2013/10/04

Sala de espera

Tento ignorar as mulheres com o útero já descaído, concentro-me no livro que o Luís me emprestou pouco antes de morrer. Mal entro no gabinete percebo que a médica está tensa. Acelerada, masca uma pastilha elástica e, de tanto o morder, tem o canto do lábio superior cheio de sangue pisado. Sem sorrir, sem me olhar, manda-me despir. Abre-me as pernas e, bruscamente, enfia uma sonda vaginal. Que sorte!, explica enquanto olha o monitor, está limpinha, não precisa de fazer nenhuma raspagem. Despede-se dizendo que daqui a um mês posso voltar a engravidar. Saio do gabinete e volto a sentar-me na sala de espera. Não sinto tristeza, apenas humilhação. Sei que o meu corpo não presta, vive deslassado do resto, mas, para o suportar, sempre me agarrei à evidência da sua outra eficácia. Não chego a ser mulher, sou apenas uma fêmea, um útero, uma máquina. É assim que me vejo. É assim que os outros me vêem. Engravidei quando quis. Tive gravidezes calmas, trabalhei até à véspera do dia do parto. Gerei crianças sadias, grandes, espertas, risonhas e muito bonitas. Toda a gente mas gaba. Para mim era tão certo o nascimento deste filho que imaginei as suas feições, a cor do cabelo, o recorte das mãos. Também pensei em nomes: Ana ou Álvaro. Aproveitei até os saldos de verão para comprar roupa de grávida, duas camisolas, uma preta, outra vermelha, um vestido estampado. Tudo muito justinho e confortável como se quer numa grávida moderna.

Não percebo o que correu mal desta vez. Aconteceu no domingo. O mais novo, sentado no chão, entretinha-se com um puzzle. Preparava-me para lhe explicar que várias peças estavam mal encaixadas quando senti uma cólica violenta. Deixei-o e corri à casa de banho. Sentei-me na sanita e imediatamente escorreu um coágulo escuro, morno, do tamanho de uma uva. Soube naquele instante que dentro daquele saco estava um minúsculo lagarto arroxeado, morto, de mãos de dedos membranosos, cauda embrionária. Fiquei sem saber o que fazer. Descreio do aborto como forma de emancipação feminina e muitas vezes penso no destino desses embriões e fetos expulsos antes do tempo. Que lhes acontece? Devem ser metidos em grandes sacos de lixo pretos juntamente com rins, massas tumefactas, mucos, quistos, secreções, escarros, ossos, restos de pele. A possibilidade desses pequenos monstros serem indistintamente incinerados em fornos de altas temperaturas impressiona-me. Faz-me muita confusão. Deixei-me ali estar, de pé, a olhar o coágulo na sanita, sem conseguir descarregar o autoclismo. 

Agora, estou aqui, nesta sala de espera, limpinha, bem limpinha, como explicou a médica dos lábios trilhados, sem precisar de fazer uma raspagem. Que faço às duas camisolas? Ao vestido estampado que comprei nos saldos? Aos nomes que escolhi para o pequeno lagarto assexuado? Ao rosto redondo que lhe imaginei?