2011/07/21

Afife

Não tenho dinheiro para mandar cantar um cego. Ando numa lufa-lufa, uma autêntica formiguinha, a ver se poupo o suficiente para, em Dezembro, sem grande rombo nas finanças domésticas, voltarmos à Índia. Vai sendo tempo do Joaquim conhecer a tia Maria, a preferida de Salazar, o cristo falante, os deuses crepusculares do quintal, sempre em folguedos perigosos, de penetrações fundas e posições estranhas, camuflados, parecem aranhas, muitos braços e muitas pernas, é preciso estar com muita atenção para os ver. Quero que conheça a mesa da cozinha corrida, os pratos de alumínio, as meninas da casa fazendo bolas de comida, metendo-as à boca, sorrindo. Quero que brinque no jardim de cóleos, crótons e filolendros da casa de Pondá, que me veja velha no rosto da tia Amália, no meio dos cóleos, crótons e filolendros da casa de Pondá, que faça festas aos gatos escanzelados do mercado de Margão, as peixeiras sentadas de cócoras, a saia do sari arregaçada, presa pela frente, para não se sujarem nas águas lodaçais, cheiinhas de ouro, escravas nos braços, arrecadas pesadas nos lóbulos das orelhas, cordões grossos à volta do pescoço, parecem as peixeiras de Afife, da Póvoa, da Nazaré, ser peixeira é arte universal e a aurífera ornamentação constitui em qualquer parte do mundo requisito essencial para bem se exercer a profissão. Lembro agora: quando era pequena, muito pequena, durante a primeira infância, queria ser peixeira, não me imaginava a ser outra coisa, muito menos o que hoje sou, nem sabia que podemos levar a vida assim, com cordas a prenderem-nos os pés e as mãos. Ia com a minha mãe à praça de Moscavide e especava em frente das peixeiras. Desejava ser como elas eram: poderosas. Mexer no peixe, sardinhas, carapaus, besugos, salmonetes, bicas, sentir-lhes o coração ainda a palpitar, o corpo quente, dizer assim, ainda está vivinho, depois, arrancar-lhes as tripas, o interior gelatinoso escorrendo pelas mãos, escamá-los, conversar com as freguesas, entregar-lhes a morte dentro de um saco de plástico. Se tivesse dinheiro, algum dinheiro, ia à Índia todos os anos e comprava um quadro da Armanda Passos.