Sou Ana de cabo a tenente/ Sou Ana de toda patente, das Índias/ Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada/ Sou Ana, obrigada/ Até amanhã, sou Ana/ Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos/ Sou Ana de Amsterdam.
2011/06/29
Armários Vazios
Dora Rosário tinha 38 anos. A filha descrevia-a como uma mulher sem idade e sem solução.
2011/06/27
Havana
Almoço na esplanada do centro budista da rua D. Estefânia. Tenho por companhia a única amiga da faculdade que me resta. As outras, fui-as perdendo à medida que fui tendo filhos. Um gato preto espreguiça-se, molengão, por baixo de um estendal de roupa velha, esgaçada pelo uso. Ao fundo, as ruínas de um edifício austero, um asilo, um hospício, erguem-se como um gigante furioso. Lembro o sonho desta noite. Voltei a sonhar com a minha morte. Fico ao corrente da vida de quem não me interessa. Gente que não vejo há quinze anos. Tomo consciência de que, do grupo da faculdade, fui a primeira a separar-me. Serei, porventura, por enquanto, a única. Essa vantagem conforta-me. Entre outras coisas, fico a saber que um dos meus pretendentes da faculdade - tive dois: um, socialista, pouco asseado, porco mesmo, patologicamente mentiroso; o outro, conservador, dado a fados, touros e putas - é um homem de sucesso. Acaba de comprar o seu primeiro carro de luxo, um porshe, e está a ponderar comprar uma casa em Havana por apreciar a vida nocturna, os mojitos e daiquiris, as mulheres que se compram. Emociona-se com a decadência do socialismo cubano. Ainda não sei muito bem o que sentir em relação a isto. O que sinto em relação a isto? Não sinto nada. Não sinto sequer nojo ou alívio. Dispenso o porshe e a casa em Havana. O que quero é um homem com sentido de humor.
(Por que é que as mulheres, quando instadas a se pronunciar sobre as qualidades que apreciam no sexo oposto, afirmam que o que procuram é um homem com sentido de humor? Que utilidade tem um homem com sentido de humor? Para que serve? A maior parte das mulheres raia a imbecilidade. Eu, quando quero rir, escuto a Maria de Medeiros cantar, oiço as entrevistas do João Marcelino ou leio as análises do António Perez Metelo.)
(Por que é que as mulheres, quando instadas a se pronunciar sobre as qualidades que apreciam no sexo oposto, afirmam que o que procuram é um homem com sentido de humor? Que utilidade tem um homem com sentido de humor? Para que serve? A maior parte das mulheres raia a imbecilidade. Eu, quando quero rir, escuto a Maria de Medeiros cantar, oiço as entrevistas do João Marcelino ou leio as análises do António Perez Metelo.)
2011/06/23
Perfil
Não percebo o entusiasmo à volta da ideia do cheque ensino. Quem põe os filhos num colégio, não procura apenas a excelência do ensino, o rigor e a exigência. Procura, sobretudo, a segurança da segregação social. É a segregação social que dá garantias de sucesso. Quem opta por certos e determinados colégios fica sossegado por saber que deixa os filhos numa espécie de condomínio privado, onde se ensina a caridade, se cultiva comedidamente a piedade, enobrece sempre o carácter, mas longe de pretos, ciganos, brancos que são como pretos, demais proscritos. É por essa razão, sobretudo por essa, que sujeitam os filhos a avaliações psicológicas, que se sujeitam eles próprios a entrevistas, onde explicam o que fazem e onde moram. Esmiúçam, ansiosos, detalhes e valores familiares, para se enquadrarem no perfil pretendido. O cheque ensino, em abstracto, elimina constrangimentos financeiros, permitindo que famílias mais pobres possam optar por estabelecimentos de ensino privados, mas não apaga o resto. Quem é da Brandoa, da Buraca, de Unhos, do Catujal, será sempre desses lugares. Os pais que escolhem o ensino privado, se, de repente, vissem a prole acompanhada pela prole das suas empregadas, procurariam rapidamente outro colégio onde a selecção se continuasse a fazer. Não condeno as preocupações dos pais que assim agissem. Percebo-os perfeitamente. Se a escola dos meus filhos fosse, assim de repente, por imposição do governo, inundada por camafeus pequenos, tratando-se por você, armados ao pingarelho, também eu correria a tirá-los de lá. Gosto pouco de misturas.
