2010/12/28

Arena

Aos domingos as famílias sentavam-se à volta da mesa da cozinha para comer uma feijoada, um cozido à portuguesa, às vezes, um frango assado. O sol entrava pelas vidraças das marquises, tornava o ambiente morno, fazia desabrochar os lírios dos azulejos. Eles chegavam sempre à mesma hora, quando o relógio se aproximava das duas, marcando o final da refeição, no momento em que as mulheres arranjavam a fruta para as crianças, descascando maçãs e peras, tirando os caroços das laranjas, quando as cafeteiras italianas já estavam em cima dos bicos dos fogões, prestes a chiar. Vinham em grupo e tocavam melodias de tempos antigos, cantiguinhas com mofo, fados amarelecidos. Cantavam mal, alto, esganiçando a voz ao limite do suportável. As crianças, mal os ouviam, levantavam-se da mesa e precipitavam-se para as janelas. Levavam a boca cheia de maçã. As mulheres, de avental, seguiam as crianças. Os maridos deixavam-se ficar sentados à mesa, a palitar os dentes, a olhar os restos nos pratos, à espera da chávena de café. Escutavam os músicos, mas não os viam. Eram as mulheres e as crianças que não resistiam ao apelo de os ver e se punham à janela a escutá-los. Lá estavam eles. Um gordo, muito gordo, de uma gordura doente, imensa, que tocava melódica. Uma cega que trazia os olhos remendados e provocava nas crianças um arrepio. Tocava ferrinhos e tinha um rosto áspero, levemente malévolo. Havia também um mulato que mancava. Não tocava nenhum instrumento. Não cantava. Estava ali a mostrar o seu aleijão. O chefe dos músicos era desempoeirado, usava um boné, tinha a pele do rosto muito brilhante e vermelha, como se tivesse sido encerada. O bigode retorcido, grisalho, conferia-lhe um ar distinto. Era maneta. Trazia o braço deficiente preso com um lenço.

Ficavam os quatro a tocar e a cantar no meio da rua. Aquilo durava um instante. Quando se calavam, as pessoas que estavam à janela começavam a atirar moedas. O chefe, o tal que era maneta, deixava então os companheiros. Ficavam desamparados. O gordo, muito gordo, olhava para o chão e a cega de olhos remendados apoiava-se no ombro do mulato. O chefe ia de pátio em pátio apanhar as moedas que as pessoas dos apartamentos atiravam. Às vezes, uma moeda fugia para baixo de um carro, obrigando o homem a baixar-se para a apanhar. Os miúdos das janelas ficavam a vê-lo, apoiando-se apenas numa mão, agachando-se com dificuldade, esticando o corpo todo para alcançar a moeda. A sua altivez, que se percebia pela voz, pela agilidade que punha no andar, era posta de parte. Erguia-se, ajeitava a boina, olhava para cima a agradecer a moedinha. Às vezes, uma criança soltava uma gargalhada de gozo e não era contrariada. Era uma gargalhada de criança e as crianças não têm maldade, são puras, imaculadas, virginais.

Também eu e a minha irmã corríamos à janela a ver os músicos. A minha mãe dava-nos sempre uma moeda, a tia Dé, generosa, engordava a esmola. Todos os domingos, pedia à minha mãe para nos deixar atirar as moedas pela janela da cozinha. Todos os domingos, a minha mãe enrijecia a voz perante o meu pedido. Se queríamos dar a moeda tínhamos de descer à rua e depositá-la numa das caixinhas de esmolas que os músicos traziam ao pescoço. Que aprendêssemos de uma vez por todas: não se atiram coisas às pessoas como se fossem animais. A explicação da minha mãe era tão simples, correcta, sensata. Não tinha argumentos para a contrariar. Não podia confessar-lhe que o que mais queria era atirar a moeda pela janela, fazer pontaria a ver se deslizava para baixo de um carro, ver o maneta esforçar-se para a agarrar. Não podia explicar-lhe que queria vê-lo gritar-nos um obrigado perante a plateia de vizinhos. Todos os domingos, descia no elevador, contrariada, com as moedas fechadas no punho. Queria tanto fazer parte da casta dos atiradores de moedas e a minha mãe não deixava. A minha mãe não percebia que a sua proibição tinha consequências devastadoras. Mal saia do prédio, batendo a porta pesada de vidros e alumínio, sentia-me observada. Também eu passava a fazer parte do espectáculo dos aleijadinhos. Deixava de estar nos camarotes confortáveis dos prédios, na plateia dos remediados misericordiosos, descia à arena dos proscritos, dos desgraçados, mil olhos postos em mim, a diferença muito próxima, a miséria podendo contagiar-me.


(A minha mãe alentejana está na Índia há dois meses. O meu pai goês também. Fazem-me muita falta.)

2010/12/24

Almada

2010/12/18

Tatuagem

A Ler de Outubro continua em cima da minha mesa-de-cabeceira. Para além das tatuagens nos braços do escritor, não traz nada de verdadeiramente interessante para ler. Um intelectual tatuado tem muito encanto.

Tabacaria

Numa tabacaria do metro do Campo Grande apareceu-me, pela frente, na capa de uma revista de bem-estar e lazer, aquela anã que escreveu um livro e que grita aos quatro ventos que é muito feliz. Está por todo o lado. Revistas, programas da tarde e da manhã, as perninhas bambas, o cabelo às madeixas, aconchegada na sua cadeira de rodas, mexendo as mãos de unhas arranjadas, explicando sempre o mesmo. Vai a discotecas, namora, faz tudo o que os outros fazem, é independente e feliz. A anã (em rigor, segundo apurei, não é anã, padece de uma doença congénita que lhe atrofia os membros, a doença dos ossos de vidro) fala e delicia as velhotas de cabelo lilás e azul que assistem aos programas. É mulher realizada, apaziguada com o seu corpo minguado, exemplo de determinação e força de vontade. O que não tem em corpo, dizem, tem em grandeza de espírito. Detesto-a. Eu aqui, balzaquiana, de corpo inteiro, sólido, pernas, braços, peito, boca, ventre para esmagar, moderadamente bonita, esforçadamente interessante, sempre infeliz e miserável, e a anã, a parva da anã, grotesca, metade de um corpo, com a sua voz de apito, de palhaço de circo, ossos de vidro, de poeira, nas capas da revista, no ecrã da televisão a gritar a sua felicidade, desperdiçando razões válidas para depressões e angústias. Não posso com a mulher.

Culto

Ontem, ao deitar, a minha filha encontrou no livro que anda a ler uma palavra que não conhecia. O que é um culto? perguntou com voz nasalada, as narinas emparedadas. A tia Dé, que veio para me ajudar com a prole doente, enquanto lhe desentupia as narinas com neo-sinefrina, explicou-lhe. Um culto é o mesmo que uma seita. Assim como as seitas dos árabes! Eu andava ali pelo quarto a preparar o aerossol para o Joaquim. Ao escutar a explicação da minha tia, arregalei-lhe os olhos. Estou a dizer alguma mentira? respondeu-me. Com as suas mãos ágeis de enfermeira instrumentista, muito lisas, quase transparentes, continuou a tratar a minha filha. Calei-me.

Bola de Berlim

Tive uma colega – agora é juíza – que se gabava das esmolas que dava aos pobres que encontrava à porta do pingo doce de Massamá. Uma vez, lembro-me bem, pagou uma bola de berlim a um desgraçado qualquer. Passou a semana a vangloriar-se do seu gesto. Nunca mandei a tal colega à merda. Arrependo-me profundamente de não o ter feito. Vem a conversa a propósito do Fernando Nobre. O Fernando Nobre, sempre a puxar dos seus galões -, esteve em Beirute em 82, viu crianças a lutar com galinhas por um pedaço de pão - fez-me lembrar a minha colega. Alguém devia mandá-lo à merda.

Estabilidade Matrimonial

Vinha no Público: há uma ala nova no PS. Por um Futuro Decente, num Portugal Novo, assim se chama o manifesto que apresentaram. O manifesto tem tom moralista, o que calha bem nos dias que correm. Subscrito por muita gente, foi um tal de Cândido Ferreira que o apresentou. Escreveu já três romances e, segundo currículo entregue pelo próprio aos jornalistas, tem um casamento estável com uma médica. Umn futuro decente e um casamento estável. Li a notícia. Apeteceu-me rir e chorar por ver o meu destino nas páginas do jornal.

2010/12/09

Ler

A nave central do tribunal é lugar inóspito, frio, sem inspiração. Ampla, despida de móveis, habitada apenas pelo eco das vozes e dos passos dos que chegam: magistrados, funcionários, testemunhas, agressores, vítimas. Há várias portas na nave principal. Algumas são de acesso condicionado. Levam às entranhas do tribunal, a corredores labirínticos de madeiras enceradas. As outras portas, de vidro, estão abertas ao público em geral. São as entradas das secretarias dos juízos criminais, dos serviços do ministério público, das salas de audiência. A porta da sala dos advogados também está aberta. Lá dentro, três mulheres conversam sobre uma mesa redonda onde repousam códigos e processos. A mais velha usa um decote acentuado e uma saia muito justa que marca a curva da anca e o volume dos glúteos. Tresanda a profanação. A segunda advogada traz o cabelo num desalinho por causa da chuva. Tem o corpo enfiado numa canadiana cor de chumbo. É feia, desleixada, desinteressada e desinteressante. A primeira e a segunda mulher amortecem o entusiasmo da terceira mulher, uma jovem advogada que acabou de sair da sala de audiência. Conta o que se passou durante a diligência. Fala com uma confiança que desconhecia ter, rindo, mexendo as mãos, alisando o cabelo. Foi o seu primeiro julgamento e toda a gente a tratou por senhora doutora. Nunca pensou que lhe soubesse tão bem tratarem-na assim. A um canto da nave principal, junto das vidraças que dão para um jardim de arbustos, quatro homens jovens conversam. São polícias. Percebe-se pelo cabelo muito curto, os blusões, as botas de cordões. Os jovens polícias falam ruidosamente e têm nomes como Vítor e Mário. De tempos a tempos a nave central do tribunal é atravessada por uma oficial de justiça que, de capa preta, deixa um rasto sombrio, pesado, de bosque assombrado.

Penso assim: que bem me sabe ler este livro neste lugar. Leio durante três horas. Depois levanto-me e vou-me embora.

2010/12/05

Ma Liberté

Alvéolo Pulmonar

O Abílio está apaixonado. Vinda de um serviço regional, chegou, há pouco mais de um mês, uma colega de cabelo muito curto, pintado de um loiro quase branco, brilhante. Usa sapatos de saltos altos e fuma de um modo desesperado, chupando o cigarro a intervalos curtos, em silêncio. Inspira profundamente para se certificar que o fumo faz o percurso completo, sem desistências até chegar à meta final. Passa pela boca, pela traqueia, pelos brônquios, enche cada alvéolo pulmonar. O fumo, vê-se bem, enriquece-lhe a hematose pulmonar. Leva-lhe alívio que é coisa tão importante como o ar que se respira.

O Abílio também fuma. Com um vagar engraçado que parece preguiça. De hora a hora, arrasta o corpo, aprimora a pronúncia alentejana, ó chefe vou lá abaixo fumar um cigarrinho, pega no maço de cigarros, passa pela máquina a tirar um café e vai fumar para a entrada do edifício. Encosta-se a uma parede para aliviar o cansaço e, enquanto fuma, entretém-se a observar a saída ruidosa das enfermeiras pelo portão do hospital. Foi na entrada dos funcionários, perto dos torniquetes, durante as pausas que se instituíram para alimentar o vício do tabaco, que o Abílio se apaixonou pela colega do cabelo branco. Tal paixão provocou uma enorme revolução na sua vida. Explico-a sem pinga de sarcasmo ou ironia que o assunto é sério e comove-me. O Abílio sempre saiu às quatro horas. Dez minutos antes das quatro, começava os preparativos: arrumar a secretária, fechar as gavetas do módulo e do armário, alinhar o computador, ir à casa de banho. Às quatro horas, picava o ponto, vestia o blusão de sarja, se fosse verão, o de fazenda, se fosse inverno, pegava no maço de cigarros e despedia-se. Espreitava por cima dos biombos azuis. Abanava a cabeça ao passar pelas secretárias dos colegas mais novos, quase todos contratados a prazo ou a recibos verdes. O Abílio lamenta profundamente a precariedade dos outros e é sindicalizado.

