2009/10/11

Pavilhão 21

Estás sentada nas escadarias do pavilhão 21. Uma mulher de olhos claros fuma ao teu lado. Tem a cabeça pequena envolta num lenço cor-de-beringela. Usa um robe fresco. Tem mãos grandes, dedos longos e finos, as unhas compridas pintadas de branco. Reparo nos chinelos velhos que lhe sobram nos pés. Sorris. Estás gorda. Nunca te vi tão gorda. Olho para ti e não penso nos comprimidos que tomaste com as primeiras chuvas. O pensamento que me ocorre é frívolo, inconfessável: se não tiveres cuidado, muito cuidado, arriscas-te a ficar quadrada, com o corpo da tua mãe. Vestes uns corsários pretos, com atilhos nos joelhos, usas uma camisola alegre, de um tecido fino, quase transparente. Nas pálpebras, um risco grosso, mal traçado, de um verde vivo. Estranho a preocupação de te maquilhares depois do que aconteceu. Explicas que tens de falar com o médico por causa da medicação da noite. Não dormes bem. Acordas sobressaltada, com pesadelos. O teu sono não é reparador. Os sonhos cansam-te por sentires o corpo desprendido. Também sinto o corpo descarnado durante a noite. Pedes-me para esperar. Sento-me nas escadas, perto da mulher magra que ali permanece, parada. Parece uma feiticeira. Tiro um livro da mala. Leio a frase que sublinhei "Quero dizer-lhe uma coisa, doutor: a minha Aninhas é feliz".


Um bando de pardais chapinha num charco. Chilreiam, fazem muito barulho, ziguezagueiam como se fossem crianças pequenas a brincar felizes no pátio de uma escola. Noutro charco, um pássaro maior, preto, com um bico amarelo. Será um melro? Gostava de dominar a ornitologia, saber o nome dos pássaros, reconhecê-los pelas cores, pelas formas, pelo falar. Ao fundo da alameda três pombos voam rasteiros. Aterram perto de um aloendro florido de branco e de uma pereira pequena carregada de frutos. Chegam vozes, vindas do lado direito do pavilhão 21. Um homem muito velho ampara uma rapariga. Andam devagar. Sentam-se também na escadaria do pavilhão 21. O homem tem o rosto queimado, muito envelhecido, cheio de rugas e vincos. Usa o cabelo branco, comprido, puxado para trás. O produto que utilizou para fixar o cabelo dá-lhe um ar antigo e sábio. Usa um bigode fininho e bem aparado. A camisa aberta torna visível um cordão de ouro com um crucifixo exageradamente grande. Tem a unha do dedo mindinho mais comprida do que as restantes. A rapariga veste umas calças de ganga desbotadas e uma camisola azul de alças que lhe deixa a descoberto as costas claras, cobertas de borbulhas e de pequenos furúnculos vermelhos com pus. Tem a boca aberta, sempre aberta. Parece não a conseguir fechar. Um fiozinho de saliva, quase invisível, escorre-lhe pelo queixo. Os olhos estão mortos, perdidos no chão. A rapariga começa a chorar. O homem tenta acalmá-la.

- Não chores filha! Tens é que te por boa. Estás aqui para ficares boa!

- E a minha casa?

- Deixa lá a casa, que ela não foge! Não penses nisso. Ainda ontem, a Maria Augusta te foi lá regar o feijão verde e os tomates.

- Foi?

- Então, eu mentia-te? E não te preocupes com a Carlinha que ela está bem.

- Coitadinha...

- Coitadinha, porquê? É muita esperta, é uma miúda muita esperta... é como a mãe dela.

A conversa é interrompida pela chegada imprevista de um rapaz baixo, atarracado, de cabelo ruivo. Usa calções, chinelos, uma camisola de mangas cavas verde. Os olhos estão escondidos atrás de uns óculos escuros. Nas mãos traz um saco de plástico cuja transparência deixa a descoberto o conteúdo: um frasco de gel de banho e um rádio pequeno do qual irrompe a voz do Serge Gainsburg e da Jane Birkin. Tem um ar determinado. Aproxima-se das escadas e dá um aperto de mão à rapariga. Fala muito devagar, arrastando as sílabas, tornando difícil a compreensão das suas palavras.

- É o teu pai?

O homem velho esclarece-o.

-Não, não sou o paizinho dela. Mas fui eu que a criei. É como se fosse minha filha.

O rapaz gordo faz um sorriso rasgado.

-Muito prazer. Chamo-me Júlio.

- Como?

- Jú-li-o.

- Ah, Júlio! Muito bem, muito bem! António, o meu nome é António.
Ficam a olhar um para o outro, acenando a cabeça, sorrindo, fazendo vénias pequeninas e curtas. Parecem chineses ou japoneses. O rapaz farta-se daqueles gestos e, sem se explicar, abandona as escadarias do pavilhão 21. Perde-se de novo nos caminhos labirínticos do hospital. Parece um gnomo, um duende, um anão. Leva com ele, aprisionados dentro do saco de plástico, o Serge Gainsburg e a Jane Birkin. Tive vontade de lhe pedir para ficar nas escadarias do pavilhão 21. Até que a canção terminasse. Há um bosque encantado no meio da cidade.