2013/02/21

América



(Hoje, enquanto corria, dois gordinhos, ele de botas pontudas, ela de jaqueta de napa, fodiam ao cimo da escadaria do pavilhão atlântico; mais adiante, perto do pontão dos pescadores, a outra margem tremendo em pontos de luz, uma negra chorava no ombro de um branco insuflado de músculos.)

2013/02/15

Etta Jones

2013/02/11

Holofernes


Noite dentro, enquanto a chuva mansa tamborila nas vidraças, Judite rebola na cama, resfolegando como se fosse um animal. Uma égua ou uma vaca. De lábios túmidos. Cabelos emaranhados. A pele recamada de bagas de suor. Parece uma planta orvalhada. Uma deusa ignota, imperfeita. Espera Judite que a escuridão do quarto tome a forma do corpo de um homem.

Pensa Judite: quando a escuridão e o vazio se condensarem em corpo de homem, por fim, amainarei. A chuva continuará, mansa, a bater nas vidraças. Com calma, olharei para os ciprestes que lá fora permanecerão hirtos. Olharei para o homem deitado ao meu lado. Será grande como sempre o imaginei. Cabelo comprido. Barba negra como a escuridão que lhe deu corpo. Olhos de lobo, de lince, de leão, de cão esfaimado. Um bafo quente, nebuloso, sair-lhe-á de dentro. Será como um animal feroz sem açaime ou jaula.

Judite continua a pensar: tirarei a camisa que me cobre o corpo e deixarei que o animal-homem-escuridão me tome. Este é o meu corpo. Tomai-o em nome de Deus. Ele tomar-me-á como os bichos. Saciado, descansará, então, sobre os lençóis ainda mornos. Dormitará com um sorriso de anjo boçal no rosto. Em silêncio, pegarei no machado que se esconde por baixo da cama. Ergue-lo-ei. Com um golpe, com um único golpe, cortar-lhe-ei a cabeça. Ele abrirá os olhos segundos antes do cutelo o penetrar. Um grito mudo perder-se-á pelo quarto. Baterá nas vidraças fechadas como moscas cegas. Haverá sangue derramado pela cama. Um líquido viscoso, denso, quase preto. Quando a sua cabeça rolar para o chão adormecerei. Ao lado do corpo decepado. Antes, porém, direi o seu nome: Holofernes.

( e o Joaquim, que hoje cheira a limão, vem mostrar-me as mãos. Depois trata  do coração do meu cristo.)


2013/02/10

Conimbricense




(Contaram-me que tem uma namorada nova, conimbricense. Deve ser cá um camafeu. Quase velha, com papos nos olhos, carnes flácidas, prazo de validade expirado, conimbricense. E eu, ainda de glúteos firmes, que o amo desde o ciclo preparatório, quando a Prof. Maria dos Anjos nos deu a ouvir o Barnabé, eu que tenho filhos que identificam as suas canções aos primeiros acordes e que os amo muito mais por essa razão, eu que quis perder os três a escutá-lo, que quis entrar na igreja a ouvi-lo, que me lembro dele em cada momento importante da minha vida, que escolhi para me tratar do divórcio, sobretudo por isso, o colega de faculdade que me gravou o canto da boca e o campolide, eu que detesto todos os que o ouvem porque acredito que as canções que compôs são só minhas. Só eu as sei escutar.)

2013/02/07

Saudade



(Voltei a almoçar ao lado dos informáticos do quinto piso.)

2013/02/06

Bukowski


Ando a ler sem grande entusiasmo um livro do Charles Bukowski. É uma sucessão de fodas, bebedeiras e alucinações. Não há mais nada. A temática interessa-me: as bebedeiras porque quem me conhece sabe que não sou alcoólica porque calhou não o ser (tenho tudo para ser alcoólica), o sexo porque enfim é um assunto que preciso resolver (recuso entregar-me à desistência), as drogas porque representam a miséria e a indigência (sempre gostei de indigentes, assim como há quem goste de cães e gatos). Mas tudo o que é demais enjoa. Por vezes, no entanto, o tal Bukowski tem assim uns repentes de clarividência, não diz nada de novo, são quase banalidades o que escreve, mas sabe-me bem lê-las, às banalidades, no meio de tanto broche, tanta cona e tanto caralho entesado. Hoje, no refeitório, ao lado da Rosa das olheiras fundas e do João das sopas, li assim: “Mercedes virou o rosto para mim. Beijei-a. Beijar é muito mais íntimo do que foder. É por isso que nunca gostei que as minhas namoradas beijassem outros homens. Preferia que fodessem com eles.” Não é nada de especial. É claro que beijar é mais íntimo do que foder. Mas li e soube-me bem ler, ali, no refeitório, ao lado do grupo do informáticos do quinto piso. Até me esqueci do desgosto fundo que tenho sentido desde que descobri que o rapaz das arcadas já não trabalha no meu edifício. Não sei como vou aguentar tamanha solidão no meu gabinete de azulejos verde água.

