2015/03/23

Felisminas

Sinto a boca seca, o coração acelerado. Fujo para o canto da cascata. Nas águas escuras, o grande sarrajão listrado da tia Dé nada calmamente. Desdobro o papelinho que tiro da caixa de comprimidos. Aprende-se muito a ler bulas de medicamentos. Por exemplo, ainda há pouco tempo, ao ler a bula do Lexapro, aprendi que o maior legado que Freud deixou à humanidade foi a loucura. Um legado de merda, diga-se de passagem. A minha cabeça começa a andar à roda. Tento acalmar-me. Aliso com as mãos o vestido e, como na canção, procuro pensar apenas em coisas boas. Dias de sol. Jardins. Flores, passarinhos e borboletas. O cheiro dos meus filhos. Rafael sentado no balcão da casa de Corturim. Penso nas aguadeiras de Tenerife. Ágeis como cabras montanhesas, sempre vestidas de preto, galgam como ninguém as escarpas e os socalcos da ilha. Denny, por mais que se esforce, nunca conseguirá alcançá-las. Tenho vontade de chorar, mas, por muito que tente, não consigo. Parece que já não sei chorar. É isto a cura? Deixar de saber chorar? Reparo numa ténue cintilação no fundo do lago. Tiro uma moeda do bolso e atiro-a à água. Há quem não goste de advérbios de modo, mas eu, decididamente, conscientemente, assumidamente, gosto. Sei que não posso dar-me ao luxo de ser doente dos nervos. Tenho três filhos para criar. Serei saudável, sã, feliz. Já não quero comer as felisminas da outra. Fecho os olhos e formulo um desejo. Quero ser outra mulher, linda, muito linda, inteligente, rica, alegre, quero pintar as unhas dos pés de azul, usar colares, anéis, pulseiras de cabedal, quero ter três gatos, um cão e dois canários, quero fazer ioga e escrever haikus, quero tatuar uma carpa no ombro, uma andorinha no pulso e um lindo varano australiano na barriga da perna. Volto a abrir os olhos. Tudo permanece igual, o jardim, o lago da cascata, o rapaz de bronze no seu nicho de gesso dourado, as chaminés da fábrica de curtumes erguendo-se ao longe. Eu também continuo a mesma. Só o lindo sarrajão listrado da tia Dé parece ter desaparecido.