Domingo. Subo a serra até ao Catujal. A luz da manhã é aguada, triste, cinzenta. Uma névoa cobre tudo, tornando o ar baço e disformes as sombras. No banco de trás, a minha filha dormita. Usa um fato de treino azul, por baixo, um mailot cravejado de estrelas brilhantes. Um homem corre à chuva com um impermeável amarelo. Desce a serra até à beira-rio onde os bairros concertados têm alamedas floridas e ciclovias de macadame vermelho. Aqui, as casas clandestinas nascem aos borbotões, sem ordem, tino, harmonia. Têm vista paro o rio. As paragens da camioneta estão cheias de gente apesar de ser quase madrugada. Ali, um homem de turbante amarelo, ali, outro com o rosto esfacelado, bexiguento, deve ser brasileiro, acolá, perto de um portão, uma negra gorda, vestida de estampados largos, com o cabelo teso, mexe no nariz. A padaria está aberta. A frutaria também. O churrasquinho vaidoso tem uma carrinha de fornecedores à porta. A funerária está fechada. Só os mortos podem descansar até mais tarde no catujal. Os vivos não podem aninhar-se no conforto morno da noite que o sono é um luxo. Uma mulher velha, com uma bata azul, atravessa a passadeira à minha frente. Leva nas mãos um talego com pão. Olha-me com indiferença.
(Não olho com indiferença os subúrbios mais feios de Lisboa. Não os olho com despeito, horror ou sobranceria. Encontro neles beleza. Muita liberdade. É um sentimento insuportável, o meu, uma espécie de caridade, de esmola, uma coisa que faz lembrar virtudes teologais.)