2007/06/18

Cama (1)

A cama dos meus pais é uma cama em pau preto, de linhas direitas, que veio, desmontada, num dos contentores de Moçambique. Mesmo por cima, pendurado na parede, há um crucifixo grande e pesado, esculpido na mesma madeira. Um Cristo preto, preto, preto. Preto como a noite, a fazer lembrar hipopótamos, leões, zebras, búfalos, elefantes. Durante muitos anos, esta cama teve um colchão mole no qual deixava afundar o meu corpo. Eu gostava daquele colchão. Não só por ser mole, mas também por causa da cor do forro. Era cor-de-laranja. Sempre gostei de dormir na cama dos meus pais. Desde pequena. Desde que me conheço. Já crescida, 18, 19 anos, nas manhãs de sábado e de domingo, enfiava-me entre os dois, destapava a cabeça da minha mãe, via o meu pai acordar, sorrindo timidamente. Eu percebia que lhe era desconfortável ter uma filha crescida, com corpo e formas de mulher, deitada ao seu lado. Não era por nada. Pura e simplesmente era algo que o deixava pouco à vontade, que não encaixava com a sua educação e com a sua vida. Durante a altura dos exames da faculdade, muitas vezes, era ali naquele quarto, naquela cama, que dormia a sesta, antes de retomar o estudo. Mesmo agora, quando estou em casa dos meus pais e me apetece descansar cinco ou dez minutos, é a cama deles que escolho para me deitar. Deito-me sempre do lado do meu pai, com a sua almofada. Gosto de sentir o cheiro dele. É um cheiro limpo, de sabão, pasta de dentes, de champô. O meu pai tem também no corpo entranhado o cheiro da loção Pantene que há muitos anos usa para prevenir a queda do cabelo. Um líquido amarelado, transparente, dentro de um frasco de vidro quadrangular.