Mas, agora, desde que se apaixonou, já não sai às quatro horas. Fica até mais tarde. Sai por volta das seis. Quanto mais tarde sair, mais cigarros fuma na companhia da mulher de cabelo curto. No beco dos funcionários, nas traseiras da rua mais feia da cidade, o Abílio olha a colega e fala-lhe com o embaraço próprio dos apaixonados. Continua a fumar devagar. Encontra beleza no entardecer.

(Desde a quarta classe que tenho fascínio pelo sistema respiratório, sobretudo, pelos alvéolos pulmonares. Imaginava-os, na altura, como os cachos de uvas de vidro que a Cila, minha madrinha, tinha por cima da mesa da sala de jantar. Translúcidos, semi-preciosos, feitos de feldspato.)

2010/11/28

2010/11/15

Sapo

Entrei numa pequena loja de brinquedos didácticos por causa de um enorme globo que estava na montra. Ofuscava o resto das brincadeiras. Gigante, colorido, confortável; os mares, os oceanos, os continentes, toda a superfície terrestre – litosfera, hidrosfera - muito fofa, costurada em feltro de cores vibrantes. Quis o globo para o quarto do meu filho mais novo. O pobre herdou as sobras dos irmãos mais velhos, tem um quarto de refugo, sem grande gosto ou harmonia, um berço branco do ikea, uma cómoda de pinho, uma estante de faia desengonçada. Achei que o globo resgatava o meu desleixo decorativo para com o quarto do Joaquim. A bola mundo estava coberta de figuras pequeninas. Representavam os povos de todo o mundo, índios, muçulmanos, negros, esquimós, todos com corpo de feltro e uma fitinha de velcro nas costas para os meninos se entreterem a fazer corresponder os povos com os continentes. O objectivo do brinquedo era ensinar a paz, a harmonia, o respeito pela diferença.

A dona da loja (percebia-se pela modo como se vestia e pelo entusiasmo que punha nas explicações) era uma simpatia. Falou dos brinquedos que vendia. Madeiras coloridas, marionetas, jogos, lápis de cera gordos, puzles, bonecas que pano, nem um corpo de plástico se assomava naquele mundo maravilhoso de imaginação e criatividade, tinha tudo o que era necessário para estimular e motivar as crianças; os seus brinquedos despoletavam milhões de sinapses nas cabecinhas dos meninos. Torceu o nariz às grandes superfícies, aos corredores de brinquedos, aos plastificados cancerígenos das lojas chinesas. Eu calada, muito calada, sorrindo, que ando uma lástima, não me posso enervar, a lembrar-me do Joaquim a tratar dos nenucos da irmã, agarrado ao action man do mano João, a chamar-lhe senhor Zé, encantado com os a pistola que lhe comprei no hiperchina, a matar-me cada vez que me apanha na cozinha a descascar batatas.

A mulher disse-me o preço do globo terrestre. Arregalei-lhe os olhos e expliquei que ia pensar melhor no assunto, que é uma maneira cobarde de dizer nem penses que pago o que me pedes. A dona sorriu. Era muito simpática. Mas é que era mesmo. Preparei-me para sair. Reparei, então, que, atrás da porta de vidro, um enorme sapo de loiça me observava desconfiado. Espojado, viscoso, gordalhufo, fitava-me com olhos muito esbugalhados, ciente do papel fulcral que desempenhava no estabelecimento. Procurava o bicho perceber se a minha pele escura, os meus cabelos pretos, compridos, me incluíam em determinada categoria de indigentes. Ao passar, o horrendo bicho coaxou na sua linguagem batraquial qualquer coisa que me pareceu um mau-olhado. Levantei o pé, preparada para o pontapear. Mas o sapo fugiu, aos saltinhos, e foi prostrar-se no meio da montra, mesmo por baixo do globo de feltro. Fiquei a olhá-lo, estarrecida por a loja de brinquedos didácticos, a loja onde eu me preparava para comprar um globo para ensinar ao meu filho mais novo a paz entre os povos da terra, ter à entrada um sapo para escorraçar a ciganagem, esses malandros que não assimilam a decência da pobreza: compram playstations aos filhos e bolicaos com o rendimento mínimo social. Olhei a dona da loja pela última vez. Continuava a sorrir-me. Sempre a sorrir. Posso estar enganada, estou-o muitas vezes, mas tinha pinta de ser uma daquelas mães de esquerda – punha as mãos no fogo em como vota no bloco de esquerda - e tem os filhos, motivadíssimos, estimuladíssimos, espertíssimos, no colégio moderno.

2010/11/13

Outubro

Morri no princípio de Outubro. Enterraram-me num cemitério com vista para a auto-estrada do sul. Passei os primeiros dias entretida, inteirando-me da minha nova condição, descobrindo como é estar morta. Escutei o restolhar das folhas dos eucaliptos e pude fazê-lo durante longos minutos, concentrando-me apenas no ruído das copas, isolando-o do resto do mundo até se tornar insuportável. Vagueei por alamedas, paralelas e perpendiculares, olhando as campas, lendo inscrições, observando a estatuária: gárgulas, anjos, cristos lacrimosos, conchas de mãos piedosas. Cheirei as flores frescas das coroas fúnebres e desfiz com as minhas mãos invisíveis corolas frágeis. No princípio da noite, quando a escuridão era ainda clara, os portões do cemitério eram sempre fechados com estrondo. As mulheres vestidas de preto voltavam para os seus apartamentos de marquises de alumínio e sentavam-se sozinhas em frente do televisor.Uma quietude insuportável abatia-se sobre o lugar e eu voltava então ao meu corpo, deitado num caixão de cetim branco. Encaixava perfeitamente nele. Uma noite, porém, senti desconforto ao voltar a mim. O corpo inchara e eu sobrava dentro dele. Aninhei-me no canto esquerdo e procurei adormecer. Um reco-reco pequeno, um barulhinho persistente, fez-me despertar. Pensei que fossem térmitas alimentando-se do pinho do caixão. Abri os olhos. Vi duas lagartas gordas, brancas, cegas, sorrindo-me. Uma das lagartas tinha boca de ventosa e mordiscava a ponta esquerda do meu coração. Enervei-me. Não vivo sem corpo. Mesmo morta, preciso dele. Não encontro conforto na imaterialidade, só compreendo o que é concreto, comum, palpável. Enxotei as lagartas que fugiram como toupeiras. Decidi partir. Tentei ressuscitar que é a única maneira que conheço de largar a morte. Não consegui. É muito difícil. É preciso ser deus, filho de deus, parente de deus, amigo de deus, para o conseguir. Na manhã seguinte, estava eu entretida a observar o namoro de dois pardais, vi chegar pela alameda os meus três filhos. Não traziam flores. Vinham com olhos líquidos de abandono. Nessa noite, deitei-me nas ruínas do meu corpo, era já só ossos, os malares cavados, a carne ressequida. Ventava na arcada das costelas e o ruído desse vento perpétuo não me deixou adormecer. A morte pesou-me mais do que a vida.

2010/10/24

PCP

O pcp, em cartazes que por aí andam espalhados, reclama ser a esquerda patriótica. Estranhei. As palavras, como as pessoas, também se catalogam, colam-se a realidades, têm um passado, uma história. Há palavras da direita e palavras da esquerda. Toda a gente sabe que a palavra pátria pertence à direita saudosista, nacionalista, aos salazaristas que levam coroas de crisântemos e gerberas a Santa Comba Dão. Nem o PP usa a palavra pátria nas suas campanhas.Qualquer pessoa associa a palavra pátria aos manuais escolares do antigo regime. É a nossa mãe protectora. Dócil, humilde, casta. É a pátria do império, dos heróis, dos santos, do povo obediente, da ordem, do senhor presidente do conselho e da governanta. Não há outra pátria. Que o pcp se assuma como esquerda patriótica (aquela que ama a pátria) é coisa bizarra. Sei que os entendidos explicam que o pcp sempre foi um partido patriótico, mas a utilização daquela expressão, apelando a um imaginário que, à primeira vista, é precisamente o oposto do do pcp, tem um propósito claro. A esquerda patriótica do pcp é como a fé debochada da Dilma Rousseff, a marioneta polida pelo Lula.Serve para conseguir votos, mesmo que seja à custa dos ideais que sempre defenderam.

2010/10/21

Domingo (2)

Quando o marido alterou os seus procedimentos, passando a procurá-la apenas nas noites de domingo, Odete aborreceu-se. Agradecia o sexo agendado, era ao domingo, sempre ao domingo, mas não suportava que os lençóis mudados ao sábado, imaculados, cheirando tão bem, a sabão de marselha, a aloé vera, a flores orientais, se sujassem no dia seguinte. Era o suor, eram os derrames ocasionais de esperma, era o cheiro animal de corpos, coxas, nádegas, o pénis do marido, a sua vagina nua, esfregando-se no tecido dos lençóis! Na noite seguinte, à segunda, deitava-se e sentia que não se deitava na sua cama. Era uma enxerga imunda. Um catre de asilo que roda de dono todas as noites. Um dia, puxando a roupa para trás, encontrou mesmo dois pelos púbicos do marido, muito pretos, encaracolados, aninhados em espiral como vermes. Analisou o problema. Percebeu que havia apenas uma solução: deixaria de mudar a roupa da cama ao sábado, passaria a fazê-lo à segunda-feira. Fazia-o, porém, com sacrifício. Sendo um dia de semana, a segunda-feira não lhe deixava muito tempo livre. Na altura, ainda os filhos eram pequenos, desde que entrava em casa até à hora do jantar, andava num corrupio: vigiava os trabalhos de casa, fazia o jantar, preparava as marmitas para o colégio, varria quartos, corredores, a sala, limpava as casas de banho, tratava da roupa. Por mais que tentasse, e tentou-o várias vezes, não conseguia desempenhar aquela tarefa antes do jantar. A mudança da roupa da cama ficava sempre para depois. Apressava a limpeza da cozinha, muitas vezes, não tinha sequer tempo para arear os bicos do fogão. Deixava a loiça a secar em cima do balcão e corria para o quarto. Perdia quase sempre o início da telenovela. O marido a chamá-la, Odete, anda, já está a dar a novela, ela no quarto a esticar lençóis, a enfiar o bico de pato nos cantos da cama, a zelar pela higiene do lar. Mas o sacrifício valia bem a pena! Aos domingos, o marido passou a sujar o que já estava sujo. Podia esfregar o corpo nos lençóis, soltar líquidos, impar, guinchar, cuspir se quisesse, podia esvair-se em sangue, derramar as entranhas, soltar mucos, esvaziar os testículos! Ela não se importava. No dia seguinte, mudava os lençóis, aspirava com o bico de pato os bichos que comiam pó, adormecia numa cama limpa. Na verdade, nas noites de domingo, nas tais noites que se tornaram ruma rotina inalterável, já lá vão tantos anos, o que menos custa a Odete é o sexo propriamente dito. O sexo é uma obrigação que cumpre como outra qualquer. Num instantinho a vida passou e uma mulher acostuma-se a tudo. Não sente dor. Não sente tristeza. Não sente nada. Não a aborrece o sexo que se pratica com hora marcada, muito pelo contrário, só tem a agradecer ao marido ter tornado o sexo numa rotina. Poupou-a à imprevisibilidade da coisa, evita-lhe a ansiedade, a angústia da incerteza. É ao domingo, sempre ao domingo. Ficaram os restantes dias da semana libertos, pode dormir descansada, adormecer em sossego: o sono não será interrompido para o cumprimento das obrigações conjugais.

