2011/08/29

Saramago (2)

Não sei explicar por que razão, passados tantos anos, recordei, com detalhe, este episódio enquanto assistia ao documentário do Miguel Gonçalves Mendes. Talvez fosse apenas o sul a chamar por mim. Quando desliguei a televisão e o silêncio se instalou pensei assim: afinal gosto deste homem. No dia seguinte, partilhei o entusiasmo com a minha irmã. Gozou-me, como sempre faz, soltou uma casquinada valente, e disse qualquer coisa do tipo ó mana, és tão inconstante. A conversa é sempre a mesma. A minha inconstância é um axioma familiar. Ultrapassada a questão ideológica, a minha irmã percebeu que apenas a sordidez da vidinha privada podia reavivar o meu desprezo pelo Saramago. Então tu não sabes que ele batia na primeira mulher?, atirou ela com uma ponta de maldade, sabendo que poucas coisas me revoltam mais do que homens que batem em mulheres. Deves ser completamente louca, disse, e acabei, naquele preciso instante, a conversa, desligando-lhe o telefone na cara. Engoli em seco e meti O Ano da Morte de Ricardo Reis na mala de viagem. Livro extraordinário. Descoberta tão boa na frescura da noite alentejana. Li-o com espanto, deliciada, feliz por o estar a ler. Fiz listas de palavras. A minha filha quis saber por que é que, volta e meia, sublinhava o livro. Estou a caçar palavras, em cada página, caço uma palavra, expliquei e pusemo-nos a olhar a caçada.

Ainda não tirei a limpo se o Saramago batia ou não na primeira mulher. Não quero saber. Reconheço a sensatez dos que dizem que interessam os livros, não os escritores, interessa pouco aquilo que pensam sobre o mundo, é irrelevante a sua vida privada. Fossemos nós, leitores, à procura, em quem lemos, de exemplos de vida, heroicidade, liberdade, valores sólidos, e ficávamos à míngua, sem nada para ler. Está tudo muito bem. É assim mesmo que deve ser. E, no entanto, foi a descoberta da intimidade, a dança das rotinas diárias, a partilha de um amor maior que a vida, essa extraordinária capacidade de encontrar o sagrado nos gestos profanos, banais e indignos, que me levou a ler um escritor, por mim, há muito, proscrito.