2012/06/05

El enanito (6)


Pediu-me para o deixar na Almirante Reis. Larguei a melancolia que, assim como a acolho, também a despacho rapidamente, enxoto-a como insecto insignificante que é, muitos anos de depressão dão nisto, é o hábito, ganha-se calo, frieza e distância, uma pessoa aprende a relativizar o sofrimento, não há dor a que a gente não se habitue. Não vais para a Pensão S. Miguel, pois não? perguntei e finquei-lhe um olhar indignado, furibundo, chispante, como que a dizer largo-te já no meio da rua, ali ao pé daquele rapaz que passeia, sem trela e açaime, um pit-bull, se me disseres que a levas para o lugar dos nossos encontros. Não, olha que ideia, vamos ficar na Casa de Hóspedes Mirabel, é um sítio de gente séria, sem putedo, sem máquina de preservativos na entrada, sem lençóis amarelos a cheirar a lixívia, sem caixinhas de toalhetes em cima das mesas de cabeceira, fica um bocadinho mais abaixo, é um prédio azul antes de chegar àquele supermercado chinês onde tu gostas de comprar caldinhos de massa, barras de sésamo e novelas escritas em cantonês para teres a ilusão do mundo de lá. Sosseguei. Passou-me a irritação. A Moranguita chegou. Antes que pudesse dizer alguma coisa, peguei-a ao colo e sentei-a na cadeira do meu filho mais novo, uma isofix da Chico, maravilha de cadeira, comprei-a numa promoção, ainda assim custou quase duzentos euros, mas não me arrependi, material ventilado, reforço lateral, apoio regulado para a cabeça, tem um arnês forrado, imobilidade absoluta, cinco anos de garantia; bati já duas vezes depois de a comprar, o mais velho rebentou com o lábio, a do meio deu um gangão violento, andei durante vários dias com o peito dorido, mas o mais pequeno, instalado no seu trono, nada. Segurança total.

Desci a Gago Coutinho devagar. Íamos em silêncio. A Moranguita dormitava lá atrás; pelo retrovisor, reparei que um quelóide avermelhado, lagartinha fibrosa, lhe marcava o peito. Sempre que vejo uma cicatriz, o relevo monstruoso, sinal de abertura, tenho vontade de lhe tocar. Uma cicatriz escarifica, é marca de imperfeição, tumefacção permanente, reconduz-nos à nossa fragilidade e insignificância. Fui o resto do caminho a espiar-lhe a rasgadura do corpo. O meu amigo, sentado ao meu lado, emudecera. De vez em quando, limpava os cantos da boca com um lenço de papel. Chegámos por fim aos Anjos, estacionei a Hiace em frente de um prédio pintado de azul claro, varandas de ferro, janelas de alumínio com venezianas amarelas. A Casa de Hóspedes Maribel era ali. Já no passeio, o meu amigo pediu-me emprestados quinhentos euros, que me pagaria assim que pudesse, era só para os primeiros tempos. Passei-lhe um cheque. Deu-me um beijo no rosto, és uma amiga impecável, Ana Clara, explicou, perdigotando, a adjectivação ficou-me a latejar na pele. Depois, pondo um ar sério, ofereceu-me o tal cacho de bananas, eram bananas especiais, não tinham nada a ver com as bananas chiquita que crescem em plantações infindáveis e são regadas com chuva de antibióticos e insecticidas, nada disso, fora apanhá-las mesmo antes de ir para aeroporto ao quintal do seu amigo Pablo, descendente directo de mapuches e olmecas, eram mágicas, quem as comia ganhava poderes esotéricos, a nefanda capacidade de adivinhar o futuro. Agradeci o presente, muito obrigada, tu sabes bem o que gosto de bananas. Começava a preocupar-me o delírio do meu amigo. Andei o resto da tarde de passeio com o cacho de bananas mágicas. Cheguei a Caxias passava das dez. Tive vergonha de confessar à minha irmã que o enanito do meu coração me trocara por outra. Mal me viram os miúdos enrolaram-se nas minhas pernas, veio-me assim uma sensação de estrangulamento e desmerecimento, de ingratidão insuportável, tanto que eu gostava de ser uma fêmea como deve ser, falando de criancinhas de manhã à noite, o meu João tem um coração de ouro, a minha Dá tem cinco a tudo e toca violino, o meu Joaquim canta todas as canções do Chico Buarque. Levei-os para casa. No dia seguinte, pedi à empregada que panasse as bananas mágicas com pão ralado e as fritasse em azeite para acompanhar um pedaço de picanha nacional. Sempre é mais barata. A minha filha gostou muito e, ao contrário do que é habitual, nessa noite, pediu para repetir o jantar.