(Hoje, enquanto corria, dois gordinhos, ele de botas pontudas, ela de jaqueta de napa, fodiam ao cimo da escadaria do pavilhão atlântico; mais adiante, perto do pontão dos pescadores, a outra margem tremendo em pontos de luz, uma negra chorava no ombro de um branco insuflado de músculos.)
Sou Ana de cabo a tenente/ Sou Ana de toda patente, das Índias/ Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada/ Sou Ana, obrigada/ Até amanhã, sou Ana/ Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos/ Sou Ana de Amsterdam.
2013/02/15
2013/02/11
Holofernes
Noite dentro, enquanto a chuva mansa tamborila nas vidraças, Judite rebola na cama, resfolegando como se fosse um animal. Uma égua ou uma vaca. De lábios túmidos. Cabelos emaranhados. A pele recamada de bagas de suor. Parece uma planta orvalhada. Uma deusa ignota, imperfeita. Espera Judite que a escuridão do quarto tome a forma do corpo de um homem.
Pensa Judite: quando a escuridão e o vazio se condensarem em corpo de homem, por fim, amainarei. A chuva continuará, mansa, a bater nas vidraças. Com calma, olharei para os ciprestes que lá fora permanecerão hirtos. Olharei para o homem deitado ao meu lado. Será grande como sempre o imaginei. Cabelo comprido. Barba negra como a escuridão que lhe deu corpo. Olhos de lobo, de lince, de leão, de cão esfaimado. Um bafo quente, nebuloso, sair-lhe-á de dentro. Será como um animal feroz sem açaime ou jaula.
Judite continua a pensar: tirarei a camisa que me cobre o corpo e deixarei que o animal-homem-escuridão me tome. Este é o meu corpo. Tomai-o em nome de Deus. Ele tomar-me-á como os bichos. Saciado, descansará, então, sobre os lençóis ainda mornos. Dormitará com um sorriso de anjo boçal no rosto. Em silêncio, pegarei no machado que se esconde por baixo da cama. Ergue-lo-ei. Com um golpe, com um único golpe, cortar-lhe-ei a cabeça. Ele abrirá os olhos segundos antes do cutelo o penetrar. Um grito mudo perder-se-á pelo quarto. Baterá nas vidraças fechadas como moscas cegas. Haverá sangue derramado pela cama. Um líquido viscoso, denso, quase preto. Quando a sua cabeça rolar para o chão adormecerei. Ao lado do corpo decepado. Antes, porém, direi o seu nome: Holofernes.
( e o Joaquim, que hoje cheira a limão, vem mostrar-me as mãos. Depois trata do coração do meu cristo.)
2013/02/10
Conimbricense
(Contaram-me que tem uma namorada nova, conimbricense. Deve ser cá um camafeu. Quase velha, com papos nos olhos, carnes flácidas, prazo de validade expirado, conimbricense. E eu, ainda de glúteos firmes, que o amo desde o ciclo preparatório, quando a Prof. Maria dos Anjos nos deu a ouvir o Barnabé, eu que tenho filhos que identificam as suas canções aos primeiros acordes e que os amo muito mais por essa razão, eu que quis perder os três a escutá-lo, que quis entrar na igreja a ouvi-lo, que me lembro dele em cada momento importante da minha vida, que escolhi para me tratar do divórcio, sobretudo por isso, o colega de faculdade que me gravou o canto da boca e o campolide, eu que detesto todos os que o ouvem porque acredito que as canções que compôs são só minhas. Só eu as sei escutar.)
2013/02/07
2013/02/06
Bukowski
Ando a ler sem grande entusiasmo
um livro do Charles Bukowski. É uma sucessão de fodas, bebedeiras e alucinações.
Não há mais nada. A temática interessa-me: as bebedeiras porque quem me conhece
sabe que não sou alcoólica porque calhou não o ser (tenho tudo para ser alcoólica),
o sexo porque enfim é um assunto que preciso resolver (recuso entregar-me à
desistência), as drogas porque representam a miséria e a indigência (sempre
gostei de indigentes, assim como há quem goste de cães e gatos). Mas tudo o que
é demais enjoa. Por vezes, no entanto, o tal Bukowski tem assim uns repentes de
clarividência, não diz nada de novo, são quase banalidades o que escreve, mas
sabe-me bem lê-las, às banalidades, no meio de tanto broche, tanta cona e tanto
caralho entesado. Hoje, no refeitório, ao lado da Rosa das olheiras fundas e do
João das sopas, li assim: “Mercedes virou o rosto para mim. Beijei-a. Beijar é
muito mais íntimo do que foder. É por isso que nunca gostei que as minhas
namoradas beijassem outros homens. Preferia que fodessem com eles.” Não é nada
de especial. É claro que beijar é mais íntimo do que foder. Mas
li e soube-me bem ler, ali, no refeitório, ao lado do grupo do informáticos do
quinto piso. Até me esqueci do desgosto fundo que tenho sentido desde que
descobri que o rapaz das arcadas já não trabalha no meu edifício. Não sei como
vou aguentar tamanha solidão no meu gabinete de azulejos verde água.
