2009/02/22

Alcibíades

Vou descansar aqui. Aqui é um bom sítio para descansar. Comprei bilhete para a última paragem e tomei o comprimido que a doutora do centro de saúde me receitou para dormir. A minha filha está sempre a dizer que a bebé dela adormece mal o carro começa a andar. O mais certo é que me aconteça o mesmo. Ainda a camioneta não saiu da gare e já eu hei-de estar a dormir profundamente. O senhor do guichet disse que a viagem até ao Montijo dura cerca de duas horas. Tanto tempo, disse-lhe eu toda contente, já a imaginar-me com a cabeça encostada ao vidro a dormir durante duas horas. É que a camioneta dá a volta por Alcochete, por causa do centro comercial, e vai parando pelo caminho, explicou o senhor do guichet. Duas horas é muito tempo. Dá para descansar o corpo e a cabeça. Hei-de dormir descansadinha. Sem ouvir os ruídos do prédio e a respiração pesada do meu Alcibíades. É engraçado, mas só depois de morto é que lhe comecei a sentir a respiração pesada. Quando era vivo dormia que nem um anjinho. Não tugia nem mugia. Quietinho e silencioso como uma estátua de pedra. Depois de morto é que começou a ressonar tão alto que não me deixa dormir. E dá umas bufas mal cheirosos que empestam o quarto todo. Diz que é próprio dos mortos, dar assim bufas com cheiro de enxofre. Coitadito do meu Alcibíades! Quem o viu e quem o vê. Quando estava vivo dormia como se estivesse morto, nem o notava na cama, agora que está morto dorme como se estivesse ainda vivo! Sempre foi um homem muito complicado. Como o nome que tinha. Alcibíades. Agora vou fechar os olhos. Depois vou adormecer. Depois vou esperar que alguém me toque no ombro, me diga, olhe, senhora, psssst, acorde, chegámos ao terminal