2013/02/04

Marvin Gaye

Aninhas e o chá


Entrou no salão. O dono do cabeleireiro veio recebê-la. Cumprimentou-a com um beijinho e ofereceu-lhe um chá. Aninhas recusou com delicadeza e deixou-se estar a falar junto do balcão da entrada. O dono era um homem gordo, muito expansivo, cuja afectação se justificava pela clientela que conseguira reunir ao longo dos anos: jornalistas, deputadas, uma ou outra ministra, escritoras, professoras universitárias, algumas actrizes consagradas, mas nem uma única dessas celebridades que aparecem nas capas de revista por confundir a sua profissão com meretrício. Aninhas perguntou-lhe pelo companheiro, operado há pouco tempo. Não o fazia com sinceridade, não era genuína a sua preocupação. Na verdade, sentia certa repulsa quando via o dono do cabeleireiro abraçar o namorado, um rapaz novo que trabalhava no salão como colorista. Sacrificava, porém, o seu conservadorismo ao estatuto que aquela aparente intimidade lhe conferia. O salão tinha uma clientela muito selecta. No entanto, apenas um círculo muito restrito, a que Aninhas pertencia, tinha direito ao convite para o chá, servido numa porcelana finíssima, quase transparente.

2013/02/03

Serão


Deitei os miúdos. Vesti o sari branco que a tia Amália me ofereceu. Enchi os braços de pulseiras de vidro. Prendi o cabelo com grampos. Pintei os olhos carregados de preto. Colei um bindi brilhante entre as sobrancelhas. Olhei-me no espelho. Achei-me bonita, simplesmente bonita. Abri um garrafa de vinho. Fui fumar para o estendal. 

Ângelus


A tia Maria, sentada no alpendre, balouça as pernas magras. Sacode constantemente os braços para enxotar os mosquitos. Mordisca uma fatia de bebinca que a criada fez pela manhã. Vigia as brincadeiras das crianças no jardim enquanto fala. Explica que às netas, por serem raparigas, exige comedimento nos jogos e nos folguedos. Se não crescerem delicadas, com bons modos, nenhum rapaz católico brâmane quererá casar com elas. Volta e meia, quando alguma exagera na cabriolice, dá um grito. Ria, a menina-balão, tem voz de trovão. Quer aprender com Elaine, sua prima, os primeiros passos da Bharatanatyam. Não é fácil. Há que ter um corpo obediente, olhos expressivos, mãos maleáveis que saibam falar como os bichos. No preciso instante em as meninas se preparam para bater os pés no chão, dando início à sua dança, ouvem-se os sinos. São 18 horas. O dia está prestes a transformar-se em noite. É a hora mágica do Ângelus. A minha tia interrompe as brincadeiras do jardim e, num inglês áspero, lembra as obrigações da fé. Vira-se para a igreja de Santa Rita, cujos pináculos se avistam do outro lado da estrada e, muito séria, desfia uma ladainha de palavras. Calam-se as crianças. As minhas também. Calam-se as gralhas. Calam-se os esquilos que vivem na mangueira. Cala-se o vento no tamarindo. Cala-se a mulher do sari vermelho e das botas de borracha que cheira a estrume. Calam-se os deuses domésticos que vivem no jardim. Estão habituados às orações da minha tia a um deus desconhecido. Calo-me eu. Tudo se aquieta. No silêncio da aldeia só se escuta a voz da minha tia que embala o entardecer. O mundo sossega por breves instantes. Quando termina a oração, a tia Maria sorri e limpa uma lágrima que pingou da sua vista doente. As crianças retomam as brincadeiras no jardim. Os deuses escondem-se nos arbustos e, no crepúsculo, observam Ria, a menina-balão, que bate os pés na laje morna, imitando Parvati, a consorte dançarina.