Domingo (1)

Se pudesse, trocaria de imediato os lençóis da cama, porém o marido adormece rapidamente nas noites de domingo. É o tempo de ir à casa de banho lavar-se. Na volta, encontra-o sempre a dormir, ressonando baixinho, a culpa e a vergonha fugindo-lhe pela boca e pelo nariz, ficam os lençóis reféns daquele corpo, presos às suas carnes, com o cheiro da noite entranhado. Por causa dos lençóis Odete alterou a sua agenda doméstica. Nos primeiros tempos de casada, quando a prática dominical ainda não estava instituída - o marido tanto a procurava na cama ao domingo, como à quarta-feira, como à quinta-feira, montava-a sem agendamento prévio, em qualquer altura da semana, às vezes, duas noites seguidas, causando-lhe sobressalto, mialgias várias -, trocava a roupa da cama ao sábado de manhã. Gostava daquela tarefa doméstica mais do que qualquer outra. Encarava-a com um zelo especial. Começava por colocar os cobertores a arejar no parapeito da janela durante toda a manhã. Aspirava o colchão com cuidado, enfiando o bico de pato em todas as ranhuras e frestas da cama, expurgando assim o leito conjugal dos bichos que se alimentam do pó. Fazia a cama com movimentos vigorosos e precisos; os lençóis eram abertos com um gesto largo, sacudidos com rapidez, às vezes estalavam, ficava aquela brancura enfunada, a planar por instantes sobre o colchão. Esticava depois os lençóis muito bem, até não se ver um vinco, um engelho, uma ruga. Fazia pequenos nós nas extremidades do lençol de baixo para não se soltar. Tal técnica, sabia-o bem, trazia certas desvantagens: esgaçavam-se as fibras dos cantos do lençol e a engomagem tornava-se mais difícil, tinha de borrifar o tecido, encharcá-lo várias vezes até desaparecerem os vincos. Odete não se importava. Os nós asseguravam uma semana descansada, sem lençóis fugitivos. Depois, entalava bem os cobertores e fazia uma dobra perfeita com o lençol de cima, nem muito grande, nem muito pequena, o quadrilé bordado a ponto de cruz ficava sempre simetricamente colocado ao meio. Estendia, por fim, a colcha, dispunha os almofadões de folhos, olhava para a cama no meio do quarto limpo, o sol da manhã entrando pelas janelas abertas. Experimentava um momento de deleite e conforto.

2010/10/16

Domingo

Está acostumada às noites de domingo. Já nada lhe custa nas noites de domingo. As noites de domingo são previsíveis como os almoços de feijoada ao sábado. Desenrolam-se sempre da mesma maneira, nunca trazem surpresas ou sobressaltos. Só lhe custa, nas noites de domingo, certa falta de asseio. Não é que o marido não seja um homem limpo. Pelo contrário, os cuidados de higiene fazem parte da disciplina que julga essencial para se viver com decência. O marido exerce as rotinas com método e precisão. Toma sempre banho depois do pequeno-almoço. Escova os dentes durante um minuto. Muda de meias, cuecas e camisa todos os dias. Apara frequentemente os pêlos das narinas e das orelhas com uma tesourinha retorcida que guarda num estojo de couro. Vai ao barbeiro uma vez por mês cortar o cabelo. Usa a piaçaba para limpar a sanita. Nunca se esquece de puxar o autoclismo. Corta as unhas das mãos e dos pés com regularidade sem as deixar espalhadas pelo chão do quarto. Odete sabe que teve sorte com o companheiro que a vida escolheu para si. É trabalhador, cumpridor, reservado, bom pai, bom marido, muito poupado, trata da declaração anual de rendimentos e oferece-lhe um ramo de cravos no dia da mulher. Porém, quando, nas noites de domingo, se transforma noutro homem e exerce a sua prerrogativa conjugal, agarrando-a com brusquidão, abrindo-lhe as pernas, enterrando-se dentro dela, exigindo o que é seu por direito, traz entranhados no corpo os cheiros que se acumularam ao longo do dia: fezes, suor, urina, a aguardente que bebe depois do jantar, o tabaco que fuma enquanto vê o domingo desportivo, às vezes, até o cheiro gorduroso do peixe frito que comeu ao jantar. É essa mistura de cheiros, individualmente suportáveis, que a deixa um pouco nauseada. O marido, é assim que pensa Odete, podia fazer um esforço para a agradar. Tudo seria diferente se, nas noites de domingo, antes de vir ter com ela, se lavasse no bidé e passasse uma esponja por baixo dos braços. Não lhe custava nada. Perdia um minuto. Se fosse um homem romântico, podia até borrifar-se com um bocadinho da água-de-colónia que os filhos lhe ofereceram pelo aniversário.

Mas pior do que os cheiros que o marido traz no corpo são os líquidos que segrega e, no momento oportuno, liberta. Por mais que lhe recomende atenção, já lá vão tantos anos, precipita-se muitas vezes a soltar o pénis da sua vagina. O marido, nos breves momentos que se seguem ao orgasmo, antes de vestir de novo o seu corpo, a sua vida, a respeitabilidade e o bom senso, viaja até um mundo de desnorte e indisciplina. Ainda atordoado, zonzo de prazer, os olhos revirando em espirais frenéticas, parece não a escutar. Apesar dos gritos aflitos de Odete – Cuidado, filho! Olha que sujas os lençóis!- , respinga muitas vezes gotas leitosas de esperma para cima da roupa da cama. Quando isso acontece, e acontece muitas vezes, Odete pega num toalhete perfumado, tem-nos sempre à mão numa caixinha de plástica em cima da mesa-de-cabeceira, e esfrega o exacto local que o marido sujou.

2010/10/11

Justine

Recordo. Encontrei, certa vez, uma sem-abrigo que lera o Quarteto de Alexandria. Muito magra, de cabelo crespo, baço, tinha os dentes podres da heroína consumida durante de muitos anos. Na altura, tive a tentação de escrever sobre aquela mulher que dormia na rua, mas tinha um passado de leituras, interesses, sonhos. Recordo com precisão o seu aparecimento: o restaurante argentino, as sobremesas montadas com aparato em pratos de faiança colorida, quatro mulheres desconhecidas falando das suas sessões de psicoterapia, o empregado servindo copinhos de licor de rosas, eu, farta de ali estar, a pensar nos meus filhos, na falta que me fazem, a fazer um esforço para articular palavras, para mostrar interesse naquilo tudo. Foi então que uma mulher se aproximou da nossa mesa e ofereceu a revista cais. Notando o livro que tirei da mala para alcançar o porta-moedas, a mulher explicou que lera há muitos anos o romance de Lawrence Durrel. Confessou que, dos quatro livros, gostara mais, muito mais, do primeiro, Justine. Os olhos brilharam-lhe com saudade de um passado há muito esquecido. Percebi, naquele instante, que aquela mulher era a protagonista da noite. Nós, as quatro desconhecidas, que dissecávamos relações e beberricávamos copinhos de licor, éramos meras figurantes. Tínhamos tudo – problemas, angústias, sofrimento, também - mas faltava-nos densidade dramática. Senti-me inexistente ao lado daquela mulher. Nunca fui capaz de escrever sobre ela. Não sei explicar bem porquê. Senti que se o fizesse estaria a retirar-lhe a dignidade que lhe restava, a comer-lhe a sua individualidade, a reduzi-la a uma categoria, a um estereótipo. Isso pareceu-me monstruoso.

Onésimo

O Onésimo Teotónio Almeida encontrou, em São Miguel, um gasolineiro que lê Guimarães Rosa, Saramago, Eduardo Lourenço, outros que não recordo. Teve uma epifania tal que correu a escrever duas páginas sobre o assunto na revista Ler. Pouco mais faz do que elencar as obras que o gasolineiro de S. Miguel leu. É uma lista longa que tem tanto interesse como a lista que faço antes de ir às compras. Farinha, pensos higiénicos, leite, iogurtes, toalhetes, fraldas. Não me espanta que o gasolineiro, com a quarta classe ou coisa que o valha, leia o Guimarães Rosa. Assim como não me espanta que outros, com elevados conhecimentos, cargos digníssimos, nunca o tenham lido. O que me espanta é que o Onésimo Teotónio Almeida, com tanto saber, tantos graus, cátedras, tantos livros lidos, escreva um texto tão mau sobre alguém que é mais do que a lista dos livros que leu.

2010/10/09

Malick Sidibe


Lobo

Carla rodava no átrio da escola secundária, mal pousando os pés no chão encerado, evitando o ruído, escondendo-se atrás dos placares de informações da secretaria para não chamar a atenção. Comia pacotinhos de bolachas de água e sal nos intervalos. Parecia um esquilo. Não havia rapariga mais feia no liceu. Nem os olhos claros a salvavam. Era, por outro lado, desinteressante, muito aborrecida, chata. Tal carácter acentuava-lhe a feiura, tornando-a grotesca. Gostava de bordar a ponto cruz e encontrava conforto na aprendizagem da culinária. Certo dia, do nada, assim como que a querer meter conversa, explicou que sabia fazer rissóis, esclarecendo que o segredo estava na massa cozida e não no recheio. Ninguém lhe ligou. Ela lambeu os beiços e foi esconder-se atrás de um vaso a comer bolachas de água e sal.

Vestia fatos de treino de algodão. Sonhava soltar o seu primeiro beijo ao som das canções do Glen Medeiros. Miudinha, a voz fanhosa, muito irritante, fazia estremecer a alma mais bondosa. Quando falava, havia uma produção excessiva de saliva que se acumulava nos cantos da boca. Ficava aquela babugem de cuspo pairando ali, humedecendo-lhe os cantos, evitando as fissuras do cieiro. Carla aplicava-se no estudo com afinco, lia muito, fazia resumos que sublinhava com marcadores fluorescentes de várias cores. Até aí falhava. Nunca conseguiu ir além da mediania. Era fraca em quase todas as disciplinas, menos nas línguas estrangeiras, onde era assim-assim. Tinha um irmão efeminado, um ano mais velho, que dava ao rabinho escola fora. Chamavam-lhe Repolho, porventura por causa do tom esverdeado que, em dias de chuva, a pele do seu rosto tomava. Era uma cruz que Carla carregava contrariada.

Passaram exactamente vinte anos. Não voltei a vê-la. Soube que seguiu a sua fraca vocação. Tirou um curso de línguas. Ontem, encontrei-a na rua onde trabalho, a rua mais feia de Lisboa. Borriscava e a Carla passeava de mãos dadas com um marido muito magrinho, precocemente envelhecido. Atravessaram a rua perto do novo restaurante japonês que tem um letreiro cor-de-laranja torrado. Bufete de almoço a nove euros e cinquenta, incluindo café, uma bebida, sobremesa, e a Carla, à chuva, olhando com amor, tanto amor, o seu companheiro. Vestia um casaquinho de malha azul-escuro e calças vermelhas. Trazia um colar de contas, vermelho coral, rente ao pescoço. O colarzinho, de bom gosto, dava-lhe um certo sainete e, estranhamente, tornava a minha rua menos feia. Deve ter usado aparelho nos dentes. Nos tempos do liceu, os caninos encavalitados não a deixavam fechar a boca. Agora, sorri, confiante. Mostra uma fileira de dentes certinhos, grandes, brancos. Apesar do colarzinho e da dentadura nova, continua feia, com as ancas muito largas, obscenas e maternais. Parece feliz.

(Como sempre acontece, a inveja galgou sobre mim. Tornou-me num bicho de dentes aguçados, num lobo das estepes, faminto, passeando na rua mais feia da cidade. Olhei a Carla e quis ferrar-lhe os dentes, apossar-me do seu corpo, da sua vida, do seu marido de rosto esquálido e dedos amarelos de nicotina.)

2010/10/06

Mambo

El Sistema

No início do ano, passou no segundo canal um documentário sobre o sistema nacional de orquestras na Venezuela. El Sistema, como lhe chamam os venezuelanos, é a concretização do sonho de José António Abreu, economista e pianista amador, que, através do ensino da música clássica, criou um projecto único de inclusão social. Existem na Venezuela cerca de 125 orquestras juvenis que integram cerca de 250 mil crianças e jovens. A maior parte destas crianças vem de famílias pobres e muito pobres. No documentário, acompanhamos a história de Raul. Vive com a mãe, numa torre clandestina, de tijolos, cimento e grades, na periferia de Caracas. Levanta-se às seis e meia da manhã para comer tortilhas caseiras que a mãe lhe prepara. Raul vai à escola de manhã. Passa as tardes numa orquestra juvenil a tocar trompete. Fá-lo com uma alegria contagiante.

Tem um amigo gordo, caboclo de cabelo lustrado, que toca tuba. Tem uma amiga desdentada, de totós floridos, que toca flauta. O maestro é um jovem mulato, muito bonito, que anda de mota e cresceu num orfanato. As orquestras juvenis da Venezuela, criadas na década de 70, são um mecanismo precioso de integração. No documentário, José António Abreu explica que o sucesso, em parte, se explica pela miséria em que a maior parte dos alunos vive. A miséria traz-lhes abnegação, disciplina, força. Os meninos venezuelanos vêem nas orquestras do seu bairro, na aprendizagem da música clássica, uma maneira de se salvarem do gueto. Ao contrário, as crianças dos países desenvolvidos, as nossas, experimentam o tédio do excesso. Vivem na triste miséria da abundância. Se lhes derem um clarinete ou uma trompa olham com desprezo e correm para o facebook onde inventam, para si, uma vida de alegrias breves e amigos virtuais.

