2010/01/12

Fecaloma

Assustei-me quando caiu o muro de Berlim. O mundo, nessa altura, dividia-se de forma simples. A fronteira clara que se estabelecia entre os bons e os maus facilitava-me muito a vida. De um lado estavam os bons. Do outro os maus. É certo que os bons podiam ser maus e os maus podiam ser bons. Mas isso não me interessava nada. Bastou-me escolher um dos lados da barricada para que, aos meus olhos, esse se tornasse o lado dos puros, dos impolutos, dos heróis que se batiam por valores e causas. Fiz uma escolha e também eu, por osmose, passei a fazer parte do grupo eleito. Desses tempos de ordem e simplicidade ficou-me o hábito de, a propósito de outros assuntos, dividir o mundo em duas partes. É um exercício tolo mas que insisto em fazer. Não podendo continuar a ter uma visão maniqueísta da política, o peso da idade e o conhecimento dos factos não mo permitem, dou por mim a imprimir a força da divisão dualista em relação a assuntos menores e domésticos. Divido as mulheres entre as que arranjam as cutículas das unhas e as que não o fazem. Divido os amigos dos meus filhos entre os que me tratam pelo nome e aqueles que me reduzem à “mãe do João”. Desprezo o segundo grupo. Divido os homens entre os que usam botões de punho e os que não os usam. Por aí fora.
Vem a conversa, parva e inconsequente, a propósito da morte do Eric Rohmer. Divido também o mundo entre as pessoas que acham que "Os amores de Astrea e Celadon"é uma obra prima do cinema europeu e aqueles que acham que o filme é uma merda. Para mim, o dito filme ultrapassa o significado corriqueiro que atribuímos à palavra merda. É um autêntico fecaloma. Um pesadelo. E mais não digo.