2013/01/27

Pai



(Esqueço sempre os teus erros; os meus ficam cá dentro, espinhos enterrados na carne. As noites em Deli, sentados na cama, tu, como se fosses um miúdo pequeno, a contar a história da tua vida, os nossos terrenos de Dicarpale, tão bonitos, sobre a várzea abandonada, a viagem pelo Rajastão com o motorista dos Himalaias que cuspia escarros vermelhos de supari,  a ladainha escutada na capelinha perto dos campos onde levavas os búfalos a pastar, as  tuas conversas com Vixnu, o mandukar hindu desdentado, as masalas dosas que me trouxeste para jantar nos dias em que fiquei a escrever, o abraço longo depois da primeira discussão. Amo-te.)

2013/01/12

Gold Flake

Escuto o JP Simões na noite goesa. São quase dez horas, o meu pai já dorme, corpo moído da confusão das repartições públicas de Margão; fumo um Gold Flake na varanda do meu quarto, as gralhas estão caladas e Chitra, a rapariga que trata das vacas do Marlindo, lá em baixo, queima um pau de incenso junto do tulsi que a tia Maria, depois de consultar o padre da aldeia, consentiu que plantasse.  

2013/01/07

2013/01/04

Agra


Escrevo no átrio do hotel Agra Mahal, pardieiro imundo, a banheira cheia de sujidade, os lençóis puídos, húmidos, rasgados, com nódoas dos clientes anteriores. Há um altar a Hanuman, o deus macaco, outro a Ganesh, o deus elefante, um grande lustre de pingentes vermelhos ao cimo da escadaria. Cheira a incenso e o empregado do hotel sobe e desce as escadas com ferramentas ferrugentas nas mãos. Parece haver sempre qualquer coisa para arranjar neste lugar. Está sentado ao meu lado o filho do dono do hotel, um menino de três anos que cheira a sementes de anis e a pó de talco. Tem uns olhitos muito redondos e doces. Corre para o balcão da recepção, dá uma gargalhada e vem numa corrida enterrar-se no meu colo. Fala em hindi, não percebo uma palavra do que diz, faço-lhe festas no nariz, ele volta a rir. Tenho saudades dos meus filhos.

2012/12/24

Índia

Rafael


A camioneta chegou a Pangim depois da hora da sesta, no preciso instante em que o sol começava a decair e a cidade se preparava para a frescura do entardecer. O início da noite traz às cidades do oriente uma aceleração de corpos e movimentos, luzes explodem por todos os cantos como fogos de artifício, misturam-se as conversas das pessoas com as conversas da gralhas que descansam nas copas das árvores enquanto debicam frutos maduros que pingam mel para os passeios. O início da noite não marca o fim do dia. Na Índia sempre tive a sensação de que o dia continua noite fora. Só termina quando fechamos os olhos. Procurei, no meio da multidão do terminal, Rafael, o amigo do meu pai, a convite de quem viera a Pangim. Não me deixou sozinha por muito tempo. Conheci Rafael o ano passado, no crepúsculo nacarado de Curtorim. É um goês alto. Tem a robustez de um herói grego. Usa o cabelo branco puxado para trás e óculos de aros pretos a marcar-lhe pesadamente o rosto. É um gigante delicado. É assim que o vejo. Corremos ao bairro das Fontainhas onde estava hospedado em casa de um amigo. “Venha, venha. O meu amigo vive rodeado de coisas preciosas.”, disse ao chegarmos a uma casa antiga cor de vinho. Perante o meu olhar inquisidor esclareceu: “Antiguidades!” Percival Noronha, o dono da casa, é mais velho do que Rafael, rondará os oitenta anos. Traz o corpo frágil. Há-de ter os ossos porosos e rendilhados. Ofereceu-me chá e um bolo escuro de frutas que vinha embrulhado em papel pardo. Caetano, o empregado que nos serviu, tinha o rosto puído pelos anos. Olhando em redor vislumbrei vestígios de uma Goa que desaparece com lentidão. Como um corpo que se afunda devagar nas águas densas e movediças de um pântano. As paredes esmaecidas com retratos de gente já morta. O mobiliário indo-português, cheio de arabescos e floreados, a fazer lembrar contorcionistas de circo. Livros e mapas espalhados por todo o lado. Loiças chinesas antigas, com desenhos de pagodes e pinheiros mansos, dormitavam nas vitrinas dos louceiros. Percival pediu desculpa pela desarrumação da sala e contou a sua história: os cargos públicos exercidos na Índia de Salazar, o interesse pela história de Goa, os convites das universidades portuguesas para leccionar, as recepções organizadas para os presidentes Mário Soares e Cavaco Silva, a paixão pela astronomia. De repente, interrompeu o seu relato e levantou-se, dizendo que estava na hora do lançamento do livro. Era para isso, para o lançamento de um livro na Fundação Oriente, que eu viera ao encontro de Rafael. Ao entrar no jardim da fundação, que fica na rua onde Percival mora, reparei que as pessoas se movimentavam com a cerimónia própria daquelas ocasiões. Avistei apenas dois brancos: um homem cujo rosto me pareceu vagamente familiar e uma mulher que espantava pela informalidade. O cabelo curto num desalinho. A ausência de pulseiras, brincos ou anéis. A roupa larga e sem corte. Achei-a feia, demasiado pálida. Fumava. Esse gesto pareceu-me insuportavelmente masculino e inadequado.