2011/06/22
Marguerita
Faz hoje um ano que tomei uma caixa de Xanax, disse a mulher ao empregado do bar. Depois calou-se, estranhando as palavras que se tinham soltado da sua boca. Nunca ninguém lhe falava desse dia. Nem o marido. Nem os irmãos. Nem os pais. Nem a única amiga que tinha. Era como se não existisse. Como se outra, que não ela, tivesse naquele dia rondado o bairro de Chelas à procura de espantar a dor para os homens que, sonolentos, despertavam para a manhã. Como se outra, que não ela, tivesse escutado os renhaus dengosos que as mulheres lhes lançavam das janelas dos prédios de habitação social. No fundo, aquele dia só existia para ela, para mais ninguém. Por isso o celebrava sem que os outros soubessem, bebendo ao final do dia, num bar da rua de São Paulo. O empregado do bar voltou e pousou no balcão um copo triangular, com gelo moído e hortelã fresca. Sorriu-lhe de forma profissional, asséptica, como a querer dizer-lhe olhe que eu também tenho os meus problemas, não estou com disposição para confissões. Mas a mulher não o percebeu. Ou fingiu não o perceber. É triste uma pessoa falhar até na morte, não acha? e, sem esperar pela resposta, começou a chupar o sal dos bordos do copo.
(Junho nunca mais acaba.)
2011/06/21
2011/06/20
Outra
Vinha a sair da estação, de vestido branco, confiante, as pernas bronzeadas do sol, a peitaça enfiada num wonderbra, empinada e postiça, o rabo firme de tantos agachamentos feitos nas aulas de ginástica, a frustração, o remorso, o cansaço como se não existissem. Vinha assim, como se fosse outra, a sentir-me bem, quando a ponta das minhas sandálias de camurça ficou presa na grelha de um respiradouro. Estatelei-me no chão. Fiquei de gatas na queda. Uma rapariga de unhas de gel, esboçou um sorriso, feliz com a minha humilhação. Foi o negro que costuma estar a distribuir papelinhos do professor karamba quem me levantou. Agradeci-lhe. Larguei a outra, peguei em mim, e, manca, caminhei até ao edifício onde trabalho.
2011/06/17
Cama
Teve os primeiros quatro filhos em casa. Como era costume naquele tempo. Pariu no seu quarto, deitada na cama, com a Virtuosa a amparar a queda dos meninos. Era uma cama muito velha, de pinho carunchoso, que ocupava quase toda a divisão. Em vez das habituais cercaduras de raminhos de flores, tinha um pavão pintado no meio da cabeceira. Parecia real. A cauda, raiada de verde e azul, aberta no seu esplendor. Uma pata levantada e o pescoço muito esticado, alongado ao limite, mostravam a altivez do bicho. Mas o que impressionava a Violante eram os olhos pequenos, maldosos e brilhantes que, por arte do artesão, a fixavam sempre. Violante podia estar perto da janela, à porta, sentada no bacio, que o animal lhe fincava os olhos pequeninos. Mesmo quando estava de costas sabia que o pavão a fitava. O bicho perseguia-a, sabia-o, mas não contava a ninguém. Sentindo-se permanentemente observada, nunca os seus gestos eram livres e espontâneos dentro do quarto. Por exemplo, era incapaz de soltar um peidinho. Por pequeno que fosse. Fazia um esforço, apertando com força as nádegas, para estrangular as bufas que queriam fugir-lhe do corpo. Também nunca enfiava o dedo no nariz e acanhava-se de ajeitar as cuecas por baixo da bata. O pavão, pintado na cabeceira de pinho, não lhe admitia a vulgaridade daqueles gestos.
