2009/11/19

Lomba

Lia o público enquanto comia um pãozinho de sementes. Foi então que cruzei o olhar com o novo cronista. Apesar do desprezo que tenho pelos homens em geral, mesmo não querendo, volta e meia, caio na tentação de me entusiasmar com um ou outro. É degradante. Desconfio que, com algum empenho, era até capaz de me livrar da algidez que me dá conta da vida há tantos anos. Aborreci-me com a minha triste sina de feminista heterossexual frígida. Preferia, de longe, ser uma feminista lésbica frígida. As feministas deviam ser todas lésbicas. Sempre eram mais coerente. E ser coerente é tão importante nos dias que correm. Por isso é que há tanta gente que arremelga os olhos e diz admirar a coerência do Álvaro Cunhal. Adiante. O meu entusiasmo pelo novo cronista fez-me engasgar. Deve ter sido castigo. Uma semente de girassol caiu-me no goto. Deixei de respirar. Valeu-me o Sr. Domingos que, parecendo uma impala, uma gazela, saltou por cima do balcão das torradas e salvou-me. Deixou os papo-secos e as fatias de pão saloio a esturricar na placa. Bateu-me nas costas com força enquanto eu sufocava. A Conceição da contabilidade, muito fanhosa, indignou-se com o atraso da sua tosta mista aparada. Um luxo. A fanhosa de Agualva-Cacém trincando todas as manhãs uma tosta mista aparada feita pelo escravo guineense das torradas. Acabei por espirrar a semente pelo nariz que aterrou em cima da fotografia do novo cronista. Tão lindo que ele estava de barba. Sosseguei e assoei-me a um guardanapo de papel. O Sr. Domingos, ajeitando o avental da farda, olhando o jornal, quis saber se me tinha engasgado com a pouca vergonha que anda neste país. Disse-lhe que sim, que sim, pois claro, ando muito preocupada com a situação do país. Quando a Conceição passou por mim, com a sua tosta mista aparada, muito fumegante, olhou-me de soslaio, procurando vestígios de muco nasal do meu engasganço. Abri-lhes as minhas narinas gigantes. Parecem cavernas de homens pré-históricos. São assustadoras. Fez um esgar de repulsa. E soltou um ai amedrontado, a parva. Mal sabe ela que eu, feminista empenhada, e magnânima, defendo até as mulheres que desprezo profundamente. Como ela.