer ao blog da mana que é para não me irritar. Já me bastam as outras ralações da vida. O problema das cabras inférteis não é serem cabras. As cabras são até bichos engraçados, do meu agrado, dotados de uma altivez própria e genuína. Não é, claro está, serem inférteis. Infelizmente, como se sabe, a infertilidade é mal de que padecem muitas outras mulheres. É uma maleita injusta, tão pesada, dos nossos dias.

Algarve

Durante as férias fui assolada por um ataque agudo de imbecilidade e deixei o meu Alentejo sossegado de colinas pequeninas para passar uns dias no Algarve. Ao terceiro dia fugi. Abalei. Só sosseguei quando voltei a ver planícies, sobreiros, casas caiadas de branco. Quando voltei a apanhar figos nas árvores velhas da estação. Quando vi os miúdos, descalços, em pijama, correr a casa da prima Laura, a buscar pimentos, cebolas, tomates e coentros para o almoço. Quando dei com eles a arrancar as flores da minha mãe para plantar espinafres, couves tronchudas e alfaces. Durante o tempo em que agonizei no Algarve lembrei-me de um texto que escrevi a propósito de um outro assunto e que acima edito (chama-se "As cabras capadas" e é, desculpai-me a modéstia, uma pérola do insulto gratuito). É que, para além do resto, que já é mau, péssimo mesmo, o Algarve está cheiinho de cabras capadas e de outras que, o não sendo, deveriam ser submetidas a um programa de esterilização para não deixarem descendência. Não posso com o Algarve. Uma amendoeira, árvore tristonha a fazer lembrar princesas níveas e lacrimosas, tem lá comparação com um sobreiro?!

2006/08/04

Bombaim

Steve McCurry, 1996

Birkenstock

Minha querida Ana Maria, sei que estás a banhos em parte incerta e que, por isso, não lerás estas linhas que te escrevo. Levada pelo teu entusiasmo, fui ao Saldanha buscar umas Birkenstock. Segui o teu conselho e comprei umas vermelhas. São giras. Sinto-me uma Helga ou uma Petra. Com as minhas Birkenstock, os anti depressivos, os ansiolíticos, o Fidel moribundo (dá-me sempre alento a morte de um ditador) , os contos de Puchkine e Gogol (deu-me para os russos, como escrevem bem…), estou preparada para passar três semanas de férias em família, três semanas a dormir na mesma cama que o meu marido, três semanas a fugir-lhe noite após noite. Nem sabes o cansaço que é! Acabo as férias extenuada de tanto lhe fugir. Já lhe expliquei, olha vamos juntos de férias, é melhor para os miúdos, mas estás proibido de me tocar. Já sei que vai fazer ouvidos de mercador e entumecer amiúde. É uma chatice. Portanto, as Birkenstock servirão, não só para dar descanso aos meus pés e deleitar os meus olhos, mas também para lhas atirar à cara quando se armar em esposo amantíssimo. A culpa é tua. Adeus. A ver se jantamos em Setembro. Temos muito que falar.

Skinhead travesti

Esta noite sonhei que andava à porrada com um skinhead, vestido de mulher (usava um cardigan verde seco e uma saia clássica de fazenda), dentro do bar de uma sociedade recreativa. Ele era muito mais forte do que eu. Apertava-me as goelas sem piedade. Eu retaliava, dando-lhe pontapés e mordendo-lhe as mãos. Estou a voltar à minha adolescência. Tenho assomos oníricos de indignação e revolta.

2006/08/03

Serial Killer Barreirense (3)

Perto de Santa Apolónia, a música muda. Um jazz antigo, daqueles cheios de melodia, de clarinetes e outros instrumentos de sopro, enche o táxi. O condutor entusiasma-se. Aumenta o volume. Começa a bater com a mão na perna, marcando o ritmo. É engraçado, este homem, mesmo que seja um psicopata. Quando chega à minha porta, pergunto-lhe que rádio era aquela. Não é comum ouvir música assim dentro de um táxi, explico-lhe. Ele alegra-se. E explica “Ó minha senhora, isto é uma rádio onde só passa música de classe! Só música de classe! Deixe cá ver…. Como é que é? 106. 2 FM. É isso! Só música de classe! Eu logo vi que a senhora também era uma senhora de classe. Aparece-me para aí com cada ordinária!”. Dei-lhe uma gorjeta de dois euros. Não costuma dar gorjetas a ninguém. É um gesto que me incomoda. Mas este taxista é especial, que diabo. Depois, não encontro outra maneira de lhe retribuir o apaziguamento que me trouxe a travessia pela cidade ouvindo aquelas músicas tão bonitas. Antes de meter a chave à porta olho para trás. O taxista acena-me. Agora que me deixou, é certo, certinho, que vai rodar a cidade em busca de uma velhinha, de cabelos brancos. Vai levá-la para o seu apartamento no Barreiro e depois vai degolá-la ao som dos prelúdios de Debussy.