Não percebo um corno de música clássica. Gosto das tocatas de Bach, pouco mais. Porém, quando vejo as imagens do Gustavo Dudamel, o mais célebre aluno do sistema de orquestras venezuelanas, com os caracóis aos cachos, sorridente, dirigindo uma orquestra de brancos, negros, mestiços, fico arrepiada. Mais encantada fico quando, no fim dos concertos, a música clássica dá lugar aos ritmos populares caribenhos e os músicos se levantam para dançar. Os meninos do público, Raul e o seu amigo gordo, aplaudem. Gustavo Dudamel canta e dança. É maravilhoso. Há dois anos que tendo comprar um bilhete para o ver. Há dois anos que sou excluída do circuito feroz dos melómanos que açambarcam tudo. O próximo concerto é em finais de Janeiro na Gulbenkian. Os bilhetes estão esgotados há muito tempo. Vai a Gulbenkian encher-se de empalados para o ouvir. Os empalados, para quem não sabe, são aquelas pessoas que têm um pau enfiado pelo cu acima e se movimentam, muito sérios, muito direitos, digníssimos, sorrindo aqui e ali, pelos corredores dos teatros e auditórios. Em todo caso, se algum empalado - impossibilitado de ir ao concerto ou apertadinho com a crise instalada - quiser, mediante preço a acordar, dispensar-me um bilhete, eu aceito.

2010/10/05

Cemitério

Foi uma alegria quando o sexto esquerdo do prédio dos meus pais foi comprado. Finalmente, o último apartamento seria ocupado. Acabava, assim, o corrupio de potenciais compradores, gente que entrava e saia, examinando cada recanto, mexendo em tudo, olhando-nos, seus potenciais vizinhos, com a mesma frieza com que olhavam os mármores da entrada e os alumínios dos caixilhos. O prédio seria, por fim, poupado ao embaraço desses estranhos que pareciam fazer troça do nosso lar. Podia repousar na tranquila alegria de uma família completa. Logo se soube que o apartamento fora comprado por um casal de professores aposentados. Tinham apenas um filho que acabara há pouco tempo o curso de medicina. As características do novo agregado familiar agradaram a toda a gente. Num prédio de funcionários públicos, donas de casa, militares de pequena patente, retornados, um casal de professores proporcionava a decência escolástica que o exercício do professorado ainda gozava naquele tempo. Um jovem médico exerceria, por outro lado, uma boa influência nos miúdos que cresciam naquele bairro dos arrabaldes de Lisboa. Feita a mudança, o casal instalou-se. Os professores aposentados eram muito educados. Nunca estacionavam o carro no lugar dos vizinhos e traziam o patim da escada impecavelmente limpo. Já o filho, o jovem médico, logo na sua primeira aparição, provocou nos habitantes do prédio um desconforto miudinho. Era uma sensação estranha que não sabiam explicar. Parecia um bicho cocegando a pele.

Convidaram-me para escrever aqui durante o mês de Outubro. Nunca desperdiço a oportunidade de escrever. Convido-vos, estimados leitores, a ir espreitar o cemitério. Hão-de encontrar o resto do texto, bem como as respostas que dei a meia dúzia de perguntas. Durante o mês, haja tempo e inspiração, conto escrever mais qualquer coisita.

2010/09/27

Fausto


Brilhante

De vez em quando, muito de vez em quando, sou contagiada pelo entusiasmo vibrante dos críticos, dos jornalistas, dos analistas. Aconteceu-me com o Brillante Mendonza. No último DocLisboa, o cineasta filipino mereceu uma retrospectiva. Os entendidos teceram, na altura, elogios maravilhosos ao tarantino asiático. Chamaram a atenção para a beleza crua, para a coreografia da câmara, para a estética única. Não resisti e comprei bilhetes para a tal retrospectiva. Vi-me enfiada num fim de tarde no auditório da culturgest, com um entrapado sentado ao meu lado que procurava intelectualizar as imagens que passavam no ecrã. Era um filme assumidamente pornográfico, passado numa casa de massagens de Manila. Um homem triste, acossado pela vida, era besuntado por rapazes miseráveis, uns magrinhos, outros entroncados, que falavam sempre alegremente. O filme não tinha grande história e a alegria despreocupada dos massagistas, pareceu-me, sinal de insuportável resignação. A resignação é um meio adequado para calar o desespero. Detestei, pois, o filme e arrependi-me amargamente de desperdiçar o meu tempo livre, tão escasso, com aquele documentário. O homem ao meu lado, pelo contrário, quando as luzes se acenderam, virou-se para um amigo da fila de trás, também ele entrapado, e iniciou uma maravilhosa conversa sobre o maravilhoso filme que tinha acabado de ver. Na altura, irritei-me com as trivialidades que os dois entrapados diziam embevecidos um ao outro. Porém, agora, quando penso melhor no assunto, não tenho dúvidas de que o homem apreciou o filme. Gemeu ruidosamente - juro, por tudo o que há de mais sagrado, que é a mais pura das verdades - durante a exibição. Tenho certeza que fez um esforço enorme para controlar as erecções do pénis. A verdade é que no fundo, bem lá no fundo, todos gostamos de pornografia.

2010/09/21

Quarteto Alverquense

Apresso as rotinas matinais para não perder as conversas do quarteto alverquense. São quatro mulheres que viajam na primeira carruagem do comboio que vem de Castanheira do Ribatejo. Que seria de mim sem a animação dessas mulheres que apanham o comboio em Alverca e fazem a viagem até Entrecampos em amena cavaqueira, partilhando experiências, dando conselhos sobre a lide doméstica, roendo nas vizinhas, nas colegas de trabalho, comentando a factologia política e social?

A Maria Augusta é a deã do grupo. Tem uma neta a seu cargo a que chama menina. A menina isto, a menina aquilo, ai a minha menina, vai ela dizendo, como se a pobre criaturinha não tivesse nome. A voz sai-lhe da boca, estrondosa, aos borbotões. A Fátima é a mãe do Telmo Miguel e do Bruno. Os rapazes trabalham como seguranças num supermercado. A Fátima costuma gabar-se das tatuagens, dos piercings e da roupa de marca dos filhos. A Lurdes é a coquete. Loira, cheia de pulseiras de pechisbeque, tem um smart e já leu quatro vezes o livro da Carolina Salgado. Tais factos, o carro da moda e o gosto pela leitura, conferem-lhe certo ascendente sobre as outras. Bem vistas as coisas, é uma intelectual. A Carla, a mais nova do grupo, anda embevecida com a vida familiar. Fala constantemente do marido – o meu Rui, diz ela - e da filha. Bonita, de lábios carnudos, cheios, usa sombras prateadas, que parecem poeiras cósmicas e lhe dão um ar ligeiramente futurista. Um dia, voltava eu mais cedo para casa, apanhei a Carla no comboio da tarde com um homem. Era verão e o fresco da carruagem climatizada tornava a tarde menos penosa. A carruagem vinha deserta. A Carla sorria com os olhos ao homem e, nos silêncios, falava-lhe com o corpo todo. Naquela tarde, esqueceu o marido e a filha. Lembrou-se dela.

Conheço estas quatro mulheres há cerca de dois anos. Falam sempre ruidosamente, como se estivessem em cima de um palco. Projectam a voz para que as suas palavras se escutem de uma ponta a outra da carruagem. Esse protagonismo parece-lhes agradar. Nós, os restantes passageiros, somos um público assíduo e fiel. Hoje, depois de furar a multidão compacta - tive de empurrar a mulher da cicatriz coloidal no peito e pedir licença ao rapaz que lê sonetos numa língua cirílica - consegui instalar-me perto delas. Pus-me à escuta. A Fátima vinha aborrecida. Queixava-se da namorada do Telmo Miguel. A rapariga, pelos vistos, instalou-se lá em casa. Come, dorme, fornica e joga playstation. Chama-se Flávia. Não aborrece à Fátima que a namorada do filho durma lá em casa. Os tempos são outros e a decência é um luxo. Foi-se há muito. O que a chateia é que a rapariga não faça nada. Não levanta o prato depois de jantar. Nunca ajuda na lida da casa. Não tira sequer a loiça da máquina. Nunca lhe perguntou se quer ajuda para descascar batatas para o jantar. Desde Moscavide até Roma-Areeiro, a Fátima foi sempre a queixar-se da futura nora. Até que disse assim: “Olhem que ela nem sequer arranca os pensos higiénicos das cuecas. Sou eu que lhos tiro!”. O beicinho tremeu-lhe.

Fez-se um silêncio na carruagem. Por instantes breves, o tempo parou e os corpos dos passageiros cristalizaram. A própria Fátima se calou, tomando consciência do que dissera. A imagem da mulher, agachada sobre a tulha de roupa suja, num apartamento de Alverca, arrancando o penso encharcado de sangue menstrual das cuecas da Flávia, não comovia ninguém. Provocava, isso sim, uma náusea colectiva, de tal ordem intensa, tão profunda, arranhando as entranhas, que parecia tomar corpo, tornando-se numa massa plúmbea, fétida, visível. Nojo da Flávia, nojo do Telmo Miguel e da Fátima. Em Entrecampos, quando as portas da carruagem se abriram, todo aquele nojo escorreu para fora. A plataforma encheu-se de águas densas e castanhas, sujas de dejectos. Formaram-se pequenos charcos de putrefacção. Os passageiros tiveram de saltitar para não sujar os sapatos. Os pombos voaram para longe.

2010/09/19

Dalida



(adoro esta canção.)

Levitra

Há anúncios de televisão sobre disfunção eréctil. Um casal serôdio ronrona numa cama asséptica. A mulher alegra-se por poder finalmente ser penetrada pelo seu companheiro. No início do verão apareceram pela cidade uns cartazes gigantes sobre ejaculação precoce. As farmacêuticas gastam rios de dinheiro a desenvolver medicamentos que ajudem a erguer os falos moles, uns velhos, outros não, que por aí andam, acabrunhados, encolhidos e tristonhos. A Pfizer inventou o famoso Viagra e a Bayer o Levitra. As disfunções sexuais masculinas merecem a preocupação de muitos. Ainda bem. Desprezo os homens em geral mas não lhes quero mal. Estranho é que pouco se fale das disfunções sexuais femininas. Parece que não existem. Nem as próprias mulheres se preocupam com tal assunto. Para elas o sexo é sempre uma experiência maravilhosa, uma explosão de sensações espectaculares, onde o prazer lhes jorra do corpo, os orgasmos rebentam como petardos e boquinhas em flor, sensuais e jeitosinhas, soltam pequenos gemidos agradecidos. Ter sucesso na cama é requisito essencial para se ser moderna, desempoeirada, bem-sucedida. As mulheres falam de sexo como falam dos filhos, dos jantares de degustação em restaurantes da moda e das viagens que fazem às ilhas gregas. Tudo troféus que demonstram o bem-estar que atingiram na vida. Não há dor na penetração. Nunca há falta de desejo. Não há cansaço. Não há frustração. Não há obrigação. Nem humilhação. No sexo, como em tudo, as mulheres que aguentem.

2010/09/17

Christine

A mulher escancara uma boca vermelha na página 15 do Público, numa expressão caricatural que lhe alonga o rosto ao limite. Chama-se Cristine O´Donnel, é membro do Tea Party, admiradora da Sarah Palin e derrotou um congressista qualquer muito importante nas eleições primárias do Partido Republicano. O jornal explica, entre outras coisas, que a Christine tem a fundação de um grupo contra a masturbação no seu currículo de activista política. Ena, pensei eu, e recortei a notícia com a tesoura da cozinha.

2010/09/16

José

O meu avô materno chamava-se José. Apenas José. Não teve outro nome, apelido, alcunha, diminutivo, até se casar com a minha avó. Só se casou com ela quando a minha mãe veio estudar para a escola de enfermagem. A decência obrigou-o ao casamento. A filha que vinha estudar para Lisboa, resgatando a família da miséria do campo, merecia solidez familiar. A rapariga merecia a respeitabilidade que o casamento sempre traz.