2013/02/04
Aninhas e o chá
Entrou no salão. O dono do cabeleireiro
veio recebê-la. Cumprimentou-a com um beijinho e ofereceu-lhe um chá. Aninhas
recusou com delicadeza e deixou-se estar a falar junto do balcão da entrada. O
dono era um homem gordo, muito expansivo, cuja afectação se justificava pela
clientela que conseguira reunir ao longo dos anos: jornalistas, deputadas, uma
ou outra ministra, escritoras, professoras universitárias, algumas actrizes
consagradas, mas nem uma única dessas celebridades que aparecem nas capas de
revista por confundir a sua profissão com meretrício. Aninhas perguntou-lhe
pelo companheiro, operado há pouco tempo. Não o fazia com sinceridade, não era
genuína a sua preocupação. Na verdade, sentia certa repulsa quando via o dono
do cabeleireiro abraçar o namorado, um rapaz novo que trabalhava no salão como
colorista. Sacrificava, porém, o seu conservadorismo ao estatuto que aquela
aparente intimidade lhe conferia. O salão tinha uma clientela muito selecta. No
entanto, apenas um círculo muito restrito, a que Aninhas pertencia, tinha
direito ao convite para o chá, servido numa porcelana finíssima, quase
transparente.
2013/02/03
Serão
Deitei os miúdos. Vesti o sari branco que a tia Amália me
ofereceu. Enchi os braços de pulseiras de vidro. Prendi o cabelo com grampos. Pintei os
olhos carregados de preto. Colei um bindi brilhante entre as sobrancelhas. Olhei-me no espelho. Achei-me bonita, simplesmente bonita. Abri
um garrafa de vinho. Fui fumar para o estendal.
Ângelus
A tia Maria, sentada no alpendre, balouça as
pernas magras. Sacode constantemente os braços para enxotar os mosquitos.
Mordisca uma fatia de bebinca que a criada fez pela manhã. Vigia as
brincadeiras das crianças no jardim enquanto fala. Explica que às netas, por
serem raparigas, exige comedimento nos jogos e nos folguedos. Se não crescerem
delicadas, com bons modos, nenhum rapaz católico brâmane quererá casar com
elas. Volta e meia, quando alguma exagera na cabriolice, dá um grito. Ria, a
menina-balão, tem voz de trovão. Quer aprender com Elaine, sua prima, os
primeiros passos da Bharatanatyam. Não é fácil. Há
que ter um corpo obediente, olhos expressivos, mãos maleáveis que saibam falar
como os bichos. No preciso instante em as meninas se preparam para bater os pés
no chão, dando início à sua dança, ouvem-se os sinos. São 18 horas. O dia está prestes
a transformar-se em noite. É a hora mágica do Ângelus. A minha tia
interrompe as brincadeiras do jardim e, num inglês áspero, lembra as obrigações
da fé. Vira-se para a igreja de Santa Rita, cujos pináculos se avistam do outro
lado da estrada e, muito séria, desfia uma ladainha de palavras. Calam-se as
crianças. As minhas também. Calam-se as gralhas. Calam-se os esquilos que vivem
na mangueira. Cala-se o vento no tamarindo. Cala-se a mulher do sari vermelho e
das botas de borracha que cheira a estrume. Calam-se os deuses domésticos que
vivem no jardim. Estão habituados às orações da minha tia a um deus
desconhecido. Calo-me eu. Tudo se aquieta. No silêncio da aldeia só se escuta a
voz da minha tia que embala o entardecer. O mundo sossega por breves instantes.
Quando termina a oração, a tia Maria sorri e limpa uma lágrima que pingou da
sua vista doente. As crianças retomam as brincadeiras no jardim. Os deuses
escondem-se nos arbustos e, no crepúsculo, observam Ria, a menina-balão, que
bate os pés na laje morna, imitando Parvati, a consorte dançarina.
