2011/07/20

Agualva-Cacém

O Sr. Guia está reformado há meia dúzia de anos. Sempre que vem ao serviço almoçar com a Laurentina da correspondência, sobe ao nono piso para me ver. A fugir, como quem cumpre uma obrigação, pergunta pelos filhos, pelo trabalho. Depois, a conversa é sempre a mesma: uma pena vivermos tão longe, tanto que gostava de te treinar, correr sozinha é bom, faz bem ao corpo e à alma, é assim uma espécie de bálsamo, mas não se avança, é preciso companhia para alargar a passada, para aumentar o ritmo, para não desistir, fazer repetições, aprender a respirar, se viesses correr comigo, num instantinho, te punha a correr a meia maratona. O Sr. Guia mora no Cacém, na outra ponta do burgo, é um atleta por quem tenho muita admiração. Com 67 anos, corre maratonas. Quando me vem com a conversa dos treinos, atiro-lhe sempre com a desculpa dos filhos, então o senhor não sabe que estou sozinha com três crianças, a calendarização para mim é um luxo, não tenho tempo sequer para respirar quanto mais para me comprometer, quando arranjo quem fique um bocadinho com eles, uma tia, uma prima, os avós, o pai, calço os ténis e corro. Pequeno, não é maior do que eu, muito magro, um bigodinho fino, o Sr. Guia tem uma voz antiquada, colocada, ligeiramente aguda, solta muitos ahs! Mal me calo, é com essa voz antiga que remata a conversa, ai, sua malandreca, estás é a arranjar desculpas para não treinares em condições! Acompanho-o ao elevador, pergunto-lhe pelas provas, pelos tempos, o meu interesse não é genuíno, mas gosto de lhe retribuir a generosidade e o entusiasmo.

Vem a conversa do Sr. Guia a propósito do R. que me levou os miúdos para a praia. Uma semana inteira sem os ver, os três ausentes, assim de uma assentada, não estou habituada, não sei que fazer com o tempo. Despedi-me deles e, mal virei costas, vi a solidão encostada à ombreira da porta do meu apartamento, prontinha para entrar e fazer-me companhia, oferecida, langorosa, como se estivesse sentada na sala de apresentação de um prostíbulo. Fingi não a ver e fechei-lhe a porta na cara, ainda a ouvi dizer ai, com a força, pensei eu, magoei-a no septo nasal, vulgo cana do nariz, feita de ossos moles, cartilagens alares, dói que se farta quanto batemos em algum lado. Entrei, pois, em casa, disposta a não deixar a solidão fazer de mim gato e sapato. Telefonei ao Sr. Guia a perguntar-lhe se ainda me queria treinar. Que sim, olha a pergunta, era um homem de palavra, tinha até muito gosto, que fosse ter com ele no dia seguinte, apanhas o comboio e saias em Agualva-Cacém, vou buscar-te à estação. Assim tem sido, apanho o comboio, lancho na cozinha da D. Cremilde, onde há flores de plástico, um naperão de linha mesclada em cima de uma mesa lacada, um televisor sempre ligado na tvi, como uma sandes de marmelada – é para teres energia!- e um iogurte sólido. O Sr. Guia chega com os seus calções azul, camiseta de alças, ar sério, esfregando as mãos. Saímos para correr.