2012/03/30

Branca de Neve


(Escrevo no silêncio da noite, dorme o apartamento, ouço-lhe a respiração, é um organismo vivo. Irene é velha como eu começo a ser. Descobri, hoje, dois pintelhos iracundos, brancos, branquinhos como a neve. Envelheço.)

2012/03/27

La gent normal


(a catalã que encontro todas as tardes na esplanada do meu bairro tem um rosto esguio de cavalgadura, berra amiúde com as filhas e ralha aos sogros, muito velhos, pouco ri, mulher cheia de pêlo na venta; gosto dela.)

Lourenço Marques

Certo dia chegou um papelinho oficial a comunicar que o meu pai tinha quinze dias para abandonar o país. Se ficasse, avisavam, corria o risco de ser preso por traição, por infame conivência com a anterior potência colonizadora. A ordem de expulsão era assinada, numa letrinha redonda que sugeria certo recato, por um tal Armando Guebuza. Ficou a minha mãe sozinha no apartamento de Lourenço Marques, na Avenida Central, com três filhos, o trabalho no dispensário, uma vida inteira para despachar em caixotes e contentores. Como se embalam as memórias, os hipopótamos descansando nos lagos, as nuvens taurinas abatendo-se na baía, o chão encerado da casa de Tete? Como se encaixota o cheiro doce das mulheres, a brancura fosforescente dos dentes do meninos? A minha mãe teve apenas ajuda de um amigo, o Gomes, um homem pequenino, com uns dentes muito salientes, a fazer lembrar um esquilo gigante, que se desfazia em diligências, ia buscar um papel ali, carimbava outro acolá, dizia Solange é preciso você fazer isto ou tratar daquilo. Contudo, pobre esquilo, era incapaz de um gesto arriscado, de um suborno, de mover uma influência, de dar uma palavrinha a um chefe de repartição para acelerar o caso da minha mãe. Cumpria escrupulosamente as regras estabelecidas pela administração do recém-nascido país que desprezava com dissimulação. Apesar da catadupa de dificuldades, a minha mãe conseguiu embalar tudo. Ficou só a Vitória, empregada-menina, chorando a um canto da cozinha amarela, dizendo que também queria vir para a metrópole. Por muito que a minha mãe lhe explicasse que a nossa vida futura era uma incerteza, que não se podia responsabilizar por ela, a Vitória derramava lágrimas grossas, violáceas como a noite. Assegurava que, se preciso fosse, cruzaria os mares enfiada num contentor, sentada na cadeira de palhinha onde costumava dar de mamar à minha irmã.

Tratados os papéis, a minha mãe preparou-se para voltar. Vestiu-nos as melhores roupas. O meu irmão calçou os sapatos de verniz com fivela e penteou os caracóis com um pente de dentes largos. Porém, uma mulher branca, sozinha, com duas meninas e um menino mulato, que não era seu filho, levantava sérias inquietações aos zelosos guardas do aeroporto. Para seguir viagem, disseram, a minha mãe teria de arranjar uma autorização da mãe biológica do meu irmão. Nunca soubemos como a minha mãe conseguiu trazer o meu irmão, como evitou essa perda irreparável, como garantiu que continuássemos para sempre a ser três. Ela não conta. Mas eu desconfio que, ao contrário do Gomes, o ajudante-esquilo, a minha mãe sabia como as coisas funcionam em Moçambique. Nessa tarde, os guardas do balcão de embarque do aeroporto celebraram o dia. Tiveram com que pagar o amor ordinário das ruas esconsas da cidade. Comeram travessas róseas de camarão tigre. Beberam até os corpos adormecerem de cansaço. E não repararam na abóbada celeste que, nessa noite, se cobriu de estrelas violáceas, iguais às lágrimas grossas de uma menina que nunca chegou a cruzar o mar.

(O melhor dos jantares de família são as memórias laurentinas que desfiamos com descontida emoção até ao momento em que o meu pai, já bebido, começa a chamar filho da puta ao Armando Guebuza. Grandessíssimo filho da puta, é como ele diz. Nós calamo-nos, embaraçados. Não se ofende assim, por dá cá aquela palha, o presidente da república de um país.)