Mesmo quando a noite se abatia sobre o quarto e o seu corpo se tornava difuso, ganhando a consistência das sombras, Violante continuava a sentir-se observada. O marido encavalitava-se nela. Tomava-a com um desejo brusco e urgente. Sabia que o pavão lá estava, olhando-a, exibindo o requinte rendilhado da sua cauda, mangando do seu corpo nu, de refegos e pregas, gozando o marido, inábil na arte de amar, apertando-a com desespero, grunhindo à medida que ejaculava. O bicho, com o seu despeito e altivez, mostrava-lhe que na cama, como no resto, o mundo se divide entre pobres e ricos. Os pobres amam como animais, de uma forma primitiva, sem pingo de afectação, dispensando sofismas e outros engodos, com muita pureza e brutalidade. Os ricos, por vezes, também amam assim. Mas é um excesso, um desaire que se esquece mal as luzes se acendem e os corpos se escondem em camisas de dormir brancas e pijamas de popelina.
Porém, mais do que às investidas nocturnas do marido custava a Violante que o pavão assistisse aos seus partos. Sentia que, durante o nascimento dos filhos, a devassa da sua intimidade era total. O bicho, do cimo da cama, estremecia com tanta curiosidade. Esticava-se todo, ela bem o via, para lhe ver o avesso, fixava os olhos na sua greta dolorosa, os lábios grossos, os pêlos hirsutos, dava conta da crueza da sua nudez. Naquele alarido do nascimento - a Virtuosa, sempre muito suada, pedindo-lhe para fazer força, o quarto abafando com o cheiro de entranhas e sangue -, o bicho dava largas à sua maldade e, facto tão extraordinário quanto a beleza dos meninos de Violante, ganhava vida. Escutava-o, passeando pelo quarto, patinhas de lã, transportando o seu corpo de tinta estalada. Pior, vendo-a ali presa, incapaz de se movimentar, as atenções todos postas na sua parte baixa, baixava-se e bicava-lhe a cabeça. Bicava-a com tanta força, tamanha maldade, que, no último parto, Violante sangrara. Ficou com a cabeça cheia de crostas escuras e grossas. A Virtuosa, habituada às maleitas das puérperas, rapidamente arranjou explicação. Era dos nervos. A maternidade exigia muitíssimo a uma mulher, abnegação, amor, paciência e o corpo, claro está, ressentia-se. Que esfregasse o couro cabeludo com azeite morno. Ajudaria a amaciar as crostas e o cabelo, até o seu, áspero e feioso, ganharia brilho. Violante escutou-a em silêncio e olhou o pavão com os olhos rasos de água. Quando engravidou do quinto filho decidiu que não o teria na presença do animal. Os tempos eram outros, havia luz eléctrica na maior parte da aldeia, numa das mercearias de Grândola vendiam-se cachos de bananas que chegavam do Brasil, muito perfumadas e doces, dizia-se que, em breve, iriam colocar uma televisão na casa do povo. Face a tanto progresso, Violante facilmente convenceu o marido de que não podia continuar a dar à luz na sua cama de pinho. Quando o ventre baixou e sentiu o menino encaixado, a cabeça fazendo pressão nos ossos da bacia, fez uma trouxa e pediu-lhe que a levasse ao hospital de Beja.
2011/06/16
2011/06/14
Chacuti de galinha
Fomos visitar a campa dos meus avós. A minha mãe, mal entrámos, baixou a voz, procurou o tom adequado à solenidade do lugar e, assim que o encontrou, pôs-se a choramingar. O João trouxe um balde com água e, com um trapo, esfregou a campa. A Dá procurou pedrinhas para prender as rosas artificiais que comprámos no chinês perto da praça e que ficarão ali até o sol lhes comer a cor. O Joaquim galopou no meio das campas, tão lindas, muito brancas, cheias de anjos e vasos de flores de plástico. Só parou de galopar quando esbarrou na sebe de buxo e lhe descobriu o cheiro. Enterrou o nariz no meio das folhas e já não o tirou. Olhei-o e tive a certeza de que aquele menino me pertence. Um filho pode habitar-nos o corpo, ter as nossas feições, os nossos traços, carregar a nossa herança, e nunca chegar a ser nosso. Vendo os meus filhos tão à vontade cuidando dos nossos mortos, exigi antenção e expliquei-lhes que quero ser enterrada ali, perto do caminho dos montes. Assegurei-lhes que, se me enterrarem em Lisboa, voltarei espectro medonho, pior do que em vida, um demónio assustador para lhes atrapalhar a felicidade. Riram-se, como se a morte, a minha, fosse coisa muito distante e impossível. Foi então que a tia Dé, assim do nada, sem nunca ter falado em tal assunto, aproveitou a deixa para dizer que quer ser cremada. Disse-o de forma decidida, sem hesitações, com a mesma segurança com que, em nova, no serviço de politraumatizados de São José, se punha em cima de um doente quando era preciso imobilizá-lo. Com a mesma segurança com que, já aposentada, cantava a Grândola, Vila Morena, avental posto, pantufas nos pés, punho erguido no meio da sala, a desafiar os deuses de sândalo do meu pai. Olhei-a com surpresa, tanto amor. Deves estar completamente louca, disse-lhe calmamente. Esclareci que, no que dependesse de mim, nunca seria cremada, não a quero feita cinzas, uma poeira de nada, enfiada num pote, guardada num nicho ou numa gaveta. Na morte, como em vida, estaremos todos juntos, naquele cemitério pequeno, à volta de uma mesa, uma jarra de zinias, malvariscos e cristas de galo ao centro, escutando as histórias das inglesas bêbadas da Zambézia, comendo chacuti de galinha, azevias, churros e rodelas de batata-doce frita.
