2014/07/28

2014/07/16

Florzinhas azuis

A Madalena acordou-me com um beijo. “Já passa da uma, mãe. Não vais pelo menos trabalhar durante a tarde?”, perguntou. Envergonhada, disse-lhe que sim e saltei da cama. Tomei banho, bebi um café, tomei os comprimidos. A casa pareceu-me limpa, cheia de sol, incrivelmente arrumada. Antes de sair pedi à Graça que fizesse gelatina e deixasse o frango desfiado. Já no edifício, enquanto subia no elevador, notei vincos do lençol nos meus braços. Fechei os olhos e, diante de mim, surgiram imagens do sonho desta noite:  prédios altos, blocos cinzentos de janelas pequenas,  ruas cheias de lixo e águas insalubres.  Comecei a trabalhar num parecer sobre a aplicabilidade de certo regime jurídico aos trabalhadores de um serviço intermunicipalizado de gestão de resíduos. Cheguei a conclusões, mas não fui capaz de as redigir. Encontrei a Filomena na máquina dos cafés que me falou das beringelas recheadas que comera no refeitório. A Maria José trouxe-me as framboesas há muito encomendadas. Notando a minha voz, perguntou-me se estava de bem como a vida. Intrigou-me a expressão: estar de bem com a vida. “Nem por isso”, respondi e meti uma framboesa na boca. O telemóvel tocou duas vezes, não atendi. Ao longo do dia, lembrei-me várias vezes do lindo bule de florzinhas azuis que ontem comprei na feira da Ladra.

2014/07/15

Dor

Quero transformar-me em pó, cinzas, poeira, em nada. Tornar-me no vazio, numa recordação, numa lembrança. Passar a ter apenas expressão nas fotografias que envelhecem devagar nos álbuns que fiz há muitos anos, quando era nova, quando me sentia nova. Habita-me uma dor que não sei, não consigo descrever. É uma dor que não se sente na carne, mas que está lá, espalhada, derramada pelo meu corpo. Cobre-me, evanescente, como uma gaze translúcida. Só por estar lá, só por existir, não me ferindo, fere-me. De uma maneira insuportável. Ácida, a dor corrói-me por dentro. Às vezes, parece que tenho caruncho, um exército de insectos minúsculos dilacera-me, come-me os órgãos e os membros. Não consigo olhar-me no espelho. Mesmo, pela manhã, quando lavo o rosto e me penteio, executo esses gestos rotineiros sem nunca me olhar. Habito o meu corpo. É isso. Limito-me a habitar o meu corpo, invólucro de qualquer coisa que adivinho menor. Sinto constantemente um nó a estrangular-me a garganta. Sinto esse nó em cada segundo, em cada minuto, em cada hora que passa. 

(Senti-me bastante triste ontem. Hoje acordei melhor. Fui à feira da Ladra, onde caminhei ao sol. Observei um homem jovem, corpo moído da heroína, que vendia camisas Victor Emanuel. Comprei alguns livros e um lindo bule com florzinhas azuis.)

2014/07/13

Procissão

O anjinho de mãos papudas limpa o suor da testa. O outro, mais pequeno, chama pela mãe. As vizinhas debruçam-se nas varanda para ver a procissão passar. A fanfarra toca. Abnegada, servil, fria, segues em cima de um andor de madeira perfumada. Tens olhos mortiços, um sorriso cândido que mal se nota. Foste mãe sem chegares a ser mulher. És incrivelmente feia. Vejo-te passar e pergunto-me: como pôde o padre Mouret apaixonar-se por ti? 