2012/03/26

Aninhas e o olho-mágico

A campainha tocava por volta das duas horas. A Alzira interrompia a limpeza da cozinha, fechava a torneira do lava-loiças, panelas e tachos deixados num transitório descanso dentro da cuba de inox, limpava as mãos molhadas ao avental da farda, caminhava lentamente pelo corredor em direcção à porta. Quem é?, perguntava e sabia de antemão a resposta, ainda assim punha-se em biquinhos de pés a espreitar pelo olho mágico, a porta abria-se logo de seguida, faça favor de entrar, Senhor Doutor, a menina Aninhas já está no quarto à sua espera. Olhava-te a Alzira demoradamente, eras nessa altura um homem bonito, elegância trabalhada, ainda a podridão da velhice não te chegara, usavas fatos de dois botões, camisas brancas feitas por medida, botões de punho, um anel brasonado no dedo mindinho. Venha que levo-o até lá, depois, se quiser, posso arranjar-lhes um lanche. Davas-lhe uma pancadinha do braço para sentires a firmeza do corpo, gozavas em silêncio o atrevimento, deixa estar Alzira, conheço bem o caminho; metias-lhe uma nota de quinhentos escudos no bolso da farda, não vale a pena preocupares-te com o lanche, almocei uma feijoada à transmontana, ainda estou a arrotar a morcela e couve lombarda, e chegavas-lhe o rosto, boca aberta, para que ela sentisse no teu hálito a verdade do que dizias. A tua mão entrava então no bolso de renda pontilhada da farda, tocava o osso ilíaco, saliência tão estranha, onde se sente a finitude do corpo, espécie de cabo, lugar sombrio onde alguma coisa termina e outra começa; esse toque, breve, fazia despertar o seu corpo adormecido, o teu também despertava que uma empregada doméstica é sempre mulher de muita serventia.

Esperava-te no quarto. Escutava os teus passos e a tua aproximação, saber-te do outro lado, fazia crescer o meu desejo. Às vezes, tão grande era, fazia tremer-me. Tens frio, Aninhas?, dizias ao entrar e sem mais começavas a despir-me. Na cozinha, a Alzira tirava a nota de quinhentos escudos do bolso, olhava com desprezo a cuba de inox, deixava os tachos e panelas para depois. Ficava à coca. Apurava os sentidos, escutava com aprumo de tísica os ruídos, os estores baixando, as cortinas corridas, a chave rodando na fechadura, uma, duas voltas, porta fechada, sossego garantido para a explicação de matemática. O meu abandono, esse meu desfalecimento de presa fácil, dava-lhe ânsias de liberdade, estava certa de que o teu método de ensino era único, talvez a bissectriz e os números primos se decorassem melhor na escuridão, talvez o cálculo algébrico se apreendesse melhor na liberdade da nudez.

A Alzira ia até ao salão, abria o bar do móvel de mogno, enchia um copinho de aguardente de pêra. Esquecia a loiça, o arrumo da cozinha, punha-se à janela a gozar a vista o rio. Escorripichava o copinho de aguardente. Volta e meia dava estalinhos para aguentar a adstringência na língua, a aspereza que lhe corria pela garganta. Saías pela tardinha, pouco antes da chegada do meu pai, tão triste que ele ficava por nunca se cruzar contigo, tanto que queria agradecer-te a disponibilidade para me preparares para os exames finais, tenho de telefonar ao César, dizia, é um amigo do peito, amigo para a vida, estima-o muito, Aninhas, que como o César há poucos, o que ele nos tem valido depois da morte da tua mãe. A Alzira levava-te à porta. Cambaleava e tinha olhos de carneiro mal morto, era da doçura invisível da aguardente, levava os botões da farda desapertados para deixar fugir certos calores. Arfava. Um dia - bebera dois copos de aguardente que lhe trouxeram coragem -, à saída, explicou-te que não queria ser empregada a vida inteira, andava a estudar à noite, gostava muito de aprender, mas tinha muita dificuldade com a matemática, o Senhor Doutor, desculpe o atrevimento, também me podia dar explicações de matemática. Disseste que sim, era só combinar. Ela agradeceu, fechou a porta. Depois, elevou o corpo para te espreitar pelo olho mágico.

2012/03/23

Setembro

2012/03/21

Aznavour



(Lisboa/Penafiel)

2012/03/20

Liberdade



(tenho a liberdade do silêncio.)

2012/03/14

Aretha


(Lisboa/Prado do Repouso)

2012/03/13

Av. do Uruguai

Atirou-se do sétimo andar de um prédio de Benfica. Era uma mulher apagada, de silêncios prolongados, com uma vida aparentemente calma. Enviuvou cedo de um funcionário das finanças e, por isso, vivia com a filha na Avenida do Uruguai. Tratava da casa, ajudava na educação dos netos, fazia as compras na praça, preparava o jantar. Sempre em silêncio. Coleccionava a teleculinária e deitava-se depois de ver a telenovela. As manhãs de domingo passava-as no cemitério, tratando da campa do marido. Levava-lhe flores frescas. Cravos aninhados em nuvens fofas de gipsófila. Lavava o verdete do mármore com um paninho embebido em vinagre. Gostava muito de frutas cristalizadas. Quando a visitávamos no apartamento da Avenida do Uruguai, a minha mãe levava-lhe um cartucho de frutas comprado numa mercearia de Moscavide. No dia em que se matou, fez canja de galinha, uma panela enorme, muito mais do que a quantidade habitual, para que fosse servida aos que viessem velá-la. E deixou os anéis e os brincos em cima da cómoda, sobre um naperão de linha fina, para que ninguém lhos tirasse. Sempre estranhei a sua morte por ser uma mulher simples, com uma vida simples, de hábitos simples. Achava, naquele tempo, que se suicidavam apenas os escritores, os pintores, as poetizas, enfim, os tolos que esperam demais da vida. O suicídio, parecia-me, exigia sensibilidade e a minha tia Lucília não a tinha.