A minha mãe e a tia Dé, lembro-me bem, tratavam-no muitas vezes por paizinho. Era impossível não gostar dele. Era um velho grande e desdentado. Aprendeu a ler sozinho, estudando nos manuais velhos das filhas, à luz pardacenta dos candeeiros de petróleo, exausto depois de um dia de trabalho. Um dia, elas chegaram de Lisboa e foram dar com ele, sentado na mesa da cozinha, junto das bilhas de água, muito concentrado, enchendo cadernos de folhas finas com uma caligrafia perfeita. Trovejava nessa tarde. As gotas, grossas, muito cheias, batiam nas vidraças da cozinha e transformavam-se nas letras cor de chuva que se soltavam do lápis de carvão do meu avô.

Gostava dos netos e nós gostávamos dele. Levava-nos muitas vezes a passear no campo. Se a aldeia já era um espaço único, uma rua inteirinha de casas rasteiras, para brincar em liberdade, cumprimentando as vizinhas, espreitando quintais, o campo aberto provocava em nós uma espécie de êxtase, sem fronteiras, sem limites, infindável como um deserto, misterioso como um labirinto. Atravessávamos a linha dos caminhos-de-ferro que marcava o fim da aldeia (era o fim e não se confundia com o princípio); subíamos ao monte do moinho, a aldeia ficava lá em baixo, muito pequenina, uma mancha indistinta, o depósito da água pairando como um óvni sobre sobreiros e azinheiras; caminhávamos por veredas e caminhos que só o meu avô conhecia, revelando-nos um mundo secreto e imaculado. Mexíamos nas folhas todas, nos bichos todos, cheirávamos cada flor, cada bolota. Foi num desses passeios, um passeio de Outono para apanhar cogumelos, que, sem saber, ao soltar a sua gargalhada desdentada, o meu avô mostrou que a felicidade não precisa de grande sofisticação. De nenhuma.

O meu avô tinha um porte distinto apesar de ser um simples carpinteiro de aldeia. Nunca foi ao cinema, nem ao teatro. Nunca leu um jornal. Entretinha-se a tomar conta da horta e das capoeiras. Gostava de jogar às cartas na taberna. Era um homem amável e bondoso e, do muito que recordo, toda a gente gostava dele. Só a minha avó parecia não o achar merecedor de tanto afecto. Isso incomodava-me. Tratava-o com ressentimento. Era brusca. Biliosa. Faiscava-lhe os olhos pequeninos. Cumpria as suas obrigações conjugais: tratava-lhe da roupa, dava-lhe almoço e jantar, mantinha a casa asseada, o chão encerado, a cozinha limpa, andorinhas de plástico esvoaçando no corredor. Fazia-lhe até migas para o lanche, enrolando num fio de gordura o pão duro, tornando, com paciência, os pedacinhos numa massa homogénea, dourada e perfumada. Tratava do meu avô, é certo, mas era por obrigação, revoltada com qualquer coisa que lhe pesava no corpo e que nunca contou. Atirava-lhe o prato das migas para a frente como se fosse um cão. Ele sentava-se à mesa e comia em silêncio, moendo para dentro, porventura, culpas e remorsos. Eu observava o desdém da minha avó e não encontrava justificações para aquele comportamento. Achava-a medonha, má. Era uma velha, mas parecia um lacrau. Se se olhasse com atenção, e eu olhava-a!, podia-se ver as garras que lhe saiam da boca. Os olhos não enganavam ninguém. Eram olhos de lacrau.

Até que o meu avô morreu. Durante o funeral, reparei que a minha avó o chorou, amparada nos braços da prima Laura, desesperada. Lembro-me de lhe estranhar a reacção. Se não gostava dele, e tudo nela mostrava um ódio latente, reprimido, por que o chorava, por que não sorria de alívio? Durante muito tempo achei que a minha avó só chorou a morte do meu avô por obrigação, encenando dor e tristeza no cortejo fúnebre. Como no resto, como toda a gente, ela limitava-se a cumprir o seu papel de esposa amantíssima, ensaiando os gestos que dela se esperavam.

Depois da morte do meu avô, passou a vestir-se de preto, sapatos, meios, bata, lenço, cada vez se parecendo mais com um insecto gigante. Deixou, contudo, de parecer um lacrau. Parecia uma borboletinha negra, desamparada, frágil, sempre à janela, sempre só. Passou a falar muitas vezes do meu avô. Com saudade. Convenço-me, cada vez mais, da genuidade dos seus sentimentos. Acho que a minha avó só passou a amar o meu avô depois da morte. É muito fácil amar um morto. Um morto nunca nos magoa, nunca nos bate, jamais nos desilude.

2010/09/11

A vendedora de figos

Na rua mais feia da cidade, na sombra cor de ferrugem de um castanheiro das índias, uma velhinha vende figos. Trá-los num alguidar cor-de-rosa forrado com folhas perfumadas de figueira. A velhinha, quieta com o seu alguidar de figos, no ramerrame da rua mais feia da cidade, é uma imagem de inesperada beleza. Provoca a quem por ali passa, a princípio, estranheza, depois, curiosidade, por fim, conforto. Aproximo-me. Espreito para dentro do alguidar. Os figos maduros parecem passarinhos com lágrimas de doçura, escorrendo-lhes do bico. Peço-lhe um quilo e esclareço que não quero figos amassados. A proximidade mostra-me as feições da velhinha. Tem um rosto quadrangular, de nariz largo, bochechas caídas, lábios finos. Devia ser feia em nova. A velhice amaciou-lhe a feiura, a masculinidade dos traços, porém, mantém-se. Tem olhos tristes. Veste uma bata de flores, os pés de dedos encavalitados repousam, inchados, numas sandálias ortopédicas. Começa a tirar os meus figos para um saco. Escolhe-os com vagar, pegando-lhes com mestria, ensaiando com as mãos uma dança de movimentos precisos. As suas mãos parecem as de um mágico. Sabem como se movimentam as mãos dos mágicos, separando os dedos, rodando no vazio, parecendo não tocar os objectos? As mãos da velhinha são assim. Soubesse eu pintar e pintá-la-ia com pinceladas largas de cores intensas.

A velhinha porém não dá conta da sua singularidade e, sobretudo, não percebe a perfeição que o silêncio proporciona. Fala. Queixa-se de três ciganas que descansam ali perto. Olho-as. Também elas aproveitaram a sombra do castanheiro das índias para repousar da sua jornada de mendicidade. A velhinha conta que, desde que ali se instalou, as mulheres ciganas não a largam. Rondam o alguidar dos figos, com olhares gulosos, agitam o copo de plástico, pronunciam sempre as mesmas palavras: fome, filhos, deus. Olham as moedas que guarda no bolso da bata. As ciganas parecem hienas, querem rilhar-lhe os ossos, comer-lhe a carne dura, velha e seca. Escuto-a em silêncio. Contrariada. Não quero saber das ciganas, vestidas de trapos, lenços à cabeça, uma carapaça de sujidade na planta dos pés descalços. Não quero saber das ciganas, manchadas de miséria que arreganham as suas bocas hediondas de dentes podres e carregam crianças de colo que choram a sua solidão. Quero levar para casa apenas a imagem dela, da velhinha com o seu alguidar de figos, perfumando a rua mais feia da cidade.

(Quando, pela tardinha, cheguei a casa, coloquei o saco dos figos em cima da balança. Não por desconfiança. O prato da balança pareceu-me apenas um sítio seguro para proteger os figos do Joaquim que insiste em tocar tudo o que é desconhecido. Foi, então, que percebi que a velhinha dos figos me roubou. Descaradamente, enquanto se queixava das ciganas, das malandras das ciganas, é tudo uma ladroagem, dizia ela, entregou-me apenas oitocentos gramas de figos. Roubou-me a velhinha, a puta da velha.)

JL

Nunca compro o JL. Aborrece-me. Dedico a minha embirração mensal à revista Ler e aos textos de alguns dos seus cronistas. Esta manhã, porém, quando vi o JL pendurado por baixo da fiada dos jornais desportivos, não lhe resisti. Será, não duvido, interessante o artigo sobre a Clarice Lispector e reveladora a entrevista da ministra, sorridente, educada, disponível. Sempre enrolada nos seus lenços de cachemira. No entanto, foi a fotografia do José Eduardo Agualusa, na capa, que me levou a comprar o JL. A pose, vê-se, é ensaiada. O olhar é deliberadamente duro. Revela certo desdém. Os braços cruzados, tensos, grossos, mostram que a literatura é uma opção. Se quisesse poderia dar um pontapé nos romances e explorar o corpo. Trabalhar nas obras. Acarretar baldes de cimento. Assentar tijolo. Encontrar poesia nos andaimes e nas gruas. Qualquer coisa do tipo. Só deus sabe o quanto me embaraça fazer o papel da trintona desiludida, que se entusiasma com o que não existe. Antes o papel da suicida crónica. O desespero da tristeza pelo menos é um sentimento selecto. Exige sofisticação. Não é para todos. Já a felicidade é um sentimento pobre. Tem mesmo, parece-me, qualquer coisa de ordinário. Está ao alcance de toda a gente. Toda a gente é bestialmente feliz. Toda a gente vive num anúncio de telemóvel. Não conheço gente infeliz. Enfim, como dizia, aborrece-me ser um estereótipo de estafada banalidade, mas tenho de reconhecer aquilo que é óbvio: o José Eduardo Agualusa é giro que se farta. Até a minha frigidez, inquilina do meu corpo há tanto tempo, já bolorenta, bafienta, se encolhe quando o homem aparece. Uma mulher quer estar deprimida, deixar-se engolir pelo desespero, ser levada pela soturnidade - inesperada, mas bonita – deste Outono precoce, e não consegue…

2010/09/05

Ceuta

Cheguei com o propósito de engolir todos os comprimidos que a minha mãe guarda no armário dos medicamentos. Escrevi até a nota de despedida. Tão tola e desesperada. Começa assim, Ele disse outra vez que não sai de casa. Quando lhe peço para o fazer, ele deita-se no sofá, de comando na mão e diz não ter paciência para os meus devaneios. Sou a louca, a instável, a marginal, aquela que não é capaz de enterrar os seus sentimento em prol da felicidade conjugal, da harmonia familiar. Depois de escrever a nota, ri-me dela e deambulei pelo apartamento dos meus pais. Sou tão feliz aqui. Chorei ao olhar as fotografias dos meus filhos: João, Madalena, Joaquim. Depois, soluçando sempre muito, preparei o meu túmulo. Fechei os estores do quarto dos meus pais e pensei Quero morrer na cama deles, o lugar mais confortável do mundo, na cama de pau preto, que veio de Moçambique, num contentor.. . Fiquei no escuro, com a minha dose letal na mão, olhando o relógio electrónico e lembrado os comprimidos para impotência sexual, encontrados, era eu tão pequena, na gaveta da cómoda, mesmo por baixo da roupa interior do meu pai. Amo o meu pai como se fosse uma mendiga. Peço-lhe amor como se pede uma esmola. É um modo tão errado de amar alguém. Andei pelo apartamento, como num labirinto, apalpando paredes, cheirando tecidos, olhando as minhas fotografias de criança, tão bonita, morena, de sorriso transparente, a minha mãe, muito magra e esguia, amparando-me na Lagoa de Santo André. O futura à minha espera. Gosto do Alentejo e das minhas velhas de lenço na cabeça. Estive nisto, revisitando a minha vida, os meus fracassos, os meus amores, para dela me despedir, quando dei de caras, na vitrina iluminada da cozinha, com o serviço de café que a minha mãe comprou em Ceuta. Seis chávenas de loiça ordinária. Não têm selo, nem carimbo de fábrica. Mas são de um azul nocturno, muito intenso e fresco. São tão bonitas. Amo-as, mais do que a muitas pessoas, desde os meus treze anos. Imaginei até uma história – chama-se Quinta-Feira- sobre estes serviço de café. Decido ficar. Não pelos meus filhos, nem pelos meus pais, nem pela vida, tão linda e insuportável, mas pelo serviço de café que a minha mãe trouxe de Ceuta.

2010/09/04

Léna

Chorei do princípio ao fim. Nunca poupei os meus filhos ao meu sofrimento. Partilho com eles, para horror de muitos, a solidão e a angústia.

