2009/09/24

Maria, a grande

O cemitério fica longe da aldeia. Vários ciprestes guardam os mortos e lançam sobre as campas uma caruma perfumada que as mulheres, aos domingos, se apressam a varrer com vassourinhas de estopa. Atrás do portão, dois anjos baços espreitam o céu que ameaça com nuvens pardas. Um carreiro serpenteia entre campas, mausoléus e jazigos. A Maria, agachada no chão, ajeita os cravos e os crisântemos entre os pés de cameleira que trouxe do quintal. Depois, com uma flanela húmida, limpa a campa do meu sogro. Trabalha lá em casa há muitos anos. Planta batatas, couves, cebolas, alfaces. Cuida dos pessegueiros, das laranjeiras, das oliveiras, da vinha, das pereiras, das macieiras, das nespereiras. Esfola coelhos e degola galinhas.

Passou a vida entre França e aquela aldeia perto de Ourém. É descarada e muito feia. Em cada frase, diz uma asneira. A minha sogra queixa-se. Acha-a velhaca, preguiçosa e mentirosa. Eu gosto dela. É uma festa quando chega. Tem sempre coisas para contar. O marido chama-se António. É um homem de sorriso manso, ar de mosquinha morta, parece uma coisinha de nada perto dela. Pois o António, pai das suas quatro filhas, avô de vários netos, bisavô de uma Caroline e de um Mickael, ia-lhe dando cabo da alegria. Os estragos que um homem pode fazer na vida de uma mulher. Eu conto. A Maria vive com uma irmã mais nova que é deficiente e muda. A pobre passa os dias a comer caramelos e a brincar com bonecas. Volta e meia, porém, amarinham-lhe uns calores pelo corpo e esquece-se das bonecas. Põe-se, muito oferecida, à janela a meter-se com os homens que passam na rua. Como não fala, gesticula e afaga o baixo-ventre. Às vezes, lança uns grunhidos de foca. Há coisa de dois anos, a irmã da Maria apareceu grávida.

A princípio, quando deu pela gravidez, a Maria desconfiou de um vizinho muito bêbado, o Goela, que, quando voltava da taberna, olhava a muda como quem olha uma presa fácil. Lá estava ela, a muda, gorda, quase imóvel, silenciosa, mascando ursinhos de goma, adormecendo as bonecas na aduela da porta. Umas vezes, oferecendo-se, outras, não. O António, sempre rindo, confiando na imbecilidade da cunhada, não dava opinião sobre tão delicado assunto. Ia levando a vida como podia. Até que a muda, certo dia, fartou-se de atribuírem injustamente a paternidade ao Goela. Tão feio e malcheiroso. Apontando para o bucho cheio, prestes a rebentar, terá grunhido, com a sua boca cheia de dentes podres, o nome do cunhado. Quando a Maria descobriu o feito do marido, já ela andava desconfiava dos sorrisos nervosos do parvalhão, deu-lhe uma tareia que se ouviu na aldeia inteira. Quase o matou.

Ameaçou capá-lo com uma tesoura de poda. Uivou o desgraçado. Quanto mais ele gritava, pedindo-lhe desculpa, culpando o vinho, mais vontade ela tinha de lhe bater e de o matar. Deixou-o roxinho de dor, o corpo marcado, duas vértebras partidas, várias peladas no couro cabeludo, os testículos muito encolhidos, prometendo para sempre recato e recolhimento. Esteve duas semanas fechada em casa. Depois saiu. Acompanhou a gravidez da irmã. Tratou da criança que nasceu perfeitinha e muito bonita. Recambiou o marido para França durante alguns meses para deixar assentar a vergonha e o falatório. Agora, anda com a menina para todo o lado, mostrando, com orgulho, as parecenças da pequena com o marido. Olha o mundo de frente. Ai de quem ouse fazer um comentário mais acintoso ou tratá-la como uma desgraçada. Toda a gente teme que ela faça o que fez ao marido. E, por fim, dê uso à tesoura de poda. Maria, a grande.