2012/03/11

Glenn Gould



(Não percebo a ponta de um corno de música clássica, e tenho pena, mas gosto obsessivamente disto. Não há nada, nem na literatura, nem na pintura, nem no cinema, nem em porra nenhuma, nem sequer na vida, nos filhos, nos afectos, misérias e paixões, mais belo do que a fuga desta toccata.)

Vergonha



(escutei, escuta-se, o sussurrar do Glenn Gould.)

2012/03/10

Correr


(noite.)

Correr



(madrugada.)

2012/03/08

Charles Aznavour


(Lisboa/Gaia)

2012/03/07

Outubro

Morri no princípio de Outubro. Enterraram-me num cemitério com vista para a auto-estrada do sul. Passei os primeiros dias entretida, inteirando-me da minha nova condição, descobrindo como é estar morta. Escutei o restolhar das folhas dos eucaliptos e pude fazê-lo durante longos minutos, concentrando-me apenas no ruído das copas, isolando-o do resto do mundo até se tornar insuportável. Vagueei por alamedas, paralelas e perpendiculares, olhando as campas, lendo inscrições, observando a estatuária: gárgulas, anjos, cristos lacrimosos, conchas de mãos piedosas. Cheirei as flores frescas das coroas fúnebres e desfiz com as minhas mãos invisíveis corolas frágeis. No princípio da noite, quando a escuridão era ainda clara, os portões do cemitério eram sempre fechados com estrondo. As mulheres vestidas de preto voltavam para os seus apartamentos de marquises de alumínio e sentavam-se sozinhas em frente do televisor.Uma quietude insuportável abatia-se sobre o lugar e eu voltava então ao meu corpo, deitado num caixão de cetim branco. Encaixava perfeitamente nele. Uma noite, porém, senti desconforto ao voltar a mim. O corpo inchara e eu sobrava dentro dele. Aninhei-me no canto esquerdo e procurei adormecer. Um reco-reco pequeno, um barulhinho persistente, fez-me despertar. Pensei que fossem térmitas alimentando-se do pinho do caixão. Abri os olhos. Vi duas lagartas gordas, brancas, cegas, sorrindo-me. Uma das lagartas tinha boca de ventosa e mordiscava a ponta esquerda do meu coração. Enervei-me. Não vivo sem corpo. Mesmo morta, preciso dele. Não encontro conforto na imaterialidade, só compreendo o que é concreto, comum, palpável. Enxotei as lagartas que fugiram como toupeiras. Decidi partir. Tentei ressuscitar que é a única maneira que conheço de largar a morte. Não consegui. É muito difícil. É preciso ser deus, filho de deus, parente de deus, amigo de deus, para o conseguir. Na manhã seguinte, estava eu entretida a observar o namoro de dois pardais, vi chegar pela alameda os meus três filhos. Não traziam flores. Vinham com olhos líquidos de abandono. Nessa noite, deitei-me nas ruínas do meu corpo, era já só ossos, os malares cavados, a carne ressequida. Ventava na arcada das costelas e o ruído desse vento perpétuo não me deixou adormecer. A morte pesou-me mais do que a vida.

2012/03/05

Fanny Ardant et moi


(este também é giro que se farta.)

2012/03/03

Aninhas e a Muralha da China

Nos dias que antecederam a sua chegada, os idólatras trataram de arranjar credenciais para o escutar. O velho apareceu no primeiro dia para ser homenageado e, no terceiro, para falar numa mesa de gente distinta. Orelhas largas, totalmente calvo, a muitos pareceu um ex-heroinómano, anos seguidos de seringa enfiada na veia e garrote no braço. Uma jovem escritora que esperava vê-lo ainda composto, com meia dúzia de cabelos brancos e barba grisalha não aparada, ao vê-lo, pálido, cadavérico, gigante encovado, soltou um grito de espanto. Logo se controlou. Escrevera um primeiro romance, sensação da temporada literária, cheio de clítoris molhados e pachachinhas satisfeitas, tivera críticas jeitosas, tornara-se numa mulher emancipada, moderna e livre, de uma vez por todas tinha de se habituar a desmerecer o invólucro, apreciar apenas o ontos intelectual. O velho, do palanque, protegido pela paliçada da primeira fila, não notou a agitação da debutante. Levantou-se e começou a falar: domínio da palavra e do silêncio.