2011/06/09
Isabel Silvestre
8
(Só tenho dois destinos: uma aldeia portuguesa, outra goesa. São duas aldeias feiotas, mas são minhas. O resto do mundo interessa-me pouco.)
(Só tenho dois destinos: uma aldeia portuguesa, outra goesa. São duas aldeias feiotas, mas são minhas. O resto do mundo interessa-me pouco.)
2011/06/07
Toque não consentido
Aparece aos domingos para visitar a filha. Volta e meia, tenta beijar-me. Diz que ainda me ama. Toca-me como se fosse uma prostituta. Roça as mãos no meu peito e no meu rabo. Aproveita os momentos em que a filha está presente, mas distraída a olhar para a televisão ou entretida a alimentar o peixinho encarnado. Sabe que não gritarei para não a assustar. Quero poupá-la ao sofrimento e à minha miséria. São gestos que mal se notam, não deixam marcas visíveis, mas que ele executa com a intenção de me humilhar, de me paralisar, para mostrar que continua a ser meu dono. Peço-lhe para parar. Sei que queres, diz-me com despeito. Eu nunca quis. À despedida, volta a olhar-me como que a avisar és um corpo que me pertence. Quando a porta se fecha e voltamos a ser só nós duas, arregaço as mangas e mordo os braços até magoar. Tenho nojo do que fomos. Mas também tenho medo. Não é fácil a gente livrar-se do medo.
2011/06/06
Azul
Três mulheres conversavam ruidosamente sobre a mesa do café, dedos esguios de unhas azuis, torcendo pacotinhos de açúcar vazios. Eram três mulheres e falavam na pausa do almoço, depois de terem comido mini pratos de arroz de pato e bacalhau com natas. Estavam sentadas numa mesa ao lado do balcão dos salgados. Da cozinha, chegava um cheiro denso de gordura saturada que se entranhava nos cabelos e nos tecidos. Um empregado, esguio, acelerava o serviço com gritos. De vez em quando, pelo canto do olho, enquanto esperava algum pedido, olhava o trio. A primeira mulher era bonita, de olhos rasgados e lábios grossos, uma beleza intensa, mas levemente ordinária que apetecia esmagar, lamber, magoar. Tinha as unhas pintadas de azul-turquesa. A segunda mulher era tão bonita como a primeira, mas de um modo diferente. A sua beleza era distante, intangível, virgem, como a de uma santa numa peanha. Trazia as unhas pintadas de azul metalizado. A terceira mulher era a mais bonita porque a sua beleza era, ao mesmo tempo, distante e próxima. Qualquer homem que a olhasse, assim sentada, torcendo um pacotinho de açúcar, sentir-se-ia inquieto por não saber como a classificar. Santa ou puta? Era essa inquietação, esse mistério, que a tornava única e, por isso, mais intensa a sua beleza. A terceira mulher trazia as unhas pintada de azul tempestade. O empregado do balcão dos salgados, porém, parecia não se interessar pela beleza das três mulheres. Dir-se-ia, pelo modo como as olhava, fixando-se nas mãos torcendo pacotinhos de açúcar vazio, apenas estar fascinado pela cor das suas unhas.
