2015/04/09

Lição de anatomia

Chamava-se Basílio e sabia de pintura. Usava um anel brasonado no dedo mindinho e bonitos lenços de seda lavrada. Apesar das origens aristocratas, da sólida erudição, a sua grande paixão era a horticultura. Num baldio comunitário, junto à estação de Entrecampos, plantava couves coração de boi, nabos, favas, ervilhas e pimentos vermelhos. Não era um amante brilhante – tinha um sexo minúsculo que não me enchia a boca – mas eu gostava de o ouvir divagar sobre os arcabuzeiros da Ronda da Noite ou sobre o cadáver da Lição de Anatomia do Dr. Nicolaes Tulp. Aprendi muito com Basílio. Por exemplo, por causa das suas instrutivas conversas, ainda hoje sei que Rembrandt foi pai de três meninas e a todas deu o estranho nome de Cornélia. Pergunto-me quantas pessoas no mundo terão conhecimento desse facto extraordinário. Às vezes, depois de fazermos amor, enquanto eu ficava espojada na cama a folhear os seus livros de pintura, Basílio levantava-se, vestia um robe de popelina todo às cornucópias azuis e punha-se a assar os pimentos que colhia da sua horta. Cortava-os às tirinhas, um fio de azeite a temperar, colocava-os numa tigela e trazia-mos à cama. Eu, nua, o cabelo num desalinho, comia muito regalada. Às vezes, tal a gula, escorria-me da boca um fiozinho de azeite que Basílio se apressava a lamber com licenciosidade. Fiquei desolada quando decidiu partir para Oesta. Percebi que, para além de perder o meu pigmaleão, nunca mais na vida comeria uma salada de pimentos como a que ele me preparava. 

Levei algum tempo até encontrar um novo amante. Dei com ele por acaso à porta da Igreja de Nossa Senhora de Fátima. Mouret era o oposto de Basílio. Feio e um pouco bruto. Não demonstrou qualquer interesse quando, certa vez, a propósito já não sei do quê, lhe falei do cadáver da Lição de Anatomia do Dr. Nicolaes Tulp. Nessa ocasião, pelo modo como largou uma gargalhada forçada, levantando exageradamente os zigomas e mostrando uma fiada de dentes serrilhados, fez-me lembrar uma hiena. Não tinha erudição, mas, em contrapartida, era um homem de muita fé. Um dia, não o esperava, apareceu no quarto do hotel Ibis de batina e tonsura. Explicou-me que se ordenara beneditino, mas que isso não o impedia de continuar a encontrar-se comigo. Com o passar do tempo, fui-me apercebendo de que o meu novo amante não era um modelo de virtudes: mentia muito, tinha a mania das grandezas e recorria a estratagemas mirabolantes para que lhe emprestasse dinheiro. A sua falta de carácter naturalmente não me incomodou. A sinceridade é uma qualidade dispensável num amante. Mouret era um prodigioso mineteiro, tinha mãos grandes e exalava sempre um agradável bafo mentolado.