Um editor-crítico-escritor, três em um, espécie de santíssima trindade, ao escutá-lo, sentiu uma quentura galopante, abrasão que começou nas extremidades, pés e mãos, se espalhou por todo o corpo e, numa implosão inesperada, se concentrou no astro flamejante. Felizmente era dotado de um asteróide de reduzidas dimensões; hirto, teso, oclusivo, o seu pénis não era maior do que o seu dedo indicador. Olhou em redor. Apercebeu-se da comoção da plateia, uma matrona que conhecia vagamente, escritora também, de fiadas de colares tribais ao pescoço, fêmea erudita, aborrecida, feia e feminista, estava tomada pela emoção. O editor-crítico-escritor também gostava do velho, lera-lhe a obra de fio a pavio, gozava o momento como o resto da plateia. Porém, era a lembrança de certos pretos que apareciam nas suas histórias, generosos penetradores, que lhe entumecia o mini-pénis. A lembrança atiçou-lhe o desejo, sentiu o pequeno asteróide enchendo, enchendo, quando mais lembrava os pretos, seus mangalhos e doces cus, mais o desejo se acendia, tinha agora o asteróide inundado, temeu que entupisse. Com a sua delicada mão de conimbricense – é sabido, são delicadas as mãos de todos os conimbricenses - bateu ali mesmo uma punheta. Veio-se num instante, um revirar de olhos, estremecimento breve, e já está. Deixou-se estar a ouvir o resto da peroração, de cuecas molhadas, muito aliviado. O velho, lá do palco, continuava a falar, explicava que a loucura é requisito essencial à escrita literária.

A matrona das fiadas de colares tribais ao pescoço entrou em êxtase. Fechou os olhos e concordou com um meneio da cabeça, como que a dizer é bem verdade, nós, artistas, intelectuais, somos loucos, todos loucos, ai, louquinhos da silva que a normalidade é coisa de gente menor, dessa gente que se levanta às sete horas para ir trabalhar, paga as contas da luz e da água, que vai ao supermercado ao sábado de manhã e à bola ao domingo, que tem filhos e se basta com esse amor. O velho calou-se. A ovação foi enorme, duas senhoras que estavam na segunda fila, septuagenárias, sapatos ortopédicos nos pés, com ar de quem papa hóstias ao domingo e frequenta cursos de pintura a óleo para aprender a pintar paisagens marítimas, bateram palmas tão freneticamente que ficaram de mãos ardentes. O velho agradeceu. Saiu para o átrio, mas logo o rodearam como abutres: uns queriam dar-lhe uma palavrinha, outros mostrar-se íntimos, os puros queriam apenas agradecer a crueza da escrita, os mais atrevidos pediam para tirar uma fotografia, não se importa que tire uma fotografia a seu lado? e postavam-se de sorriso no rosto; o velho disse que sim, deixou-se estar, escutou o clique e sentiu que, apesar de ainda estar vivo, tinha em si a desoladora imortalidade das pedras: tiravam-lhe fotografias como se fosse a muralha da China ou as ruínas do coliseu de Roma.

O velho saiu. Caminhou durante algum tempo junto ao mar. No hotel, pediu as chaves na recepção e subiu ao quarto. No terceiro andar, o elevador parou e entrou uma mulher bonita, sulidão por todo o lado, pele morena e quente, narinas dilatadas como que a avisar do mau génio dos trópicos, cabelo preto caído pelas costas, olhos redondos pintados com khol. Sorriu-lhe. Gosto dos seus livros, explicou e, num gesto estudado, abriu o casaco de astracã, mostrando o corpo nu: peitos cheios, bons de abocanhar, mamilos que pareciam frutos delicados, bons de se chupar, pintelhada fresca e perfumada, caracolinhos negros como tições, bons de se cheirar. O velho agradeceu o vislumbre e passou os dedos ancilosados pelo corpo da mulher. Era, apesar dos livros que escrevera, um velho distinto, educado e conservador: sabia que uma mulher que se oferece assim merece pelo menos um afago.

(Em dada altura da minha vida, como a Aninhas, li muito o Rubem Fonseca: muitos livros e de enfiada, desejei ser apenas língua e orifícios. Tanta fartura causou-me certo desarranjo intestinal; andei, durante alguns dias, doente, pele macilenta, cheia de cólicas violentas, soltando gases e peidinhos, o intestino feito num oito, ora preso, ora liberto, bipolar. Até que, por fim, tive uma enorme descarga diarreica e limpei a tripa. Jurei para nunca mais apanhar barrigadas literárias, não se deve abusar dos escritores. Tal como não se deve abusar de gulodices. Aprendi a intervalar.)