2012/06/14

Morte santa (1)



A um canto, num cadeirão de napa, um homem dormia, estiolado, mãos de trabalho, rugosas, cheias de cortes, dedos inchados, unhas brancas de cimento; viera para cumprir a obrigação que se impunha, apresentar os seus sentimentos, dizer duas palavras à viúva, explicar-lhe que, no dia seguinte, por se iniciar a cofragem na obra, não poderia vir para o funeral. O cansaço, porém, fizera-o sentar-se no cadeirão, adormecera em pouco tempo. Dormia profundamente há já meia hora. Sornava sem alarido. Sentadas, junto de uma janela, como corvos espiando o bosque, duas velhas, casacos de lã escura, pés enfiados em pantufas, murmuravam rezas novas. Negrume de mulheres sós, escuridão funda e imensa. Estavam as velhas de olhos secos, mas expressão de pesar, como convém nestas ocasiões. Em lugar de destaque, a viúva, mãos postas no regaço, lábios tensos, parecia aliviada. Mulher indistinta, anódina, sem traços ou marcas, quase invisível. Ao centro, enfiado num caixão de pinho barato, recamado de cetim branco, o brilho dos tecidos baratos iluminando o velório, estava o morto, corpo robusto, rosto descoberto, vestindo um fato de três peças; nos pés, os sapatos que levara ao casamento da filha mais velha. Quando alguém chegava, dirigia-se à viúva, dizia breves palavras de consolo, partia pouco depois com a satisfação de uma obrigação cumprida. Quem chegava não olhava o morto. Ninguém se abeirou sobre o caixão para o chorar ou ver pela última vez o seu rosto. Homem mau, de costumes beras, nascera com a maldade no corpo. Viera para o prédio muito novo, sem passado, nem lembranças, casado com aquela mulher, trabalhava conforme calhava, um dia aqui, outro acolá.

Taciturno, pontapeava gatos, cães e crianças que se atravessassem no caminho, bebia muito, arranjava sempre zaragatas, engalfinhava-se em cenas de pancadaria, ficava com olhos inchados, equimoses, chagas abertas que custavam pouco a sarar, passados dois ou três dias aparecia como novo, entrava no café, pedia um copo de vinho, depois outro e mais outro. A ruindade parecia ter nele um efeito regenerador, o diabo que lhe vivia no corpo tratava-o com ligeireza mágica, punha-o bom num instante, assim, recomposto, sem marca de humana fragilidade, podia voltar a ser simplesmente mau. Tratava a mulher à pancada, as filhas também. Às vezes, trazia-as para a escada do prédio para lhes bater à vista de todos. Suas putas, suas grandes putas, ia dizendo enquanto lhes batia, as mulheres agachadas, mãos a proteger a cabeça, acostumadas àquilo, incapazes de se sentirem vítimas, aguardando apenas que se cansasse e recolhesse ao apartamento. Que a morte o tivesse vindo buscar assim, ligeirinha e benevolente - um ataque súbito enquanto dormia em frente do televisor, espumou da boca, levou as mãos ao peito, esperneou um instante, soltou dois gritos mudos e foi-se – era coisa que indignava muita gente. Quando se soube da notícia, pela manhã, houve até quem lamentasse ter tido uma morte assim, devia ter sofrido como a vizinha do rés-do-chão esquerdo, o carcinoma lento sugando-lhe tudo, desfazendo-a, arrancando-lhe o estômago e as tripas, deixando-a liquefeita por dentro; gemeu a coitadinha durante dois meses agarrada a um rosário da terra santa, abençoado por um bispo brasileiro, que encomendou através do canal televisivo de uma igreja evangélica neopentecostal.