2010/10/09

Lobo

Carla rodava no átrio da escola secundária, mal pousando os pés no chão encerado, evitando o ruído, escondendo-se atrás dos placares de informações da secretaria para não chamar a atenção. Comia pacotinhos de bolachas de água e sal nos intervalos. Parecia um esquilo. Não havia rapariga mais feia no liceu. Nem os olhos claros a salvavam. Era, por outro lado, desinteressante, muito aborrecida, chata. Tal carácter acentuava-lhe a feiura, tornando-a grotesca. Gostava de bordar a ponto cruz e encontrava conforto na aprendizagem da culinária. Certo dia, do nada, assim como que a querer meter conversa, explicou que sabia fazer rissóis, esclarecendo que o segredo estava na massa cozida e não no recheio. Ninguém lhe ligou. Ela lambeu os beiços e foi esconder-se atrás de um vaso a comer bolachas de água e sal.

Vestia fatos de treino de algodão. Sonhava soltar o seu primeiro beijo ao som das canções do Glen Medeiros. Miudinha, a voz fanhosa, muito irritante, fazia estremecer a alma mais bondosa. Quando falava, havia uma produção excessiva de saliva que se acumulava nos cantos da boca. Ficava aquela babugem de cuspo pairando ali, humedecendo-lhe os cantos, evitando as fissuras do cieiro. Carla aplicava-se no estudo com afinco, lia muito, fazia resumos que sublinhava com marcadores fluorescentes de várias cores. Até aí falhava. Nunca conseguiu ir além da mediania. Era fraca em quase todas as disciplinas, menos nas línguas estrangeiras, onde era assim-assim. Tinha um irmão efeminado, um ano mais velho, que dava ao rabinho escola fora. Chamavam-lhe Repolho, porventura por causa do tom esverdeado que, em dias de chuva, a pele do seu rosto tomava. Era uma cruz que Carla carregava contrariada.

Passaram exactamente vinte anos. Não voltei a vê-la. Soube que seguiu a sua fraca vocação. Tirou um curso de línguas. Ontem, encontrei-a na rua onde trabalho, a rua mais feia de Lisboa. Borriscava e a Carla passeava de mãos dadas com um marido muito magrinho, precocemente envelhecido. Atravessaram a rua perto do novo restaurante japonês que tem um letreiro cor-de-laranja torrado. Bufete de almoço a nove euros e cinquenta, incluindo café, uma bebida, sobremesa, e a Carla, à chuva, olhando com amor, tanto amor, o seu companheiro. Vestia um casaquinho de malha azul-escuro e calças vermelhas. Trazia um colar de contas, vermelho coral, rente ao pescoço. O colarzinho, de bom gosto, dava-lhe um certo sainete e, estranhamente, tornava a minha rua menos feia. Deve ter usado aparelho nos dentes. Nos tempos do liceu, os caninos encavalitados não a deixavam fechar a boca. Agora, sorri, confiante. Mostra uma fileira de dentes certinhos, grandes, brancos. Apesar do colarzinho e da dentadura nova, continua feia, com as ancas muito largas, obscenas e maternais. Parece feliz.

(Como sempre acontece, a inveja galgou sobre mim. Tornou-me num bicho de dentes aguçados, num lobo das estepes, faminto, passeando na rua mais feia da cidade. Olhei a Carla e quis ferrar-lhe os dentes, apossar-me do seu corpo, da sua vida, do seu marido de rosto esquálido e dedos amarelos de nicotina.)