2013/01/27
Pai
(Esqueço sempre os teus erros; os meus ficam cá dentro, espinhos enterrados na carne. As noites em Deli, sentados na cama, tu, como se fosses um miúdo pequeno, a contar a história da tua vida, os nossos terrenos de Dicarpale, tão bonitos, sobre a várzea abandonada, a viagem pelo Rajastão com o motorista dos Himalaias que cuspia escarros vermelhos de supari, a ladainha escutada na capelinha perto dos campos onde levavas os búfalos a pastar, as tuas conversas com Vixnu, o mandukar hindu desdentado, as masalas dosas que me trouxeste para jantar nos dias em que fiquei a escrever, o abraço longo depois da primeira discussão. Amo-te.)
2013/01/12
Gold Flake
Escuto o JP Simões na noite goesa. São quase dez horas, o meu pai já dorme, corpo moído da confusão das repartições públicas de Margão; fumo um Gold Flake na varanda do meu quarto, as gralhas estão caladas e Chitra, a rapariga que trata das vacas do Marlindo, lá em baixo, queima um pau de incenso junto do tulsi que a tia Maria, depois de consultar o padre da aldeia, consentiu que plantasse.
2013/01/07
2013/01/04
Agra
Escrevo
no átrio do hotel Agra Mahal, pardieiro imundo, a banheira cheia de
sujidade, os lençóis puídos, húmidos, rasgados, com nódoas dos clientes
anteriores. Há um altar a Hanuman, o deus macaco, outro a Ganesh, o deus
elefante, um grande lustre de pingentes vermelhos ao cimo da escadaria. Cheira
a incenso e o empregado do hotel sobe e desce as escadas com ferramentas
ferrugentas nas mãos. Parece haver sempre qualquer coisa para arranjar neste
lugar. Está sentado ao meu lado o filho do dono do hotel, um menino de três
anos que cheira a sementes de anis e a pó de talco. Tem uns olhitos muito
redondos e doces. Corre para o balcão da recepção, dá uma gargalhada e vem numa
corrida enterrar-se no meu colo. Fala em hindi, não percebo uma palavra do que
diz, faço-lhe festas no nariz, ele volta a rir. Tenho saudades dos meus
filhos.
2012/12/24
Rafael
A
camioneta chegou a Pangim depois da hora da sesta, no preciso instante em que o sol começava a decair e a cidade se preparava para a frescura
do entardecer. O início da noite traz às cidades do oriente uma aceleração de
corpos e movimentos, luzes explodem por todos os cantos como fogos de
artifício, misturam-se as conversas das pessoas com as conversas da gralhas que
descansam nas copas das árvores enquanto debicam frutos maduros que pingam mel
para os passeios. O início da noite não marca o fim do dia. Na Índia sempre
tive a sensação de que o dia continua noite fora. Só termina quando fechamos os
olhos. Procurei, no meio da multidão do terminal, Rafael, o amigo do meu pai, a
convite de quem viera a Pangim. Não me deixou sozinha por muito tempo. Conheci
Rafael o ano passado, no crepúsculo nacarado de Curtorim. É um goês alto.
Tem a robustez de um herói grego. Usa o cabelo branco puxado para trás e óculos
de aros pretos a marcar-lhe pesadamente o rosto. É um gigante delicado. É assim
que o vejo. Corremos ao bairro das Fontainhas onde estava hospedado em casa de
um amigo. “Venha,
venha. O meu amigo vive rodeado de coisas preciosas.”, disse ao chegarmos a uma casa antiga cor de
vinho. Perante o meu olhar inquisidor esclareceu: “Antiguidades!” Percival
Noronha, o dono da casa, é mais velho do que Rafael, rondará os oitenta anos.