Debussy (2)

Meto-me num táxi. Observo o condutor. Veste uma camisa indescritível. Branca, muito puída, com um padrão verde que não consigo decifrar. Serão pranchas de surf ou folhas de bananeira? Usa uns óculos muito grossos, de massa pretos. Tens ar de serial killer, penso. Não é só em Santa Comba Dão que há serial killers. Em Lisboa também os há. O táxi faz o caminho junto à beira rio. As águas ciciam palavras líquidas e o casario dos bairros antigos aconchega-me. Do rádio do carro chega o som de um concerto para piano que, naturalmente, não identifico. Debussy, parece-me bem. Ui, cada vez me convenço mais que estou a ser guiada por um serial killer. Já estou a imaginá-lo. Pobre coitado, cheio de recalcamentos, originados por uma mãe castradora, má como as cobras, a degolar velhinhas, daquelas que vivem em subúrbios e passeiam rafeiros pequeninos. O sangue das velhinhas a sair em golfadas. Os rafeiros pequeninos a latir. Ele a limpar a navalha ao som de Debussy, momentaneamente liberto da terrível figura materna.

Carlos da Maia (1)

Fumando charuto e retorcendo o bigode, o senhor doutor faz finalmente o meu diagnóstico. Tenho uma depressão reactiva. Aparentemente, não é tão grave como eu pensava. Tem um ar queirozeano, o senhor doutor. Há nele uma certa afectação, uma certa sofisticação, que faz lembrar o Carlos da Maia. Gosto dele. E, no entanto, só diz as banalidades que conheço de trás para a frente. Falamos de sexo. É-me fácil falar de sexo. Seja com quem for. Mantém a mesma medicação. Despede-se com um abraço e um beijinho. Saio para a rua. É tarde. São quase onze horas. Desço a avenida a pensar nas palavras que disse. Depressão reactiva. Explosão. Implosão. Agressividade. Figura masculina. Identificação. Cruzo-me com turistas, ingleses, alemães, mal vestidos, envergando uns trapos imundos, inadequados para o passeio nocturno nesta avenida de lojas sofisticadas, caras. Quando chego perto do antigo cinema condes já vou lavada em lágrimas. Sabe bem chorar. Há que tempos que não chorava. Um grupo de adolescentes estrangeiros fala alto. Há uma miscelânea de traços. Negros, asiáticos, europeus. Devem ser americanos. Têm a segurança própria dos americanos. Continuo a descer até ao teatro. Um homem negro fala ao telefone, encostado a uma das colunas que dá para o Rossio. Dá gargalhadas sonoras que ficam a ecoar nas arcadas como bichos nocturnos. O teatro, as suas arcadas, voltaram a ser o poiso dos imigrantes que tomaram conta desta parte da cidade. Recordo as imagens recentes daqueles que vieram dar às praias de Espanha, quase mortos. Etiópia, Somália, Marrocos. Há tantos escravos no mundo.

2006/08/02

Amsterdam

Dans le port d'Amsterdam
Y a des marins qui dansent
En se frottant la panse
Sur la panse des femmes
Et ils tournent et ils dansent
Comme des soleils crachés
Dans le son déchiré
D'un accordéon rance
Ils se tordent le cou
Pour mieux s'entendre rire
Jusqu'à ce que tout à coup
L'accordéon expire
Alors le geste grave
Alors le regard fier
Ils ramènent leur batave
Jusqu'en pleine lumière
Dans le port d'Amsterdam
Y a des marins qui boivent
Et qui boivent et reboivent
Et qui reboivent encore
Ils boivent à la santé
Des putains d'Amsterdam
De Hambourg ou d'ailleurs
Enfin ils boivent aux dames
Qui leur donnent leur joli corps
Qui leur donnent leur vertu
Pour une pièce en or
Et quand ils ont bien bu
Se plantent le nez au ciel
Se mouchent dans les étoiles
Et ils pissent comme je pleure
Sur les femmes infidèles
Dans le port d'Amsterdam
Dans le port d'Amsterdam.