Fissura Anal

É cedo. O sol espalha sobre a estação uma claridade da cor da clara do ovo. Duas mulheres conversam. A mais velha, uma negra cheia de pulseiras que chocalham, explica as razões do mau feitio do seu marido. A voz delicada e as unhas pintadas de rosa chá dão-lhe um ar cuidado, quase requintado. Sabes, é que lhe custa muito evacuar, diz, referindo-se ao marido. A outra mulher, magra, tisnada do sol, um pouco ordinária no seu macacão lilás de malha de algodão, ligeiramente borbotado, escuta-a em silêncio. Não é fácil, logo pela manhã, apanhar com confidências daquelas. Os padecimentos do canal anal, as ralações obstipantes, a incapacidade de relaxamento do esfíncter alheio, são assuntos melindrosos. Revelam a nossa natureza mais primitiva. São assuntos que, a todo o custo, se devem evitar em conversas sociais. Mas a negra é muito segura de si própria. O tema não a embaraça. Depois grita comigo. Não imaginas a gritaria de ontem só porque lhe disse para por vaselina antes de ir à casa de banho. Chamou-me tudo. E continua por aí fora, desvalorizando o mau feitio do marido, as injúrias, os palavrões, o rosto carregado e furibundo. Está nisto muito tempo. Elenca as características das fezes do marido com uma lucidez médica, de escatologista experiente, encartada. São fezes duras, empedernidas, de cor baça por estarem tanto tempo na ampola rectal. A mulher branca vai concordando com a cabeça. Eu sei como é…Também tive hemorróidas quando a minha filha nasceu, atreve-se, por fim, a dizer com um fiozinho de voz. A negra das pulseiras fuzila-a com os olhos. Por breves instantes, perde a compostura. Não lhe admite tal comparação. Ele não tem hemorróidas. O que ele tem, coitado, é uma fissura anal crónica. Olha para a outra com superioridade e dá uma gargalhadinha forçada, agradecida por o marido a poupar ao constrangimento daquela palavra. Uma fissura anal é um padecimento razoável, uma justificação boa para o desprezo que o marido lhe dedica, para o fracasso da sua vida conjugal.

2010/08/26

Shirley Jackson


É o melhor livro que li nos últimos tempos.

Egoísta

Saiu a Egoísta de verão. Traz a minha Alzira, livre dentro de uma capoeira.

Orinas

Vem ao meu lado no comboio. Tem as unhas pintadas de beringela, óculos rectangulares de massa e uma verruga com três pêlos ruços por cima do lábio. Olha as hortas e os bairros de Chelas com desinteresse. Em Marvila desperta-lhe o besouro e põe-se a falar com outra mulher. Estou tão mal, Sara! O ar condicionado deixa-me a orina entupida! explica, desesperada. Funga ruidosamente para que a tal Sara, que está do outro lado da linha, perceba que é verdade o que diz. A outra estranha a zona de entupimento. As orinas, as orinas! Então tu não sabes o que são as orinas, filha? e empertiga-se no seu lugar, aconchegando os óculos rectangulares de massa aos olhos. Olha em redor. Procura apoio na sua indignação. Dou-lha que sou pessoa infinitamente generosa. Onde já se viu não se saber o que é uma orina? Espreito-a pelo canto do olho. Já não a largo. Continuo com o livro aberto só para disfarçar. A mulher continua a conversar. Fala de um modo extraordinário. É incapaz de terminar uma frase de estrutura mais complexa e utiliza com frequência, para designar objectos, pessoas, sentimentos, a palavra “coisa”. Encolhe-se quando o assunto é mais delicado. É uma dessas pessoas cuja aparência de insignificância nos ilude porque provam a diferença entre invisibilidade e inexistência. Há pessoas que são tão insignificantes que se tornam singulares e, por isso, visíveis. Saio na minha paragem, triste por a deixar. A estação está deserta e o bafo quente da tarde envolve os passageiros. Rouba-lhes a pressa de chegar a casa. Um homem vem com o corpo alagartado. Deixa-se ficar para trás. Os membros estão recamados de escamas e placas calcárias. Quando abre a boca, mostra uma língua bífida, aninhada em serpentina. Desvio o olhar no preciso instante em que o homem lança a língua para caçar uma varejeira que descansa na onda de um grafiti. É um exibicionista e eu não gosto de exibicionistas. Aborrecem-me. Fico na plataforma a olhar o comboio que leva para longe a mulher das orinas entupidas.

2010/08/25

Superstition

Pirolito

Depois de estivador o meu filho mais velho quer ser agente da polícia judiciária. Agente e não inspector, esclarece enquanto limpa a loiça que lhe passo para as mãos. Não quer que me assuste a imaginá-lo numa faculdade de direito. Ela sabe que a mãe, débil, não resistiria a tamanho desgosto na vida. Deve ser triste, profundamente desolador, traumático mesmo, ter um filho que quer ser advogado ou gestor ou coisa que o valha. O João, talvez influenciado pelo criminoso de Carqueja, confessa, porém, que o amedronta a possibilidade de ser perseguido por um psicopata. Tenho medo mãe, e dá-me um abraço pateta em busca de consolo enquanto limpo, freneticamente, com um escovilhão azul petróleo, os biberões do Joaquim. Quer que a pobre mãe, lacrimosa, cujas entranhas lhe serviram de primeira morada, se compadeça com o seu trágico destino: agente da polícia judiciária perseguido por um qualquer maníaco da margem sul. Ou de Barcarena. Ou de Massamá. Ou de Camarate (em Camarate há um que eu já o vi, entre couves galegas e alfaces, piscando os olhos a uma fiada de bonecas empaladas). Termino o que estou a fazer e estilhaço o seu futuro de sofrimento e perseguição. Explico-lhe, olhando-o nos olhos, que não tem nada a recear. A psicopatia, por razões que não domino, é coisa de homens e os homens, toda a gente sabe, são muito merdosos e cobardes. Está-lhes na massa do sangue. Não valem um pirolito. Os psicopatas só gostam de matar mulheres, homossexuais e criancinhas. Ele escuta calado enquanto eu continuo por aí fora, animada com aquela oportunidade, não esperada, de poder insultar gratuitamente o género masculino. És louca, mãe, já te devias ter divorciado há muito tempo, diz-me por fim e sai da cozinha muito mais aliviado.

Gaston

Tenho uma embirração grande ao Caetano Veloso, ao Tiago Rodrigues (odeio-o) e ao André Vilas Boas. É um sentimento incontrolável que não consigo racionalizar. Fica nauseada só de os ver. Em contrapartida, aprecio muito o estilo do Gaston Lagaffe.

Abel

Um Abel qualquer coisa, especialista em saúde mental, escreve hoje no Público sobre a falta de candidatos presidenciais à direita. Está preocupado. A esquerda já tem quatro candidatos e, à direita, até ver, apenas se coloca a hipótese da recandidatura do actual presidente. Aquilo que à primeira vista poderia parecer uma vantagem para a direita, a proliferação de candidaturas de esquerda divide o eleitorado e torna certa a eleição de Cavaco, tem um travo amargo para o especialista em saúde mental, o tal Abel. Explica que, como muitos outros que integram a “ala católica”, não se revê nas atitudes e opções de Cavaco Silva. Quer uma alternativa que elucide e represente os valores e ideias da franja organizada da sociedade civil a que pertence: a ala católica. E propõe nomes: Ribeiro e Castro, Bagão Félix e Santana Lopes. Li a opinião do Abel pela manhã e passei o dia a pensar naquilo. Nem sei bem porquê. Tanta coisa importante em que reflectir e eu encalhada nas linhas escritas pelo Abel.

Não espanta que a ala católica se reveja em Bagão Félix e admita a candidatura de Santana Lopes. O primeiro gosta de botânica. É benfiquista e católico. Inteligente, argumenta com seriedade, sem sarcasmo ou cinismo. É difícil, mesmo para os que discordam das suas opiniões, não o respeitar. O segundo, não sendo um católico virtuoso, tem peso político e, sempre que pode, critica o actual presidente. O que me faz confusão é que a ala católica vá buscar um nome como Ribeiro e Castro. Dá vontade de soltar um palavrão. Não passa pela cabeça de ninguém. O estado da direita portuguesa é preocupante quando para candidato à presidência da república se aponta um nome como Ribeiro e Castro.

2010/08/16

Noite

Custam-me as noites. Mais que o resto.

Agosto

Sento-me de pernas cruzadas na cama, bebendo o chá muito devagar e olhando as fotografias dos miúdos. O João sopra bolas de sabão. A Madalena, de amarelo, foge. Deito-me atravessada na cama. É a minha posição preferida. Os pés ficam de fora e eu, tão pequena, sinto-me maior. Fecho os olhos para que a dor passe. Procuro lembrar os sonhos dos dias anteriores. Primeiro sonho: estou em Maputo e rodo a cidade num carro. Os prédios são altos, estão pintados de branco. Há roupa colorida nos estendais. A cidade não é a cidade. Tem lagoas nos arrabaldes. Parecem tanques gigantes esculpidos na rocha. Dois meninos mergulham e os seus corpos desaparecem na água que é verde e amarela. Árvores gigantes largam flores vermelhas pelo chão. O lento leva-as para longe. Olho as lagoas na companhia dos meus irmãos. Quero mergulhar, digo. Eles riem. Segundo sonho: estou nas escadas rolantes de um centro comercial. O Nicolau Brayner espera por mim no piso de baixo, junto de uma loja de mercearias finas. Olho a montra, onde frascos de ovas rivalizam atenções com garrafas de vinho italianas. Alguém nos persegue. Quem será? Fugimos. Eu vou dar a uma casa de madeira na falésia. O mar é tão escuro e bonito, lá em baixo. Estou nisto durante muito tempo. A reconstituir sonhos como quem reconstitui cenas de crimes. Enquanto resonho os meus sonhos, levo as mãos ao nariz. Cheiram a cebola e a alhos. Adormeço com o barulho de uma explosão pequenina. Durmo a noite toda. Tenho um sono descansado que é coisa que nunca tenho. Nem com os comprimidos cor-de-rosa que a minha mãe me dá. Triticut. Tritifur. Triticon. Tritiqualquer coisa. Acordo com a voz do António Macedo. Levanto-me assustada. Sinto-me inesperadamente leve. Reparo então que tenha um buraco no torso. Estou vazia por dentro. Oca. Faltam-me vários órgãos. Estranho a ausência de dor e a calma de me ver assim. Olho em volta. Descubro os meus órgãos espalhados pelo quarto. Recolho os meus pedaços de corpo. Vasculho os cantos e as sombras. O coração está por baixo da cama, esquecido entre dois pares de sapatos velhos. Ainda bate. Encaixo-o dentro de mim. Suturo-me com a linha que utilizo para apertar os rolos de carne.

Agosto 2007

Geater Davis- A sad shade of blue

2010/07/19

Cuba

A notícia tem sido dada com a discrição que as coisas que respeitam ao regime cubano sempre merecem no nosso país. A gente lê as notícias que vão aparecendo, aqui, ali, e sente que quem as escreve o faz contrariado. Os factos são relatados com uma secura que não é habitual. Quem escreve não faz dos homens que chegaram a Espanha heróis nem das mães, mulheres, filhas, que desfilam de branco em Havana, heroínas. Quem escreve não se interessa pelo seu sofrimento, nem simpatiza com a sua causa. Tudo na vida é relativo e os atentados à liberdade só devem ser apontados para promover certas causas. Não se utiliza a adjectivação. É raro explicar-se, preto no branco, as razões pelas quais estes homens foram presos. Os factos são relatados de raspão, sem merecer grande desenvolvimento ou comentário, até porque a Igreja Católica desempenhou um papel fundamental na negociação e a igreja não merece respeito ou apreço (às vezes, reconheço, merece muito pouco). As notícias abordam, por outro lado, a entrevista que Fidel Castro, entretanto, deu. Quase sempre, ao falar de Fidel, os jornalistas falam da sua coerência. Nem outra coisa se esperava. A coerência, em princípio, é uma qualidade. É bom ser coerente. Mas a coerência não é uma virtude que valha por si só. É profundamente desonesto dizer-se que Fidel é coerente. Quem, durante décadas, silencia um país, não é coerente. É déspota, autoritário, manipulador.

