Toda a gente tem direito às
suas embirrações. Eu, que não sou mais nem menos do que os outros, tenho
direito às minhas. Embirro com quase toda a gente que conheço; às tantas,
reconheço, já nem sei bem por quê. É um modo de estar na vida como outro qualquer.
Embirro com a Sofiazinha, com o Nuno, a Natércia e a Patrícia, embirro com
quase todas as amigas da minha irmã, umas mais do que outras. Também embirrava
com vários vizinhos dos meus pais, a preferência ia para o capitão do quinto
direito, beato, salazarento, sempre de charuto ao canto da boca. Agora já gosto
dele. A mulher perdeu de vez o tino, está completamente louca e eu sou muito
sensível à loucura. Embirro com a Anabela Mota Ribeiro (uma embirração
misturada com uma pontinha de inveja porque a acho verdadeiramente bela), com o
Kalaf Angelo, com o valter hugo mãe e, ao ponto da náusea e arrancos vómicos,
com a Michelle Obama, de sabrinas e corsários, plantando nabos e pepinos nos
jardins da casa branca. Há muitos anos que desligo o televisor sempre que
aparece o António José Seguro. Embirrava, e continuo a embirrar, mesmo depois
de morto, enterrado, eternamente celebrado, com o Eduardo Prado Coelho. Enfim,
são tudo embirrações ligeiras, inconsequentes, mas que me provocam uma sensação
boa de alívio. Assim como um arroto bem dado.
Mas, às vezes, aparecem
embirrações que são como carraças. Não me largam. Tornam-se fixações. Há muitos
anos que embirro com o Urbano Tavares Rodrigues. É uma coisa visceral, uma
reacção não controlável, basta-me topar-lhe com a fronha, o cabelo ondulado, o
corpo magro e esguio, a pele velha, manchada, carcomida, para me fazer largar
um esgar de nojo. A entrevista que deu há meia dúzia de meses ao Público, a
propósito do seu novo livro, deixou-me num estado de irritação profunda. Não
aceito mas compreendo o machismo assumido por um certo tipo de homens:
conservadores, marialvas ou simplesmente boçais. Bate a bota com a perdigota,
como é uso dizer-se. Mas, encontrar homens supostamente esclarecidos, desses
que enchem a boca cada vez que falam de liberdade e erguem o punho por dá cá
aquela palha, a falarem das mulheres como se fossem caça, reconduzindo-as
sempre à sua condição menor é triste e desolador.
Ontem, rondando os
escaparates da livraria do costume, dei de caras com o livro sobre o qual o
escritor tão entusiasticamente falara ao Público. Parece que esteve dois dias
sem dormir para escrever a primeira novela. Basta ler as duas primeiras páginas
para perceber que leva ao limite do absurdo a sua ilusão de grande macho
cobridor: há uma enfermeira que desfalece com os orgasmos que o narrador (ele,
só pode ser ele!) lhe provoca numa sala com cheiro a clorofórmio e, mais
adiante, logo na página a seguir, há uma empregada de limpeza que o venera. A
sopeira chora quando o beija pela primeira vez e agradece quando o narrador lhe
ensina a chupar devidamente o caralho. É tudo tão tristemente insultuoso que
uma mulher fica sem saber se há-de rir ou chorar. Se não estivéssemos em crise,
se não me tivessem papado subsídios e prémios, se não me tivessem cortado o
salário com o qual sustento a minha prole, bem que comprava o merdoso
livro do merdoso escritor Urbano Tavares Rodrigues. A minha vida é um martírio,
sou uma autêntica penitente, devia ter direito a alguma diversão.
(O Urbano Tavares Rodrigues,
escritor menor, foi casado com a Maria Judite de Carvalho, escritora maior,
infelizmente sempre colocada na sua sombra.)