Jaques Brel

Alvy

ANNIE
You followed me. I can't believe it!

ALVY
I didn't follow you!

ANNIE
You followed me!

ALVY
Why? 'Cause I ... was walkin' along
a block behind you staring at you?
That's not following!

ANNIE
Well, what is your definition of
following?

ALVY
Following is different. I was spying.

ANNIE
Do you realize how paranoid you are?

ALVY
Paranoid? I'm looking at you. You
got your arms around another guy.

ANNIE
That is the worst kind of paranoia.

ALVY
Yeah-well, I didn't start out spying.
I-I thought I'd surprise yuh. Pick you
up after school.

ANNIE
Yeah-well, you wanted to keep the
relationship flexible, remember?
It's your phrase.

ALVY
Oh, stop it. But you were having an
affair with your college professor.
That jerk that teaches that incredible
crap course "Contemporary Crisis in
Western Man"!

ANNIE
"Existential Motifs in Russian Literature"!
You're really close.

ALVY
What's the difference? It's all mental
masturbation.

ANNIE
Oh, well, now we're finally getting to
a subject you know something about!

ALVY
Hey, don't knock masturbation! It's
sex with someone I love.

(nem mais...)

2006/08/01

Annie

Annie Hall, Woody Allen, 1977

Condoleezza (2)

Continuamos a almoçar enquanto o Paulo Camacho fala no televisor. Gostava de ser imune ao sofrimento alheio. Sufoco nestes dias de guerra maior. Sinto-me fútil, abjecta, com a minha depressão. Tenho até vergonha de dizer que tenho uma depressão, doença dos que têm tudo, dos fracos que precisam do supérfluo para viver. Quem morre de fome não se pode dar ao luxo de estar deprimido. Estou nestes pensamentos narcísicos, quando o meu pai tira os olhos do televisor onde a Condoleezza Rice, num impecável fato branco, assegura ainda ter esperança num cessar-fogo. Estranho. O meu pai tem uma admiração enorme pela secretária de estado americana. Desconfio que ele até deve ter sonhos eróticos com ela. Olha-me. “Ana Clara, você hoje está com muito mau aspecto!”. Faz uma careta. “Esses olhos…Parece que alguém lhe bateu.” E remata com outra careta. Não lhe respondo. Há muitas maneiras de se ser sovada, penso. Tantas. O meu pai retoma a refeição. Fixa os olhos de novo no televisor, triste por ter como filha uma medíocre jurista de um instituto público, levemente desequilibrada, levemente instável, e não uma condoleezza rice, poderosa, de traços indianos, e sapatos clássicos, de verniz preto.

Crocodilos do Nilo (1)

Tudo calado. Um silêncio tumular toma conta da cozinha de azulejos feios. É hora do noticiário e o meu pai é, sempre foi, intransigente em tal assunto. As horas das refeições não servem para a família confraternizar, falar, trocar ideias, e esses disparates que os psicólogos e os terapeutas aconselham. A hora da refeição serve para o mundo, tal como ele é, entrar nas nossas vidas. Sempre foi assim. O meu pai alimenta-se de noticiários, debates e documentários vários. Ai de quem ouse falar quando ele está a aprender, pela centésima, o ciclo da ovulação dos crocodilos do Nilo. Bebe avidamente as notícias e sempre exigiu que fizéssemos exactamente o mesmo. Estamos, pois, em silêncio. Eu, arregalando os olhos à Madalena para que coma quietinha. Ela brinca com a colher, entretida com a canja de galinha que a tia Dé fez. Vou comer um ovinho pequenino e depois vai-me nascer um pintainho na barriga!. E cacareja. Um olhar rápido do meu pai avisa que quer silêncio. Não admite cacarejos à mesa. Nem mesmo à sua neta preferida. Peço à Madalena que coma em silêncio.