2012/12/12

Quimioterapia

-  A Graça chorou tanto hoje de manhã.
- Tem passado muito!
- Custa-me vê-la assim.
- Uma mártir!
- Contou que o marido continua a fazer-lhe a vida negra.
- A maldade está-lhe no sangue…
- Diz-lhe coisas horríveis.
- As tareias de morte que tem apanhado!
- Ela nunca me diz directamente que o marido lhe bate.
- Envergonha-se. Não quer aborrecer-te com os problemas dela.
- Mas devia.
- Mesmo assim, fraquinho da quimioterapia, continua a bater-lhe!
- Nojento.
- Era melhor que morresse….
- Não digas isso.
- Não digo isso? Acabava-se o martírio.
- É sempre horrível desejar a morte de alguém.
- Achas que ela, no fundo, bem lá no fundo, não deseja o mesmo?
- Acho que sim. Se ele morresse era um alívio.
- Claro que era! Os homens são todos uns cabrões, filha.
- Pois são, mãe.


2012/12/11

Sinos

Há dois sinos na minha vida. O sino da igreja de Nossa Senhora de Fátima que toca ao meio-dia e o sino da igreja de Moscavide que repica quando saio da estação de comboios e atravesso o parque de estacionamento à procura do carro. São dois sinos mansos, obedientes, disciplinados. É preciso estar com atenção para os escutar no turbilhão da cidade.

Irmã


Certa vez instruí a minha irmã mais nova sobre o meu funeral. Uma mulher deve ser previdente e cuidar de todos os seus assuntos, incluindo a morte. Se há coisa que me aflige é imaginar-me enterrada num cemitério com vista para a cril ou para a crel ou para a radial de Benfica. Junto a um retail park. Pedi-lhe que me enterrasse no cemitério da aldeia, perto dos nossos avós, onde, mesmo morta, possa sentir o cheiro das figueiras e escutar o ronco das motorizadas que, pela tarde, levam os velhos de volta para os montes. Que tratasse de me arranjar uma campa rasa, com uma lápide branca, sem fotografias ou epitáfios. Que me vestisse a saia antiga, rodada, de veludo cotelê, me apanhasse o cabelo numa trança e colocasse nas orelhas as arrecadas incas que nunca fui capaz de lhe oferecer. Se for tempo das dálias e dos cravos túnicos que peça licença à vizinha Teresa e à Preciosa dos queijos, a que é belfa e usa sempre um chapelinho de palha, para os apanhar dos canteiros e os coloque numa jarrinha branca. Fi-la prometer que me enterraria sem a presença de estranhos. Quero um funeral selecto. Com quem gosto. E preciso. Pai, mãe, tia, irmãos, filhos, sobrinhos, as primas da aldeia. Mais ninguém. Pedi-lhe, ainda, que cantasse o poema: Quando eu morrer batam em latas, rompam aos saltos e aos pinotes, façam estalar no ar chicotes, chamem palhaços e acrobatas! Que o meu caixão vá sobre um burro ajaezado à Andaluza... A um morto nada se recusa. E eu quero por força ir de burro. Ai dela que não me faça as vontades! Pobre e querida maninha. Hei-de voltar, pior do que fui, um espectro medonho e terrível, para lhe fazer a vida negra.

(A minha irmã anda triste, a precisar de amparo. É uma novidade. Sempre foi ela que cuidou de nós.)

Correr



(A minha filha, enfiada no seu edredão, livro pousado nas mãos de dedos esguios, pergunta-me o que gosto mais de fazer na vida.)