2011/06/14

Chacuti de galinha

Fomos visitar a campa dos meus avós. A minha mãe, mal entrámos, baixou a voz, procurou o tom adequado à solenidade do lugar e, assim que o encontrou, pôs-se a choramingar. O João trouxe um balde com água e, com um trapo, esfregou a campa. A Dá procurou pedrinhas para prender as rosas artificiais que comprámos no chinês perto da praça e que ficarão ali até o sol lhes comer a cor. O Joaquim galopou no meio das campas, tão lindas, muito brancas, cheias de anjos e vasos de flores de plástico. Só parou de galopar quando esbarrou na sebe de buxo e lhe descobriu o cheiro. Enterrou o nariz no meio das folhas e já não o tirou. Olhei-o e tive a certeza de que aquele menino me pertence. Um filho pode habitar-nos o corpo, ter as nossas feições, os nossos traços, carregar a nossa herança, e nunca chegar a ser nosso. Vendo os meus filhos tão à vontade cuidando dos nossos mortos, exigi antenção e expliquei-lhes que quero ser enterrada ali, perto do caminho dos montes. Assegurei-lhes que, se me enterrarem em Lisboa, voltarei espectro medonho, pior do que em vida, um demónio assustador para lhes atrapalhar a felicidade. Riram-se, como se a morte, a minha, fosse coisa muito distante e impossível. Foi então que a tia Dé, assim do nada, sem nunca ter falado em tal assunto, aproveitou a deixa para dizer que quer ser cremada. Disse-o de forma decidida, sem hesitações, com a mesma segurança com que, em nova, no serviço de politraumatizados de São José, se punha em cima de um doente quando era preciso imobilizá-lo. Com a mesma segurança com que, já aposentada, cantava a Grândola, Vila Morena, avental posto, pantufas nos pés, punho erguido no meio da sala, a desafiar os deuses de sândalo do meu pai. Olhei-a com surpresa, tanto amor. Deves estar completamente louca, disse-lhe calmamente. Esclareci que, no que dependesse de mim, nunca seria cremada, não a quero feita cinzas, uma poeira de nada, enfiada num pote, guardada num nicho ou numa gaveta. Na morte, como em vida, estaremos todos juntos, naquele cemitério pequeno, à volta de uma mesa, uma jarra de zinias, malvariscos e cristas de galo ao centro, escutando as histórias das inglesas bêbadas da Zambézia, comendo chacuti de galinha, azevias, churros e rodelas de batata-doce frita.