(gosto de segundas-feiras e não gosto nada de azul.)
(gosto de segundas-feiras e não gosto nada de azul.)
Massamá
Ao pequeno-almoço, enquanto pedia um pão-de-deus e um copo de leite ao Sr. Domingos, vi, na televisão do refeitório, o Pedro Passos Coelho a sair de casa, uma matilha de fotógrafos de roda dele, gente à porta de uma pastelaria-gelataria-sala-de-chá de toldos cor de laranja, uma mulher de bermudas e chinelos enfiados nos pés a apontar para a câmara de televisão, sussurrando qualquer coisa a uma menina que levava pela mão. O facto do Pedro Passos Coelho morar em Massamá diz alguma coisa sobre aquilo que ele é e é bom aquilo que diz.
Americano
Dou o dito por não dito. Larguei o grande romancista americano a meio. Já não podia com o homem. Depois de uma semana a patinar, a fazer um esforço patético para ler duas ou três páginas, larguei o livro com um gesto dramático. Bufei de aborrecimento e corri à procura de quem me animasse. Peguei num livro de contos do José Rodrigues Miguéis e, coisa tão boa, tirei o corpo de misérias. Regalei-me durante duas horas a ler na minha língua e descobrindo frases muito simples, outras tão belas e misteriosas, como esta: a loucura parece uma porta aberta para o mundo das larvas. Li as notas que a minha irmã escreveu a lápis enquanto estudava a obra do escritor. Lembrei esses tempos da universidade em que a desilusão era para ambas apenas um pressentimento, não uma certeza. Não percebo nada de literatura, só gosto de ler, mas sei que um conto de quinze páginas do José Rodrigues Miguéis mete a um canto o romance de setecentas páginas do grande romancista americano.
2011/06/02
Último
Gosto do Damião, açoreano, pronúncia cerrada, não se percebe uma palavra, uma palavrinha sequer, agressivo, rosnando como um cão, sentado na alcatifa felpuda, a jogar ao stop, sempre agarrado ao busto do Vitorino Nemésio. Também gosto do Roberto Leal, meias pelo joelho, maravilhoso na sua filosofia de meia tigela e nas suas palavras de amparo. A Luciana Abreu também não está nada mal. O Último a Sair é dos programas mais divertidos da televisão e mostra como, para se ter graça, não é preciso andar a reboque do estilo gato fedorento. A televisão está cheia de humoristas novos e são quase sempre imitações ordinárias do Ricardo Araújo Pereira. Não há nada mais triste do que alguém querer ter piada e não a ter. Deus nosso senhor, infindável na sua glória, magnânimo na sua justiça, recompense o Bruno Nogueira, o João Quadros e o Frederico Pombares, criadores do programa, por nos fazerem rir numa altura em que, fossemos sérios, responsáveis, nórdicos, andaríamos de sobrolho carregado, aguardando, solenes, preocupados, dilacerados, o resultado de dia cinco.
2011/06/01
Torel
A caminho, apercebi-me dos anos que passaram desde a última vez em que lá estive. Como é possível ter estado tantos anos sem lá ir? Temi que o lugar estivesse diferente: o arvoredo composto, flores postas em cachos de cor de acordo com as instruções de uma qualquer arquitecta paisagista, tubinhos de irrigação nos canteiros como serpentes mortas, candeeiros modernaços, um parque infantil de estruturas ergonómicas e coloridas no lugar da fonte velha, meninos brincando, felizes. Temi que, à semelhança de outros espaços, o jardim tivesse sido objecto de requalificação. Já não encontraria velhos moendo-se, ao sol, com o jogo da sueca, nem bichos-de-conta gigantes, nem musgo, nem verdete, nem sentiria o cheiro da sebe de buxo aparada. Sobretudo, temi, não me encontraria, pequena, um anelzinho de prata no dedo, as unhas roídas, sentada nas raízes de uma árvore, comendo croquetes de carne. Temi que o jardim da minha infância se tivesse tornado num lugar vivo, eu que gosto dele morto.
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