Violante (3)

Também Violante encontrava a graça divina no nascimento daquelas crianças e, antes de completarem três meses, levava-os à igreja para serem baptizados. O padre de S. Teotónio era um homem tristonho e apagado. Trazia os cantos da boca sempre caídos. Não era dado a conversas, não fizera amigos na aldeia, escondia os olhos atrás de uns óculos que pareciam permanentemente embaciados. Passava o tempo livre na alameda de álamos que ficava ao lado da igreja, caminhando de cá para lá e de lá para cá. Dormitava muito. Corria o rumor que tinha pouca fé. Assim era. A fé fora-o abandonando ao longo da vida. Fugira-lhe pelos orifícios do corpo. Chegara aos cinquenta anos com mais dúvidas que certezas. Sabia que tinha obrigação de deixar o sacerdócio, tornar-se um homem comum, procurar um emprego, arranjar uma mulher. Fosse ele um homem íntegro e havia de assumir as suas ideias, cumprir o seu destino. Mas, aos cinquenta anos, sem família, sem habilitações para exercer um ofício, o corpo adormecido e aquela cara de carneiro mal morto, olhos molengões, beiçolas estendidas, que podia fazer? A coerência enobrece os corajosos, e ele, sabia-o bem, era cobarde. E, depois, estava tão habituado às guloseimas que as devotas lhe ofereciam por altura da Páscoa. Travessas de arroz doce, garrafinhas de licor de poejo, bolos de amêndoa sarapintados de passas de uva inchadas em aguardente. Uma delícia! Deixava-se andar. Dizia a missa, sem entusiasmo, mas com eficiência. Dava catequese aos sábados de manhã. Organizava a quermesse por altura da festa da paróquia. Era sempre brando na penitência. Por maior que fosse o pecado confessado. Não exigia muito aos habitantes de S. Teotónio e estes, de volta, não exigiam muito ao padre. Havia um equilíbrio perfeito no sinalagma daquela relação. Aquela mar morno de inércia e preguiça só era sacudido quando Violante lhe trazia um menino para baptizar. Despertava, então, daquela letargia e também ele se embevecia a admirar a beleza inocente daquelas crianças. Perdia o ar molengão, os cantos da boca, tão pingões, arrimavam, até a sotaina preta lhe assentava melhor. Consolava-o, de forma que lhe custava a explicar, livrar do pecado original criaturas tão deliciosas. Tão perfeitos, com os seus corpos cheios e firmes, pareciam pintados por mestres renascentistas. Não se cansava de os elogiar à mãe. Violante sorria, acanhada. Depois de os aspergir de água benta e de lhes deixar as nucas peganhentas com os óleos sagrados, reacendia-se no peito do padre uma acendalha de fé. Aqueles meninos aureolados, de tal perfeição e enlevo, filhos daqueles pais, humildes, tão rudes e feiosos, só podiam ser um sinal da existência de Deus. A sua beleza, de tal modo intensa, provava a transcendência do divino. Durante algum tempo, o padre era abandonado pelas dúvidas habituais e as suas palavras tornavam-se vivas. Às vezes, sorria durante as homilias e, uma vez ou outra, atrás do púlpito, um entusiasmo breve fazia-o erguer as mãos. Pouco a pouco, tudo voltava ao normal. Quando os habitantes da aldeia o viam passear muito calado na alameda de álamos sabiam que a tristeza e a melancolia se instalara de novo no seu coração e que as homilias ditas de forma arrastada, aborrecidas, voltariam em breve.

2010/07/09

Deus

Vou-te amar como Deus. Não, não. Deus não sente prazer, nem movimento progressivo até ao prazer, coitado, é tão infeliz.

Vergílio Ferreira, Em nome da terra.

(É bom saber que Deus é como eu. Fico mais conformada por ter, na angústia e na ausência, uma companhia deste calibre.)

Ema

(tutto cambierà per sempre.)

2010/07/06

Violante (2)

Violante, era isso que causava espanto, tinha filhos que pareciam anjos. É certo que nem as cicatrizes se herdam, nem as corcundas se legam, nem a zarolhice adquirida por acidente é característica física comparável às covinhas no rosto, aos pómulos salientes, à cor do cabelo, ao formato das mãos, ao recorte dos lábios. Um olho vesgo não integra, em definitivo, a herança genética que uma mãe transmite aos seus filhos. Violante, sem a vista vazada, o corpo marcado, era uma mulher simplesmente feia. Porém, coisa estranha, dava à luz crianças de uma beleza desconcertante. Os meninos nasciam grandes, muito grandes, perfeitinhos, graças a Deus, assim se dizia, compostos, sem vermelhões, sem pregas, nem rugas, o rosto liso e inocente, bochechinhas rosadas, os olhos claros, umas vezes verdes, outras azuis, a cabeça cheia de caracóis dourados, mais lindos do que uma manhã de sol. Nunca cheiravam a leite azedo, não bolçavam, o couro cabeludo não se lhes estalava em escamas oleosas e amareladas. Comiam e dormiam bem. Vinham com um cheiro fresco de água-de-colónia que se prolongava durante os primeiros anos de vida. Sorriam muito. Violante teve dez filhos e todos, sem excepção, foram como acima se explicou: extraordinariamente belos, intensamente loiros, surpreendentes na sua estatura e fisionomia. Era um caso que espantava a todos e dava ocupação às línguas mais azedas da aldeia. Quando lhe nasceu o primeiro filho logo houve quem desconfiasse da sua fidelidade. Vesga, tão mal amanhada, casada com um pobre coitado, por sinal feiíssimo, como podia Violante dar à luz uma criança de cachos loiros, com a pele pálida, acetinada, macia, os olhos muito azuis, claros, a fazer lembrar a abóbada celeste nas noites de verão? O filho não podia ser do marido! Mas de quem seria? Os habitantes da aldeia eram morenos, cabelos e olhos escuros, feições duras. Mais do que a herança mediterrânica, havia neles o traço embaraçoso dos distantes ascendentes magrebinos que, por preconceito e ignorância, desdenhavam. Só o filho do dono da farmácia, que se casara em Lisboa com uma senhora minhota, era loiro e penugento. O rapaz fora educado num colégio em Viana do Castelo e chegara pouco antes da primeira gravidez de Violante. Gostava de pombos, passava o tempo entretido a anilhar as aves e a alisar-lhes a plumagem. Não olhava para as raparigas. Pareceu, por isso, impossível aos habitantes de S. Teotónio que um rapaz assim, ainda imberbe, pudesse tomar aquela mulher, de mãos gretadas e secas, tão simples e feia. A hipótese da criança ser neto do farmacêutico foi afastada. Até porque, é bom esclarecê-lo, nem sempre a gente loira é bonita. Está o mundo cheio de estafermos loiros! Ora, os filhos de Violante eram loiros e, de forma assombrosa, belos. O filho do farmacêutico era só loiro. Adiante. Quando nasceu a Violante o segundo filho, uma menina, ainda mais bela que o primeiro, o cabelo de um loiro quase branco, as mulheres de S. Teotónio, esbugalharam os olhos e procuraram nova explicação. Talvez algum estranho, desses que, de quando em quando, ali chegavam nas suas camionetas de carga, a caminho de outro lugar qualquer, a tivesse posto prenha. Talvez se tratasse de um homem luminoso, extraordinário, abnegado. Logo abandonaram tal hipótese. Ninguém se lembrava de ter chegado a S. Teotónio homem de tais aptidões físicas. Mas mesmo que tivesse chegado e trouxesse os testículos cheiinhos, já doridos e marmoreados, a glande entupida, mesmo que ansiasse de forma desesperada pelo seu rápido esvaziamento, nunca tal homem procuraria Violante. Mal amanhada, como já se explicou. Ao terceiro filho, a aldeia deixou de procurar razões para aquela discrepância genética e aceitou com naturalidade a beleza dos meninos. Os mais crédulos passaram a falar de milagre. É sempre um método acertado para tornar claro, inquestionável, o que não se explica e não se compreende.

Violante (1)

Bem vistas as coisas não era mais feia do que as outras mulheres de S. Teotónio. Pequena, o corpo ligeiramente truncado, tinha a pele muito crestada do sol, desenhando aqui e ali fissuras como se de um deserto se tratasse. Usava o cabelo, escuro e crespo, apanhado num carrapito que prendia com dois ganchos de massa. Tinha um rosto redondo, os lábios eram finos, as narinas dilatadas davam-lhe um ar ligeiramente suíno. Maciça, mas ágil, movimentava-se com desenvoltura e certa graciosidade. Porém, era o olhar de Violante, assim lhe chamara a mãe, que a embrutecia e não lhe permitia a banalidade que sempre se atribui às mulheres comuns. Era o olhar que a tornava medonha e diferente. Lembrava-se bem. Devia ter uns dez anos e trepara a um marmeleiro para apanhar os frutos maduros que espreitavam no alto, muito redondos e amarelos. Estava toda esticada, prestes a agarrar o primeiro marmelo, quando um ladrar furioso, vindo de longe, se calhar do inferno, a assustou e a fez largar o tronco da árvore. Mergulhou num silvado. Saiu de lá como se tivesse sido açoitada por mil varas de vime. Ficou, para sempre, com o corpo marcado, cheia de pequenos aleijões e cicatrizes. Partiu uma vértebra discal. Foi nessa ocasião que um espinho lhe perfurou o globo ocular esquerdo. O espinho, curto, muito afiado, parecia um dente de tubarão, foi removido com mil cuidados por uma vizinha que tinha fama de curandeira. Violante não cegou. Continuava a ver da vista esquerda. Porém, como um balão de feira, preenchido apenas pelo vazio, o olho começou a esvaziar. Minguou, minguou, até ter o tamanho de uma ervilha. Ficou aquele olho pequenino solto na cova, muito laça e escura. Dando-se conta do nojo que causava, havia quem desviasse o olhar quando lhe falava, por precaução, passou a fechar a pálpebra. Só à noite, quando estava sozinha, a voltava a abrir para se abeirar do precipício e da fundura que se escondia no seu rosto. Com o tempo, porém, foi deixando de o fazer. Por fim, como uma gelosia fechada, que se encrava e não mais se abre, a pálpebra ficou perra, cada vez mais pesada, até se colar para sempre à linha inferior do olho.

2010/06/07

Cansaço

Perguntaram à Maria do Rosário Pedreira a razão pela qual não há novas escritoras. Ela explicou, mais coisa, menos coisa, que as mulheres, mais do que os homens, se dedicam à leitura. Têm, por isso, padrões de exigência literária elevados que não se compadecem com escritos medianos. Talvez seja assim. Encontro, porém, razões mais simples para a falta de jovens escritoras. As jovens mulheres são mães. A maternidade, que é um consolo, uma satisfação, tem corpo de sanguessuga, é um bicho hematófago que se alimenta de nós, chupa-nos o sangue e o resto. Ao fim do dia, quando adormece, a maternidade deixa apenas uma carcaça cansada. É verdade que os jovens escritores também são pais. Mas ser mãe é tão diferente de ser pai. A propósito do lançamento do seu último livro, a Filomena Marona Beja, nova escritora velha, explicou isso mesmo. Começou a escrever velha depois de se livrar do maravilhoso fardo da maternidade. Só quando os filhos se fizeram à vida e lhe largaram as saias pode dedicar-se à escrita. Quando lhe li a entrevista sosseguei. Vivo na expectativa de que me aconteça o mesmo. Hei-de escrever quando for velha e livre! Imagino muitas histórias. A história da pensão imperial. A história da promessa. A história do taxista angustiado. A história dos prédios do bairro camarário pintados de fresco. A história da sandes de salsichão enfiada no bolso do presidente da câmara. A história da mulher que comia gelados. Outras. São pequenas histórias, esquissos sem corpo, que flutuam na minha cabeça como fantasmas. Sei que poderia escrevê-las com competência, o que, nos tempos que correm, já não é mau. Não as escrevo porque à noite, quando finalmente a noite se alonga e o silêncio trepa as paredes do quarto, não resisto à exaustão. Fecho o interruptor e adormeço. Não é por cobardia que não há jovens escritoras. É por cansaço.

2010/06/06

Deolinda



(um contra o outro.)

2010/06/03

Ana

Ana abre a boca e diz: Amedrontam-me as horas tardias e tudo o que elas têm dentro. São intermináveis, espessas, as horas tardias. Nelas cabem muitos minutos e segundos. As horas tardias formam cassiopeias feias, cegas de escuridão. Trazem dentro delas mãos, sombras, vultos. Trazem a urgência dos outros. De quem me quer. Eu deixo que me queiram. Deixo que me tomem. Deixo que me toquem. Mas não sinto nada. Nunca senti nada. Não acredita?

