2013/05/03

Tia


“Mete aí uma pinguinha, filha!”, diz a tia Dé e estende-me uma chávena de café. Geralmente não se senta à mesa, se o faz, por ser almoço de domingo ou dia de festa, fica sentada à pontinha da cadeira, o corpo sempre tenso. Nunca tira o avental, raramente usa pratos ou copos. Debica em pires e chávenas de café. “Que raio de prazer podes ter em beber vinho numa chávena de café?”, pergunto-lhe. Ela não explica, não diz nada, limita-se a passar as mãos pelo cabelo completamente branco. Encolhe os ombros e começa a beber. Os seus olhos dizem sempre o mesmo: sou uma sombra, morri há muitos anos, num tempo tão antigo que parece de outra vida, sou um passarinho morto, tenho um coração solitário e palpitante, não sou mãe, não sou avó, não fui mulher, não deixo ruído, as minhas pantufas mal se ouvem. Sempre foi assim. Hei-de desaparecer sem que nenhum de vocês se dê conta.