El Cigala

2014/07/09

Mulher de franja

Sentada na primeira fila, uma jovem mulher. Franja curta e olhos carregados de khol. Tem pinta de jornalista. Ou coisa que o valha. Ri que nem uma perdida. O texto tem brejeirice, presta-se ao riso, mas a mulher da primeira fila não se limita a rir. Já o texto segue adiante, já se fala do fio de seda que prende a patinha do pardal, já tudo é poesia, profanação e liberdade, e ela continua numa hilaridade forçada. Às tantas, sacoleja o corpo como se alguém lhe fizesse cócegas nos sovacos. Salta à vista que o seu riso é forçado, é o riso de quem, pelo exagero, se quer livrar do anonimato da plateia. Passa o resto do espectáculo a bichanar à companhia do lado. Às vezes, faz um ar grave e fita o palco com melancolia. Volta a rir-se descontroladamente, ruidosamente, se se escutam as palavras “cona” e “foder”. Concentro-me no texto. Apesar das aparências, o longo poema é denso, exigente, metafórico, cheio de subtileza e inteligência. Saio com uma frase, uma única frase, na cabeça. Sento-me a uma das mesas do café e escrevo na agenda: “Então tudo acabará. As estações terão chegado ao fim, com as suas sombras e os seus ecos”. A mulher da franja também está por ali. Encontrou uma amiga. 
- Joana!
- Olá.
- Não sabia que estavas cá!
- Não podia perder este espectáculo!
- Gostaste?
- É muito, muito bom…
-Também adorei!
- E o texto é…
- Magnifico!
- Tem imensa força…
- Pois tem…
A conversa diverte-me. Cá está a habitual frivolidade de certa gente da cultura. Leram fulano e beltrano, conhecem isto e aquilo, mas não têm nada na cabeça. Só deslumbramento. Passava o resto da noite a escutar a conversa da tal Joana, mas são quase onze horas e os meus filhos ficaram sozinhos em casa. 

2014/07/08

Ontem

Li duas novelas do Stefan Zweig e um estudo da Ana Luísa Amaral sobre escrita feminina. Passava pouco das duas da manhã quando apaguei a luz. Durante a noite comi duas gelatinas de ananás, três laranjas e cem gramas de chouriço fatiado.

2014/07/06

Chongqing

Hei-de renascer entre florestas de betão e tocas de zinco. Habituar-me-ei a carregar baldes de cimento sobre os ombros. Hei-de ter calos nas mãos, o cabelo crespo, a pele baça, os dedos dos pés muito separados, com fungos e bolores. Hei-de aprender a comer de cócoras, encolhida, como se estivesse ainda no ventre da minha mãe. E a sorver, sem temer o ocidental embaraço, a sopa de massas. Darei estalinhos com a língua e sorrirei  ao sentir o caldo quente escorrer-me pelas goelas. Nos domingos, em Chongqing, hei-de vestir uma blusa amarela, desbotada pelo tempo, com pavões desenhados. Passearei sozinha no parque da cidade onde as árvores largarão um cheiro enjoativo a fruta madura e os meninos comerão gelados de três sabores.

2014/07/03

2014/07/02

Lembrete

A limalha de ferro cobre a mesa do alfaiate. A canção de amor passa na telefonia. Uma carpa gorda nada no lago do museu. A prostituta de socas brancas sobe a rua dos Anjos. O peixe-aranha pica o pé do João. Orlando seca as lágrimas de Adolphine. Adolphine volta a ser menina e regressa ao gueto de Theresienstadt. Da sublimação do iodo, falou-me hoje a minha filha. 

2014/07/01

Grampos de massa

Continuo sem dormir. As noites são um poço sem fundo, os dias custam a passar. Espeto alfinetes nos olhos para os manter abertos. Quero ordenar ideias e não consigo. Caminho sem direcção. Leio, observo, tiro notas, mas não escrevo. Os miúdos pressentem a minha tristeza. Não dizem nada. Tenho inveja das mulheres jovens. Não têm varizes nas pernas e a felicidade parece-lhes alcançável. Tenho saudades do meu cabelo comprido. Nos dias de chuva, quando ganhava volume, enrolava-o na nuca e prendia-o com grampos de massa. Também tenho saudades de foder, mas isso é outra conversa.