2011/07/25

Quarenta Anos

Aninhas viu-se sozinha na noite dos seus quarenta anos. A empregada não lhe fez quaisquer perguntas. Deitou-lhe os filhos e recolhera já ao quarto onde se entretinha a ver telenovelas brasileiras com os sapatos de salto de vírgula calçados. O apartamento estava mergulhado em penumbra e sombras. Era uma escuridão que a consolava. Lá fora, a noite caíra sobre os jardins da fundação, escondendo as tílias, os pilriteiros, os rododendros; só o perfil, levemente assustador, das sequóias permanecia visível. Aninhas sentou-se no escritório. Faltava-lhe fazer uma coisa. Precisava de ligar para o apartamento das marquises de alumínio, na Paiva Couceiro. Custava-lhe mais acabar a relação com o amante do que a relação com o marido. O casamento assentava num contrato e Aninhas sabia que a dissolução dos contratos se encontra prevista na lei, tutelando interesses, dividindo patrimónios, acautelando as opções de cada um. A lei parametriza a vida; cuida, de forma asséptica e eficaz daquilo que começa, mas também de tudo o que termina. A relação com o amante, porém, não assentava em premissas definidas, era volátil, inexistente. Não havia direitos, nem deveres, nem salvaguardas. Assentava apenas em sentimentos.

Aninhas pensara durante a tarde. Nenhuma justificação lhe pareceu razoável, suficientemente plausível para acabar com aquela relação que pouco exigia e nada deixaria. Na penumbra do escritório lembrou-se então da frase que encontrara nessa manhã escrita na base da estátua na praça central da cidade. Discou o número da casa do amante. Já não te amo, Rui, disse-lhe com clareza, antes que ele pudesse cumprimentá-la. Era uma frase curta. Dita de supetão, não lhe exigia grande fingimento ou dissimulação. Porém, de tão absurda, ao dizê-la, teve vontade de soltar uma gargalha pequena. Coibiu-se, porém. Pressentia que o amante sofria do outro lado da linha. Talvez chorasse quando desligasse o telefone. Dificilmente encontraria nos corredores da faculdade uma mulher como Aninhas. Costumava desabafar, nas horas clandestinas que passavam no apartamento de marquises de alumínio, que as colegas cultivavam uma feminilidade esclarecida. Eram, mais coisa, menos coisa, uns estafermos. Não tiravam o buço e, no tempo quente, usavam vestidos pingões que mostravam corpos macilentos. Aninhas não lhe queria mal. O amante, no fundo, assegurados que estivessem os mínimos de beleza e voluptuosidade, acreditava na igualdade de géneros, nas relações assentes no diálogo, na genuidade dos sentimentos nobres, no amor, enfim. Era um bom homem, mas demasiado moderno para perceber que a sua decisão assentava em critérios de pura racionalidade. Não lhe podia explicar que já não precisava dele. Terminado o casamento, podia acabar com a relação que o sustentava. Aninhas sabia o que fazia: deitava-o ao lixo. Dispensava-o como aos sapatos com salto de vírgula que oferecia à empregada.