Traz o corpo frágil. Há-de ter os ossos porosos e rendilhados. Ofereceu-me
chá e um bolo escuro de frutas que vinha embrulhado em papel pardo. Caetano, o
empregado que nos serviu, tinha o rosto puído pelos anos. Olhando em redor
vislumbrei vestígios de uma Goa que desaparece com lentidão. Como um corpo que
se afunda devagar nas águas densas e movediças de um pântano. As paredes
esmaecidas com retratos de gente já morta. O mobiliário indo-português, cheio
de arabescos e floreados, a fazer lembrar contorcionistas de circo. Livros e
mapas espalhados por todo o lado. Loiças chinesas antigas, com desenhos de
pagodes e pinheiros mansos, dormitavam nas vitrinas dos louceiros. Percival
pediu desculpa pela desarrumação da sala e contou a sua história: os cargos públicos
exercidos na Índia de Salazar, o interesse pela história de Goa, os convites
das universidades portuguesas para leccionar, as recepções organizadas para os
presidentes Mário Soares e Cavaco Silva, a paixão pela astronomia. De repente,
interrompeu o seu relato e levantou-se, dizendo que estava na hora do
lançamento do livro. Era para isso, para o lançamento de um livro na Fundação
Oriente, que eu viera ao encontro de Rafael. Ao entrar no jardim da fundação,
que fica na rua onde Percival mora, reparei que as pessoas se movimentavam com
a cerimónia própria daquelas ocasiões. Avistei apenas dois brancos: um homem
cujo rosto me pareceu vagamente familiar e uma mulher que espantava pela
informalidade. O cabelo curto num desalinho. A ausência de pulseiras, brincos
ou anéis. A roupa larga e sem corte. Achei-a feia, demasiado pálida. Fumava. Esse gesto
pareceu-me insuportavelmente masculino e inadequado.
2012/12/12
Quimioterapia
- A Graça chorou tanto hoje de manhã.
- Tem passado muito!
- Custa-me vê-la assim.
- Uma mártir!
- Contou que o marido continua a fazer-lhe a
vida negra.
- A maldade está-lhe no sangue…
- Diz-lhe coisas horríveis.
- As tareias de morte que tem apanhado!
- Ela nunca me diz directamente que o marido lhe bate.
- Envergonha-se. Não quer aborrecer-te com os problemas dela.
- Mas devia.
- Mesmo assim, fraquinho da quimioterapia, continua a bater-lhe!
- Nojento.
- Era melhor que morresse….
- Não digas isso.
- Não digo isso? Acabava-se o martírio.
- É sempre horrível desejar a morte de alguém.
- Achas que ela, no fundo, bem lá no fundo, não deseja o mesmo?
- Acho que sim. Se ele morresse era um alívio.
- Claro que era! Os homens são todos uns cabrões, filha.
- Pois são, mãe.
2012/12/11
Sinos
Há dois sinos na minha vida. O sino da igreja de Nossa Senhora de Fátima que toca ao meio-dia e o sino da igreja de Moscavide que repica quando saio da estação de comboios e atravesso o parque de estacionamento à procura do carro. São dois sinos mansos, obedientes, disciplinados. É preciso estar com atenção para os escutar no turbilhão da cidade.
Irmã
Certa
vez instruí a minha irmã mais nova sobre o meu funeral. Uma mulher deve ser
previdente e cuidar de todos os seus assuntos, incluindo a morte. Se há coisa
que me aflige é imaginar-me enterrada num cemitério com vista para a cril ou
para a crel ou para a radial de Benfica. Junto a um retail park. Pedi-lhe que me enterrasse no cemitério da aldeia, perto dos nossos
avós, onde, mesmo morta, possa sentir o cheiro das figueiras e escutar o ronco
das motorizadas que, pela tarde, levam os velhos de volta para os montes. Que
tratasse de me arranjar uma campa rasa, com uma lápide branca, sem fotografias
ou epitáfios. Que me vestisse a saia antiga, rodada, de veludo cotelê, me
apanhasse o cabelo numa trança e colocasse nas orelhas as arrecadas incas que
nunca fui capaz de lhe oferecer. Se for tempo das dálias e dos cravos túnicos
que peça licença à vizinha Teresa e à Preciosa dos queijos, a que é belfa e usa
sempre um chapelinho de palha, para os apanhar dos canteiros e os coloque numa
jarrinha branca. Fi-la prometer que me enterraria sem a presença de estranhos.
Quero um funeral selecto. Com quem gosto. E preciso. Pai, mãe, tia, irmãos,
filhos, sobrinhos, as primas da aldeia. Mais ninguém. Pedi-lhe, ainda, que
cantasse o poema: Quando
eu morrer batam em latas, rompam aos saltos e aos pinotes, façam estalar no ar
chicotes, chamem palhaços e acrobatas! Que o meu caixão vá sobre um burro
ajaezado à Andaluza... A um morto nada se recusa. E eu quero por força ir de
burro. Ai dela que não me faça
as vontades! Pobre e querida maninha. Hei-de voltar, pior do que fui, um
espectro medonho e terrível, para lhe fazer a vida negra.
(A minha irmã anda triste, a precisar de amparo. É uma novidade. Sempre foi ela que cuidou de nós.)
Subscribe to:
Posts (Atom)