Ana cala-se. Continua: Uma vez foi diferente. Nem sei bem o que foi. Ou como foi. Ou por que foi. Senti qualquer coisa. Regressava a casa. O comboio estava cheio. Os passageiros comprimiam-se, formando um corpo único. Uma amálgama de gente. Um homem tocou-me na perna. Com ligeireza e propósito. Senti um frémito. Um estremecimento. Uma poeira branca de luz pairou sobre mim. Depois, senti um carreiro de formigas subir pelas minhas pernas e tocar-me por dentro. O homem encostou-se. Deixei. Ficámos assim, imóveis, tocandomo-nos, durante alguns minutos. O homem saiu, por fim, em Massarelos. Levou as formigas consigo. Não sei para onde foram. Fugiram. Nunca mais voltaram. O meu desejo tem corpo de insecto pequenino e vive perdido em Massarelos. Não acha engraçado? Eu acho. Acho até muito engraçado. Fiquei só. Despida de mim.

Ana ri. Continua: As horas tardias não são sempre iguais. Por vezes, são violentas. Precipitam-se. Transformam-se em palavras arremesso. Cavalgam sem cabresto sobre mim. Outras vezes, são pacíficas. Quase mornas e confortáveis. Como um casaco velho de lã. Ou o cheiro da roupa lavada. Porquê? Porque quem me quer nada exige de mim. Não tenho de demonstrar afecto, nem interesse. Só tenho que estar ali. Disponível. Passo a ser um corpo que se consome por hábito. Quando as horas tardias são assim, mansas, consigo sair do meu corpo e ver-me. Vejo-me. Tenho sempre os olhos enxutos.

Calma

Hoje está muita calma, era assim que a minha avó Felicidade costumava dizer nos dias de muito calor. Estava habituada às palavras estranhas que, volta e meia, lhe saiam da boca: talego, galheta, caço, friginada, zorra, alcagoita. Porém, aquele hábito de chamar calma ao calor era coisa que me confundia. Hoje está muita calma, dizia ela, e aconchegava o lenço preto que trazia à cabeça. A minha avó é a única morta que me faz falta.

Nossa Senhora

Em frente da Igreja de Nossa Senhora de Fátima há uma loja de artigos religiosos. Vendem de tudo: recordações para a primeira comunhão, velas baptismais, livros de orações, bíblias, rosários, terços, imagens de santos, fotografias do papa, presépios. Nas vitrinas perfilam-se santos e santas, todos feitos em gesso, pintados à mão com cores mortiças. Há também nossas senhoras, pálidas, ligeiramente verdes, que brilham no escuro. A loja é de uma senhora velha que costuma sentar-se num banquinho perto de uns reposteiros de veludo azul. Abana-se com um leque para espantar o calor para a rua. Ao balcão, atendendo os poucos fregueses que entram na loja, fica a filha, solteira, feia, tímida e ligeiramente belfa. Alguém devia salvá-la.

2010/06/01

Filho

O meu filho mais velho tem da política uma visão simples. Os bons são muito bons. Os maus são terríveis. Não há cá meios-termos, não dá guarida à mediania que é a pior forma de mediocridade. Idolatra o Nelson Mandela. Odeia, visceralmente, o Salazar. Por mais que lhe falem do descalabro da primeira república e dos cofres cheios de ouro, o miúdo não encontra préstimo ou valor na ditadura. Muito pelo contrário. Faz muitas vezes a contabilidade dos mortos do Estado Novo e inclui sempre, para meu orgulho, os africanos que morreram na guerra colonial. Despreza o Sócrates, o José Eduardo dos Santos e o Hugo Chavez. Gosta do Obama. O meu marido que é meio de direita, conservador, revira-me os olhos quando o escuta chamar nomes ao Salazar. Eu não digo nada, mas acho que o João está no bom caminho. Pensa pela cabeça dele. Está longe de ser um protectorado da sua mãe. Por exemplo, por mais que falemos sobre o assunto, não concorda com casamentos entre pessoas do mesmo sexo e, do pouco que lhe expliquei sobre o conflito no médio oriente, não vai à baila com os israelitas. Desconfia deles. Ontem, à hora do jantar, enquanto abocanhava um pedaço de frango de fricassé, referindo-se ao ataque aos barcos turcos, disse mesmo que os israelitas deviam ser todos fuzilados. Nunca lhe imponho as minhas ideias ou opiniões, mas, desta vez, tenho de falar com ele. É certo que só tem onze anos, idade propícia a arrebatamentos ingénuos, mas custa-me muito vê-lo fazer análises e comentários ao nível dos que são feitos pela maior parte dos comentadores políticos portugueses.

2010/05/31

Tia Dé

A minha casa faz de biblioteca à tia Dé. Chega com um livro na mão. Entrega-mo em silêncio e, com passinhos de mulher velha, vai às estantes do corredor buscar outro. Nunca se alonga em considerações sobre o livro que devolve. Nunca justifica a opção pelo livro que leva. É uma troca silenciosa, sepulcral, quase secreta. Aprendi a gostar de ler com a minha tia. Herdei dela os gestos, a melancolia, a resignação. É um legado pesado para se deixar a uma sobrinha.

2010/05/23

Ma môme - Jean Ferrat



(a minha canção preferida.)

2010/05/19

Nigella

A Nigella Lawson cozinha pela mesma razão que eu corro. Percebi isso ontem quando a vi ter uma orgástica reacção enquanto comia um pilaf de frango. Não há nada como um bom sucedâneo.

Genoveva

Lembro-me bem do espanto que me causou o desenlace de “A Tragédia da Rua das Flores”. Tinha quinze anos e gostava me deitar no sofá verde da marquise a ler. O sofá atravessara o oceano dentro de um contentor e tinha um cheiro bafiento, ligeiramente adocicado, entranhado na entretela dos estofos. O sol entrava pelas vidraças. A casa estava em silêncio. Acabei de ler o livro e tive uma espécie de epifania. Uma mãe que, sem saber, por um acaso do destino, se apaixona pelo filho, que julga morto, e com ele vive um amor ardente, carnal e, depois, moída pela vergonha, se atira de um terceiro andar, pareceu-me uma trama notável. O máximo do atrevimento literário. Durante a adolescência li outros livros do Eça. Mais tarde, ganhei o costume de os ler nos intervalos de novas leituras. Volto, porém, sempre à Tragédia da Rua das Flores. Não há amor como o primeiro. Conheço as personagens melhor do que a palma das minhas mãos. A ira do tio Timóteo, as facécias do Dâmaso gordalhufo, impante, as intrigas de Mélanie, a inglesa, feia, seca, rancorosa, feiinha. Porém, nenhuma das personagens seduz como Genoveva. Genoveva é a mulher feita pecado. A primazia da beleza sobre o resto. É a mulher sem pudor, a cortesã, a concubina, a amante, faz do corpo mercadoria, mas com que sofisticação! É uma prostituta e o leitor nem dá por isso. A primeira vez que li o livro fiquei com a sensação de que Genoveva, que me causava repulsa e admiração, era uma mulher sábia e velha. Magnifica, bela, lasciva, desejada, mas, ainda assim, velha. Pois se tinha um filho com idade para com ela dormir! Tinha de ser velha. Hoje, no cabeleireiro, enquanto a menina Alice me arrepelava os cabelos e pela janela aberta chegava o ruído triste da avenida, lendo o livro, dei conta que estou prestes a chegar à idade de Genoveva. Trinta e nove. Porém, ao contrário dela que, se olhando ao espelho, garante que, com muito água fria e paz de espírito, será bela até aos quarenta e cinco, estou um caco. Nem os repelões esforçados da menina Alice me salvam. Perdi há muito o viço.

Inês

Folheei o novo livro da Inês Pedrosa e logo um vómito atrevido me galgou o esófago e se assomou à boca. Estava a livraria cheia de senhoras que procuravam livros sobre vampiros, quando fechei o livro com brusquidão e um “foda-se” quase inaudível se escapou da minha boca. À conta das competências literárias da Inês Pedrosa, uma mulher, gorda como um barril, dois olhitos encovados num rosto simiesco, ficou a olhar-me de esguelha e a abanar a cabeça cheia de nuances. Fugi da livraria e fui enfiar-me na tabacaria a folhear revistas de mulheres nuas. Esclareço. Tenho apreço pela Inês Pedrosa. Acho-a inteligente. Aprecio-lhe os repentes feministas. Invejo-lhe a cultura literária. É livre no que diz e nas crónicas que escreve. Como escritora, porém, até me custa dizê-lo, não vale um caracol.


(cada vez dou mais crédito às críticas literárias da revista Ler.)

2010/05/17

Pombas

Há sempre pombas na plataforma. Em mim, a vontade de as pontapear. Estivesse eu sozinha na plataforma e não hesitaria. Havia de me esforçar, apurar o golpe, trabalhar a rapidez do gesto, tornar-me numa espécie de guerreira de shaolin, ou coisa que o valha, absorta e confiante. Havia de alcançar o meu objectivo e, por fim, arremessar uma pomba contra a grelha de metal gigante que serve de pavoroso ornamento à estação e que desfoca os homens que, pela tarde, se encontram no descampado da feira popular.

2010/05/12

Lata Mangeshkar


Leitores

Chega um rapaz à estação. Veste um fato escuro e traz pelos ombros uma gabardine cor de camelo. Senta-se num banco. Abre, com acanhamento, uma mala de mão. Tira um estojo de pele que parece uma agenda de secretária ou um enorme estojo de manicura. Não é. É um livro. Olho com estranheza o rapaz e o seu livro. Não gosto de livros electrónicos. Não por os achar anódinos, insonsos, não palpáveis, desinteressantes. Há malucos para tudo e gostos não se discutem. O que me amofina nos livros electrónicos é que apagam todos os sinais que um livro pode dar sobre o seu leitor. E isso é terrível. Impedem-nos de avaliar, rotular, etiquetar os desconhecidos com quem nos cruzamos. Estilhaçam qualquer possibilidade de relacionamento. Ao contrário do que por aí se diz, as pessoas avaliam-se pelo modo como se vestem, pelo modo como se penteiam, pelo modo como comem, falam e também, sobretudo, pelos livros que lêem. Um estafermo, gordo, transpirado, sapatos descambados, o rego do rabo espreitando por cima do cós das calças de ganga, torna-se um encanto, uma autêntica estampa, se tiver em mãos o livro certo. Por exemplo, o último do Mário de Carvalho. Já um rapaz catita, bem apessoado, comedidamente adamado (estão por todo o lado os modernos homens adamados!), de dentes perfeitinhos, derme limpa, barba rala, pode tornar-se um pavoroso mastodonte se tiver nas mãos um romance histórico da Isabel Stilwell. Os leitores lêem-se como se lê um livro. O problema dos leitores de livros electrónicos é que são ilegíveis. Uma pessoa olha para um LLE e sente-se defraudada. O rapaz da estação, com o seu estojo de manicura no regaço, fez-me lembrar as senhoras que encontro no comboio e que forram os livros do Nicholas Sparks para não se sujarem. Ele, como elas, são leitores, o que já não é mau, mas são leitores um bocado foleiros.

Domingo

Domingo. Subo a serra até ao Catujal. A luz da manhã é aguada, triste, cinzenta. Uma névoa cobre tudo, tornando o ar baço e disformes as sombras. No banco de trás, a minha filha dormita. Usa um fato de treino azul, por baixo, um mailot cravejado de estrelas brilhantes. Um homem corre à chuva com um impermeável amarelo. Desce a serra até à beira-rio onde os bairros concertados têm alamedas floridas e ciclovias de macadame vermelho. Aqui, as casas clandestinas nascem aos borbotões, sem ordem, tino, harmonia. Têm vista paro o rio. As paragens da camioneta estão cheias de gente apesar de ser quase madrugada. Ali, um homem de turbante amarelo, ali, outro com o rosto esfacelado, bexiguento, deve ser brasileiro, acolá, perto de um portão, uma negra gorda, vestida de estampados largos, com o cabelo teso, mexe no nariz. A padaria está aberta. A frutaria também. O churrasquinho vaidoso tem uma carrinha de fornecedores à porta. A funerária está fechada. Só os mortos podem descansar até mais tarde no catujal. Os vivos não podem aninhar-se no conforto morno da noite que o sono é um luxo. Uma mulher velha, com uma bata azul, atravessa a passadeira à minha frente. Leva nas mãos um talego com pão. Olha-me com indiferença.

(Não olho com indiferença os subúrbios mais feios de Lisboa. Não os olho com despeito, horror ou sobranceria. Encontro neles beleza. Muita liberdade. É um sentimento insuportável, o meu, uma espécie de caridade, de esmola, uma coisa que faz lembrar virtudes teologais.)